quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

MELANCÓLICO ENCERRAMENTO

Por Vânia Moreira Diniz

Estou de luto. Estou decepcionada realmente por acontecimentos que interceptam os passos de nossa literatura. Isso aconteceu essa semana.
Montei bibliotecas em diversos lugares da capital da República para que as pessoas pudessem ter a oportunidade de ler e até trocar ou levar para casa. Seria mais uma oportunidade de intercâmbio cultural e principalmente para aqueles que não têm oportunidade de ter contato com os livros.
Uma delas era numa Farmácia de Brasília cujo dono eu conheço há bastante tempo e que depois de uma larga experiência resolveu abrir sua própria farmácia. Esse farmacêutico amigo ficou entusiasmado com a possibilidade de oferecer aos seus clientes os livros que eu selecionara de minha própria casa. Era um ponto de curiosidade e apoio para todos que freqüentavam a farmácia e enquanto esperavam ser atendidos.
Muitos iam lá apenas para trocar ou devolver os livros que haviam levado. Isso aconteceu há quase três anos e ficamos encantados com a difusão da literatura e artes num ponto em que as pessoas geralmente chegam por vezes deprimidas com os próprios males.
Essa semana recebi um recado de Walmir, o farmacêutico responsável que recebera uma visita da Vigilância Sanitária e que o ameaçara de multar a farmácia pela presença dos livros. Ele argumentou que os mesmos estavam ali apenas para serem lidos e já faziam parte do interesse dos clientes.
O que terá o fiscal identificado de tão mal nos livros ali depositados? Seria ácaro? Seria poeira?Não acredito nesse argumento, pois como sabemos todos os medicamentos são hermeticamente fechados às vezes até com dificuldade de abri-los e invariavelmente contém a bula de papel.
Este não seria um indutor para a produção de ácaro, assim como o seu invólucro e a sua caixa de papel?.Tenho convicção de que faltou ao agente público sensibilidade para a sua decisão.É importante ressaltar que a este fiscal cabe verificar as irregularidades e por elas propor correções.
Não creio, no entanto que o livro fizesse parte delas.Tive que agir no prazo de cinco dias concedido pela Vigilância Sanitária e fechei tristemente o Espaço Cultural posicionada num cantinho da farmácia, recolhendo os livros que tão cuidadosamente escolhera para o deleite dos clientes.
A insensatez fechou uma porta extinguindo uma mini biblioteca, mas a nobreza de atitudes do grupo Gazal recebeu os livros de forma imediata para a colocação em bibliotecas por ele mantidas.Respeitei a ordem da Vigilância Sanitária cujo trabalho sempre admirei lamentando esse episódio e principalmente a atitude radical de suas decisões, retirando friamente uma biblioteca já tão necessária ali naquele ambiente.
Há certos momentos na vida que precisamos usar o discernimento e a humanidade mesmo em regras absolutamente precisas mesmo porque tenho certeza que os livros ajudavam as pessoas e já era um ponto de encontro também com a s letras.
Estou de luto, mas realmente feliz porque ainda existem pessoas que compreendem o valor da leitura. Agradeço ao Farmacêutico Walmir seu carinho para o nosso espaço cultural que se extingue ali tão melancolicamente.

SEM LIVROS NA PRATELEIRA

 
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COMÉRCIO
Sem livros na prateleira
Drogaria que mantinha livros para a clientela usar, sem custo, é obrigada a retirar o material. Medida é questionada por escritora que trabalha com incentivo à leitura
Por Leilane Menezes
Comércio

Era pouco antes do meio-dia, na terça-feira da semana passada, quando uma fiscal da Vigilância Sanitária do Distrito Federal entrou em uma das farmácias da 302 Sul. Entre duas prateleiras de remédios, ela avistou quatro estantes cheias de livros. Depois de investigar o motivo de os exemplares estarem ali, a mulher descobriu que se tratava de uma biblioteca comunitária.

A fiscal, então, preencheu uma notificação, destinada ao dono da drogaria, estabelecendo o prazo de cinco dias para a retirada dos livros daquele ambiente. Explicou que a presença das publicações vai contra a lei federal que regulamenta a atividade das drogarias. E não abriu possibilidade de negociação (veja Nota da Vigilância Sanitária). A notícia surpreendeu a idealizadora do projeto de incentivo à leitura, a escritora Vânia Diniz, 68 anos, moradora da Asa Sul. O pequeno espaço literário tinha mais de 100 unidades expostas.

Machado de Assis, José de Alencar, Rachel de Queiroz e muitos outros escritores tiveram suas obras incluídas na coleção. Não só a literatura tinha vez: apostilas de concursos públicos também podiam ser vistas ali. Toda essa riqueza era oferecida aos clientes da farmácia, sem nenhum custo. Quem quisesse levar os livros para casa, tinha autorização. Várias pessoas também doavam novos títulos, como forma de incentivar a corrente de leitura. Com receio de ser multado, o dono do comércio, que pediu para não ser identificado, seguiu a instrução da fiscal, embora discordasse dos argumentos para retirar os livros.

A farmácia da 302 Sul, portanto, continua com sua destinação original, a de oferecer produtos que ajudem na cura de diferentes tipos de enfermidades. Palavras e pensamentos impressos — que, muitas vezes, podem trazer conforto espiritual ou emocional — não estão mais disponíveis ali. “As pessoas faziam um intercâmbio cultural enorme. Muita gente chega a uma farmácia precisando de apoio emocional. Os livros diminuíam a frieza do ambiente”, afirmou Vânia.

A escritora não concorda com as explicações da vigilância. “Tem biblioteca em açougue, em um monte de lugar. Que mal os livros podem fazer? Estragar os medicamentos, que são hermeticamente fechados e difíceis até de abrir? Seria ácaro? Seria poeira? Não aceito esses argumentos. Tenho certeza que faltou sensibilidade ao agente público. Estou de luto com essa atitude, realmente decepcionada”, protestou.

Paixão
Desde criança, a escritora alimenta o amor pelo ofício. “Meu avô, Raimundo, era escritor. Na casa dele, o Rio de Janeiro, eu conheci gente como Rachel de Queiroz. Fiquei fascinada por esse mundo e me dedico a ele desde então”, contou a carioca, que vive em Brasília desde 1969. Quando retiraram os livros da farmácia, Vânia diz ter tido a sensação de ver um filho sendo machucado. “Alguns dos exemplares ali levavam meu nome. O projeto era uma ideia minha. Fiquei muito abalada com essa rejeição.”

A biblioteca da farmácia não era a única mantida em um local inusitado e montada por Vânia, com ajuda de seu marido, o escritor de livros técnicos Paulo Diniz, 75 anos. Ela também inaugurou pontos de leitura no salão Marilene Cabeleireiros, na 414 Sul; na oficina mecânica Escapamento Melo, na 702 Norte; e na escola É DAC, na QL 6/8 do Lago Sul. Neste último local, há mais de 450 exemplares.

“Tenho a impressão de que as pessoas falam muito em leitura, mas leem muito pouco. O povo não está lendo. Isso me incomoda muito, porque a leitura é uma das maneiras mais eficazes de tirar alguém da exclusão do conhecimento”, avalia a escritora. Vânia lembra que, quando os livros chegam perto das pessoas, elas podem se interessar pelo universo da leitura. Assim ocorreu com a cabeleireira Tatiana Santos, 25 anos, moradora de Valparaíso. Quando viu os exemplares distribuídos por Vânia no local de trabalho, ela teve a curiosidade despertada e decidiu folhear um livro, como há muito tempo não fazia.

“Eu sempre gostei de ler, mas não tinha muita oportunidade para estar perto do livro. Agora, tenho esse costume. Levo para ler no ônibus. Gosto de poemas”, relatou Tatiana. Assim como ela, outras oito colegas do salão e as clientes também criaram gosto pela literatura. Mesmo diante da decepção, Vânia não desiste de espalhar conhecimento. No que depender dela, os livros estarão por todo lugar.

Pioneira dos imortais
Rachel de Queiroz nasceu em Fortaleza (CE), em 1910. Escreveu romances, entre eles Memorial de Maria Moura, que virou minissérie exibida pela TV Globo em 1994, protagonizado por Glória Pires; crônicas e peças teatrais. Em 1977, Rachel tornou-se a primeira mulher a ser eleita para a Academia Brasileira de Letras. Morreu em 2003, enquanto dormia na rede, em casa, no Rio de Janeiro.


Perfil

Vânia Diniz
Tem 15 livros publicados. É presidente da Academia de Letras do Brasil, pertence ao Sindicato dos Escritores do DF, à União Brasileira de Escritores e à Rede de Escritoras Brasileiras. Mantém o site www.vaniadiniz.pro.br, no qual divulga as próprias obras e as de novos autores.


O outro lado

Nota da Vigilância Sanitária
“Realmente, a fiscalização da Vigilância Sanitária esteve no local, solicitando a retirada dos livros. Isso ocorreu pelo fato de o funcionamento de uma exposição de livros dentro de uma farmácia ser proibido por lei. De acordo com a norma RDC 44/2009 da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e a Lei Federal nº 5991 de 1973, drogarias só podem expor e comercializar remédios. Qualquer outra mercadoria vai contra a lei e deve ser retirada”.


Fonte:Jornal CORREIO BRAZILIENSE, Caderno CIDADES, p. 66, edição de 24.fev.2011.

segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

DIREITOS IGUAIS PARA PESSOAS DIFERENCIADAS

Por Vânia Moreira Diniz (Brasília, DF)

(Em Homenagem ao dia Internacional da Mulher que está próximo)

Nasci como já disse algumas vezes em meio a homens como meu pai e avô, defensores e admiradores da mulher em sua essência mais profunda. Ouvia meu avô dizer que se o mundo fosse um matriarcado, ou seja, liderado por mulheres, seria outro, mais gentil, humano e verdadeiro. Evoluído e com um desenvolvimento mais acelerado. Era isso que eu entendia. A figura da mulher enaltecida, amada e admirada profundamente com sua profunda característica de sedução o que a tornava quase uma deusa da mitologia grega.

Acresce que não era um mito que eles apreciavam, mas a figura feminina em sua essência mais profunda, lutadora e persistente, misto de fascínio e coragem.

Quando mais tarde pude notar o preconceito que se formava em torno, o mundo discriminativo e machista compreendi a luta empreendida há já muitos anos, mas que não chegara ao fim determinado como, na verdade, ainda hoje. Queremos e precisamos de mais.

Muitas conquistas numa luta insana foram adquiridas, conseguimos até mesmo certa supremacia, a realização de uma vida lutadora e independente, a obrigatória forma com que os homens passaram a nos respeitar conscientemente. Mas isso ainda não nos bastava. Não era supremacia que queríamos verdadeiramente porque isso implicaria em reserva de atributos que não deveriam ser abandonados. Mas a igualdade diferenciada. Uma igualdade como seres humanos divididos em duas categorias ou gêneros, mas com nossos contrastes básicos de delicadeza, feminilidade, doçura, sedução, fascínio e oportunidades profissionais e direitos inatingíveis.

A grande luta é e será sempre para que se compreenda que não podem existir dois sexos completamente semelhantes porque eles se completam e não se mesclam. O mundo não teria a menor graça, a vida não teria nenhum deslumbramento se fôssemos todos estritamente iguais.

Somos feitos da mesma matéria, sofremos igualmente, temos o mesmo poder de inteligência, talento e competência, mas nos contrastamos na forma básica de amar, sentir, no jeito de demonstrá-lo, nas necessidades intrínsecas, porém contrastantes de ser felizes. E na união dessas características é que poderemos encontrar o caminho da perfeição e verdadeira felicidade.

Estamos e continuaremos na nossa luta, embora pareça que agora há uma concepção mais atual e abrangente do que significa a emancipação das mulheres. Emancipar-se não é em absoluto se transformar, mas se fazer entendida nas potencialidades que estão ligadas a uma intensa feminilidade. Potencialidades essas que nos dá o direito de ter independência financeira e pessoal sem abrir mão do atributo mais elementar da mulher que é sua própria feminilidade. Na vida pública como particular a mulher carregará sempre seu fascínio natural como o homem sua masculinidade sem o que não estaria esclarecido o que significa emancipação.

Não nos tornamos iguais nem permitimos isso. O que estamos conseguindo não restringe nem elimina a própria personalidade feminina, doce e meiga, mas faz com que a mulher com todos os seus atributos cheios de encanto e enfeitiçadores tenham os direitos que são concedidos ao homem. Ser respeitada, oportunizada em sua profissão, com a independência que deve ser legada aos seres humanos diferenciados pela sua característica sexual, porém cidadãos e pertencentes ambos ao giro onipotente do planeta.

Não conquistamos ainda a luta, principalmente a compreensão que assim como o homem não abre mão de suas peculiaridades a mulher lança todos os dias seu grito de liberdade conservando gloriosamente suas qualidades intrínsecas de mulher competente e sedutora. E por isso nos atraímos, precisamos um do outro desesperadamente e igualmente independentes e mutuamente respeitados nos queremos e amamos realizando-nos como homem e mulher exatamente pelas diferenças naturais e intrínsecas. É isso que comemoramos no dia Internacional da mulher.

NOITE DE INVERNO

Por Ridamar Batista (Badajoz, Espanha)

O vento sopra tão bravo
parece golpe de espada
cortando a face da noite
deixando marcadas feridas
de onde o sangue não escorre.
Vem trazido de bem longe
faz a volta entre os montes
e chega aqui veloz, feroz e gelado.
A noite descabelada
geme de dor e de frio
mulher abandonada.
A lua acovardada, branca de medo
esconde detrás da chuva
que respinga em neve c lara
desnorteando os pássaros.
Vento! Gemido de dor
grito assombrado de morte
alma vivente perdida
num caminho sem volta.

EM TRANSE

Por Ridamar Batista (Pirenópolis, GO)

Farejo-te olores inesquecíveis
Como animal no cio
Ouço teu uivo rouco
De solidão e saudades
Perdido de amor pela lua
Nas brumas vazias
Da alma em transe.
Sou fera vadia
Que anda nua
Corro atrás de ventania
E solto minhas madeixas
Em ondas revoltas
De mar e céu e luar
E sopram em minhas narinas
Todos os cheiros
Que de ti me vem
E sinto-te também
Perdido de mim
Nos braços de outro alguém.

UM DEUS

Por Ridamar Batista (Pirenópolis, GO)

Habita em mim um deus
descomunal, agigantado
pela visão desfocada de mim
um deus capaz e forte
de mover montanhas
escondido na concha túrcica
de meu côncavo ternura
guardado na paz serena
de cada crença que possuo.
um deus, sombra e luz
constância em cada movimento
um sentimento de amor
uma dúvida de dor
uma discrepância
uma verdade latente
ou quem sabe semente
jamais renascida
uma fé imbuída
uma incerteza constante.
um deus habita em mim
tão forte e vacilante
como o encrespar de ondas
que bailam a cada maré
mexendo na minha fé.

OUVIR

Por Pedro Du Bois (Itapema, SC)

Ouço o corpo em lembranças,
estremeço; penetro a música
e me expando em cantos: letreiros
iluminam as ruas, a dor opaca
o caminho: em mesas reunidos
homens desdenham a farsa
da novidade. O corpo alenta
o desejo; entrevejo o fogo
apagado. Danço o terminar
da hora; esqueço ao atormentar
espíritos. A ultimação
do fato transfigura
o papel em desenhos.

domingo, 13 de fevereiro de 2011

MATURIDADE, UMA CONQUISTA

Por Vânia Moreira Diniz (Brasília, DF)

Sei que é um assunto difícil falar de maturidade porque em geral a confundimos com idade. É claro que é normal que ela venha com o passar dos anos e embora frequentemente estejam juntas as sensações são completamente diversas.

Em geral todos nós temos uma atitude negativa quando pensamos em “tempo vivido” e quando percebemos sinal do tempo, como os cabelos brancos, que começam a aparecer. Aprendemos com tudo que nos cercou desde a infância a encará-la como um lobo mau e geralmente se experimenta um sentimento de nostalgia frente ao mundo dinâmico, brilhante e com novas técnicas induzidas de “juventude”.

À medida que o tempo decorre um pavor vai tomando conta das pessoas como se esse momento não fosse uma nova fase que poderá resultar, malgrado algumas limitações, numa riqueza desconhecida que poderemos explorar com alegria.

A maturidade é um desses pontos positivos embora exista muito jovem com maturidade e velhos que carregam uma infantilidade nada agradável porque sua estabilidade emocional se ressente com a falta de segurança que isso enseja ao contrário do que eles pensam.

A maturidade mais aprazível é aquela que aprendemos com o correr das experiências e uma das formas mais certas de aprendizado é o sofrimento. Quando ultrapassamos aquele período de dor surge uma sensação de segurança e tranquilidade jamais experimentada em outros períodos da vida.

Maturidade é uma aquisição muito feliz e a percepção que podemos dominar nossos próprios dragões e ultrapassar mágoas ou sentimentos pequeninos mudando a cada passo valores que na extrema juventude nos perturbavam é realmente fascinante.Fascinante no sentido mais amplo.

Os valores mudam muito rapidamente apesar de só notarmos isso repentina e inadvertidamente e quando acontece parece estranho, mas a verdade é que é uma conquista realmente poderosa e bem vinda.

Quando a maturidade vem junto com valores primordiais de conhecimento, necessidade de saber e procurar aprofundamento de verdades que antes nos passavam despercebidas e principalmente doçura, ternura pelo mundo, envolvimento em amor universal, preocupação com o outro e certeza que, embora continuando a errar, e muito, detectamos que precisamos ainda nos aperfeiçoar profundamente, a paz envolve nossas almas.

Claro que nos perturbamos nesse momento ainda mais com a violência, truculência indiferença, pobreza , fome, desamor mas há uma percepção que podemos lutar com uma força e esperança que só a maturidade nos transmite.

A vaidade passa a atuar mais profundamente em duas vertentes e nos preocupamos com o interior tanto quanto o fazemos com o exterior para que ambas possam não se tocarem mas agirem como duas paralelas que estão sempre juntas sem haver prejuízo para uma ou para outra. Ser bela por dentro e por fora, existe conquista pessoal mais completa? Esse é o grande segredo da satisfação plena.

Maturidade é compreender que nenhuma mágoa pode ser tão importante a ponto de nos fazer sofrer e que às vezes é melhor não dizer coisa alguma a entristecer o nosso próximo e quanto mais próximo mais precisamos desse exercício de conscientização.

E também entender que as pessoas na maioria das vezes não querem nos ferir quando dizem algo que atinge nossa alma e que é preferível sempre ser magoado a magoar. Pelo menos não teremos nosso coração doendo e poderemos dormir em paz. Mas creio que só a maturidade é capaz de entender perfeitamente esses conceitos.

A maturidade também nos faz entender que as lágrimas foram feitas para serem derramadas tanto no sofrimento como na alegria e que não é feio chorar quando isso nos alivia e principalmente quando acompanhamos alguém que está precisando de nosso apoio ou compreensão.

Claro que como seres humanos enfrentamos momentos de tristeza ou depressão passageira mas é importante que se use essa experiência para evitarmos que isso se transforme em doença ou pelo menos se procure ajuda com médicos, terapeutas, analistas e em recursos que a ciência tornou profícua.

Maturidade no sentido mais positivo vem dos anos que já se foram mas consiste em aproveitar os ensinamentos para uma qualidade de vida melhor mas também mais digna enquanto se aprecia com mais objetividade todos os elementos da natureza com fonte de riqueza e engrandecimento da alma e se admira todos aqueles que podem nos transmitir sábios ensinamentos.

Maturidade não é velhice mas é plenitude de dias vividos que resulta em experiências frutificadoras, em olhar o mundo com mais amenidade e sentir que devemos deixar para nossos sucessores um exemplo de amor, saúde, compreensão e intolerância para os próprios erros.

sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011

CORDEL DA CULTURA NORDESTINA

Por Gustavo Dourado (Brasília, DF)

A cultura nordestina-se
Transcende o regional
Xaxado-maracatu
Xote frevo carnaval
Sanfona de Gonzagão:
Forró-baião literal...

Literatura de Cordel
Improviso e embolada
Ciranda, boi e reisado
Praia, arte, luarada
Lobisomem à meia-noite:
Em busca da madrugada...

Carne de sol:baião de dois
A sagrada rapadura
Bebo uma talagada
Gole de cachaça pura
Para cantar o Nordeste
Terra de amor e ternura...

São João em Campina Grande
Castro Alves condoreiro
Ariano Suassuna-nos
Cordelisa o Romanceiro
Auto da Compadecida:
Sucesso no mundo inteiro...

Glauber Rocha cinearte
Torquato em Teresina
Mário Faustino traduz
O raio da silibrina...
João Gilberto Bossa Nova:
Tem essência nordestina...

Elba, Gal, Gil e Betânia
Voz de Anísio Teixeira
A arte de Caetano
Repente de Zé Limeira
Patativa do Assaré:
Encanto da Mulher Rendeira...

Na Chapada Diamantina
Horácio...Manuel Quirino
Irecê e Pai Inácio
Morro do Chapéu cristalino
Recife de Ibititá:
Canarana me destino...

Herói Zumbi dos Palmares
Nísia Floresta vital
Poesia de Auta de Souza
Nunca ouvi nada igual
Luís da Câmara Cascudo
Folclorista magistral...

Science e Chico Cézar
Paulo Freire Educação
Cangaço, Lucas de Feira
Vaqueijada, Azulão
Na peleja e na rima
Malazarte e Cancão...

Asa Branca Acauã
Petrolina Juazeiro
Cordel do Fogo Encantado
Um encanto brasileiro
Quarteto Armorial
Mestre Pinto do Monteiro

Tem Quinteto Violado
O Barro de Vitalino
Mágico Antônio Nóbrega
Tem sorriso de menino
Ivanildo Vilanova:
Um orgulho nordestino...

Baião de Humberto Teixeira
Cangaceiro Lampião
Guerrilheiro nordestino:
Imperador do Sertão...
Amava Maria Bonita
Com prazer e emoção...


Feira de Caruaru
Xangai,Tom Zé, Elomar
Zé Ramalho Avohai
Corisco a sapatear
Inácio da Catingueira
Num galope a beira mar...

No sertão de Piritiba
Raul Seixas Caculé
Na América Dourada
Joao Dourado e Quelé
Lá na Terra do Feijão:
Vou plantar capim guiné

Cego Aderaldo no verso
Apodi e Borborema
No sertão do Cariri
Ouvi o canto da ema
Penedo e Xique-Xique
São Francisco, que poema...
No Raso da Catarina
Ararinha ao natural...
Paulo Afonso cachoeira
Um salto fenomenal
No Lago de Sobradinho
Água como o Pantanal...

Xilogravura de Borges
Raul Seixas a cantar
Geraldo Azevedo galopa
Lenine a nos misturar
Zeca Baleiro embala
Graciliano no ar...
José Lins e Zé Américo
Rachel a romancear
Jorge Amado frebordina
Grapiúna a namorar
Enamora Gabriela:
Janaína reina o mar...

A cultura nordestina
É orgulho nacional
O Nordeste é um primor
É uma terra sem igual
Eu canto a minha aldeia:
Na seara universal...

EIXOSA (Nicolas Behr/Anand Rao)

Letra: Nicolas Behr
Música: Anand Rao



Fonte: YouTube.

BRASILIXO, ATÉ QUANDO? (Gustavo Dourado/Anand Rao)

Letra: Gustavo Dourado
Música: Anand Rao



Fonte: YouTube.

segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011

INTERESSAR

Por Pedro Du Bois (Itapema, SC)

Sou do desinteresse o ouvido
parco das novidades, o mundo
na extensão da casca do ovo

não procuro o novo
e a novidade flutua
ante meus olhos

(não há importância
na descoberta: o novo
derruba o que resta).

UMA ESPERANÇA: A ERA DO ECOZÓICO

Por Leonardo Boff

Quem leu meu artigo anterior O antropoceno:uma nova era geológica deve ter ficado desolado. E com razão, pois, quis intencionalmente provocar tal sentimento. Com efeito, a visão de mundo imperante, mecanicista, utilitarista, antropocêntrica e sem respeito pela Mãe Terra e pelos limites de seus ecossistemas só pode levar a um impasse perigoso: liquidar com as condições ecológicas que nos permitem manter nossa civilização e a vida humana neste esplendoroso Planeta.

Mas como tudo tem dois lados, vejamos o lado promissor da atual crise: o alvorecer de uma nova era, a do Ecozóico. Esta expressão foi sugerida por um dos maiores astrofísicos atuais, diretor do Centro para a História do Universo, do Instituto de Estudos Integrais da Califórnia: Brian Swimme.

Que significa a Era do Ecozóico? Significa colocar o ecológico como a realidade central a partir da qual se organizam as demais atividades humanas, principalmente a econômica, de sorte que se preserve o capital natural e se atenda as necessidades de toda a comunidade vida presente e futura. Disso resulta um equilíbrio em nossas relações para com a natureza e a sociedade no sentido da sinergia e da mútua pertença deixando aberto o caminho para frente.

Vivíamos sob o mito do progresso. Mas este foi entendido de forma distorcida como controle humano sobre o mundo não-humano para termos um PIB cada vez maior. A forma correta é entender o progresso em sintonia com a natureza e sendo medido pelo funcionamento integral da comunidade terrestre. O Produto Interno Bruto não pode ser feito à custa do Produto Terrestre Bruto. Aqui está o nosso pecado original.

Esquecemos que estamos dentro de um processo único e universal – a cosmogênese – diverso, complexo e ascendente. Das energias primordiais chegamos à matéria, da matéria à vida e da vida à consciência e da consciência à mundialização. O ser humano é a parte consciente e inteligente deste processo. É um evento acontecido no universo, em nossa galáxia, em nosso sistema solar, em nosso Planeta e nos nossos dias.

A premissa central do Ecozóico é entender o universo enquanto conjunto das redes de relações de todos com todos. Nós humanos, somos essencialmente, seres de intrincadíssimas relações. E entender a Terra com um superorganismo vivo que se autoregula e que continuamente se renova. Dada a investida produtivista e consumista dos humanos, este organismo está ficando doente e incapaz de “digerir” todos os elementos tóxicos que produzimos nos últimos séculos. Pelo fato de ser um organismo, não pode sobreviver em fragmentos mas na sua integralidade. Nosso desafio atual é manter a integridade e a vitalidade da Terra. O bem-estar da Terra é o nosso bem-estar.

Mas o objetivo imediato do Ecozóico não é simplesmente diminuir a devastação em curso, senão alterar o estado de consciência, responsável por esta devastação. Quando surgiu o cenozóico (a nossa era há 66 milhões de anos) o ser humano não teve influência nenhuma nele. Agora no Ecozóico, muita coisa passa por nossas decisões: se preservamos uma espécie ou um ecossistema ou os condenamos ao desaparecimento. Nós copilotamos o processo evolucionário.

Positivamente, o que a era ecozóica visa, no fim das contas, é alinhar as atividades humanas com as outras forças operantes em todo o Planeta e no Universo, para que um equilíbrio criativo seja alcançado e assim podermos garantir um futuro comum. Isso implica um outro modo de imaginar, de produzir, de consumir e de dar significado à nossa passagem por este mundo. Esse significado não nos vem da economia mas do sentimento do sagrado face ao mistério do universo e de nossa própria existência.Isto é a espiritualidade.

Mais e mais pessoas estão se incorporando à era ecozóica. Ela, como se depreende, está cheia de promessas. Abre-nos uma janela para um futuro de vida e de alegria. Precisamos fazer uma convocação geral para que ela seja generalizada em todos os âmbitos e plasme a nova consciência.

Leonardo Boff é filósofo e teólogo e autor ddo livro Cuidar da Terra-Proteger a vida (Record, 2010).

sábado, 5 de fevereiro de 2011

O GUARDA-CHUVA

Por Ronie Von Martins (Pedro Osório, Cerrito, RS)

Contam os mais antigos - normalmente cercados pelos olhos arregalados das crianças da família e com certeza diante da lareira nos dias frios e chuvosos do inverno - a história do tal guarda-chuva.
Noite, na rua somente o silêncio e o receio. E ele, o homem. Grande capote preto. A garoa molhava seu rosto sem pressa. Pois dizem que este homem, que voltava pra casa... E aqui não contam o que fazia fora dela; perdido na chuva, trilhava pelas ruas da então jovem cidade de Pedro Osório, mais especificamente pela Rua das Flores.
O cérebro conjeturando sobre os afazeres da vida e os prazeres e dissabores da existência. Sombra fraca e trêmula presa aos pés, pouca iluminação.
Contam que a escuridão era soberana. E o medo também.
Pois bem, foi neste dia quando ele voltava pra casa, mãos no bolso e cabeça nas nuvens, que tudo aconteceu. E depois dele, muitos outros também viram. E o que aqui conto é o relato que venho ouvindo de geração em geração nas rodas de conversa da minha família.
Sozinho com seus problemas, absorto em seus pensamentos, ele não percebeu o outro. Não tinha visto nem de onde e nem quando. Só sabia que ali estava.
Homem acostumado a não se assustar por pouca coisa - “matou” um arrepio que lhe subia pelas costas no peito - e seguiu.
O outro homem portava um enorme guarda-chuva negro, grande morcego que se movimentava de acordo com o movimento dos passos da pessoa que o retinha.
E um frio antes não percebido começou a se fazer presente. Um frio que começava a invadir os ossos dele; acreditava ser a chuva. Estava molhado e um início de resfriado se insinuava... Febre?
Já caminhara – pelos seus cálculos – muitos metros, mas mesmo assim não chegava nunca em sua casa. O guarda-chuva sempre na frente. Silêncio mortal. Pesado. Nem os cães nem os gatos davam discurso na noite. Só os passos. Os passos dele.
Ficou intrigado. Estavam próximos, mas só ouvia os seus passos, não conseguia ouvir os passos do outro homem.
Tentou ver os pés. Mas a escuridão não permitia silhuetas, só a imaginação delimitava formas.
O coração dele começou a bater mais forte, e algo começou a zombar de sua coragem bem lá dentro do seu peito.
Neste momento já estava empapado de água da chuva, resolveu tirar tudo a limpo e enfrentar o homem que caminhava rapidamente a sua frente. Correu até ele e estancou na sua frente.
O mundo parou. Os relógios trancaram no horário que ali afirmava aquele bizarro encontro.
Sob o guarda chuva não havia ninguém, apenas a escuridão da noite. A parte mais escura, o espaço de todos os medos, o vazio de todos os silêncios e o silêncio de todos os gritos.
Medo. Dúvida. Temor. A rua de repente tornou-se negra como o breu, todas as luzes se apagaram e ele foi tragado pelo desespero.
Com dificuldade conseguiu afastar-se, e tropeçando e chocando-se pelas paredes das casas se pôs a correr o mais rápido que podia. Só que o guarda-chuva, inspirado pelo seu pavor, também lhe perseguia, em silêncio.
Corrida silenciosa e ofegante pelas Rua das Flores. Chegou à casa pálido como a morte. A mulher não conseguia entender nada.
Nem ele.



Sobre o autor: Ronie Von Rosa Martins é professor de português e inglês em Pedro Osório, Cerrito, RS.Possui pós-graduação em Literatura Contemporânea Brasileira (UFPEL) e em Linguagens Verbais Visuais e suas Tecnologias (IFSUL).
Textos publicados : Cronópios, Revista Entrementes, Revista Partes, Meiotom, Verbo21, Paralelo 30, Portal Literal, Recanto das Letras, Caos e Letras, Letras et Cetera, Literatura del Mañana, Arte Institucional número 5, Nerdescritor , Revista Capitu, Tiro de letra, Kplus , Revista Literatura em Debate, Outra Revista, Revista Nota Independente, Antologia Online da Câmera Brasileira de Jovens Escritores , Jornal O Lince,Clube do Livro,Veredas, Casa das Musas , Editorial Rove e na Revist’A Barata, Jornal Telescópio, Literatura em Foco, na Revista Germina – Literatura e Arte, Andar 21 Revista Poética em rede , Revista Corsário, na revista La Hojarasca, Revista Letras Uruguay, Revista Literarte, Panfleto Negro, Substantivo Plural. Molino de Letras, Revista El Humo.Revista Narrador.es. Blocos online,Palabras Diversas, Pedro osório net e CerritoRS.

terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

RECOMEÇO

Por Pedro Du Bois (Itapema, SC)

Sou remanescente, lado avesso
ao desconhecimento. O oposto ao corpo,
luz. A bravura da ovelha, o cão guardando
o rebanho. Recomeço.

Habito terras desprezadas e me faço estéril
pensamento. Guardo a palavra.

Sou vento impreciso e ágil
sobre a cobertura. Espalho a poeira
e a misturo entre lajes.

PENSAMENTOS OUTONAIS

Por Luiz Eduardo Caminha (Ratones, Florianópolis, SC)


Uma folha voa,
Como se fosse passarinho,
Jeitosa vai e vem,
Sem destino,
Sem ninguém.


Meu pensamento voa,
Como se fosse passarinho,
Acanhado vai e vem,
Não chega à amada,
Nem chega a ninguém.


Vai pensamento, voa.
Voa passarinho, vem.
Como a folha vai levando,
O amor que me consome
À amada que não vem.


A amada que quiçá,
Sem saber que eu existo,
Possa um dia perceber
Uma folha, o pensamento,
Meu outono, eu também!!!


* Poema selecionado como DESTAQUE no 1º CONCURSO INTERNACIONAL DE LENDAS E POESIA ME – 2010.

COM SABOR DE NECTARINA

Por Von Steisloff (Brasília, DF)

Na realidade, aquela insistente conversa do meu acompanhante estava enfadonha e conseguia, no máximo, me irritar. Eu não tinha qualquer interesse em saber dos intrincados caminhos da politicagem nacional adotados pelo senhor Ronald Reagan para escolher os seus secretários. Mas o acompanhante tinha todas as características de um neurótico de guerra com uma acentuada mania de perseguição. Ele tinha alcançado um elevado grau acadêmico com um aperfeiçoamento profissional invejável. Já ultrapassava dos quarenta anos de idade e continuava na situação de um medíocre técnico. As funções da alta direção eram sempre destinadas aos bajuladores escolhidos pelos políticos. O maluco, espumando de raiva, despejava torrentes de palavras ofensivas ao presidente dos Estados Unidos da América e ia conduzindo perigosamente o veículo enquanto percorríamos as longas fileiras de milhares de pés de uma fruteira cor de sangue.
Era o mês de julho e o hemisfério Norte parecia mais uma grande fornalha. Embora ainda fosse seis horas da manhã, o sol era abrasador. Meu amigo de poucos momentos resolveu estacionar o veículo à sombra de uma das belas árvores carregada de frutas. Perguntou-me se eu gostava daquela fruta. Para surpresa minha, eram nectarinas. Pelo tamanho da fruta eu tinha pensado que era maçã. Da minha parte, aquilo demonstrava uma imensa ignorância por dois motivos: minha formação profissional exigia que eu soubesse diferenciar, mesmo de longe, as duas frutas. Por outro lado, a maçã apresenta aquele nível de maturação no período de Inverno e nunca naquela época de intenso Verão como era o caso. Pela primeira vez, saboreei e fiquei encantado com o aroma e aquele sabor mesclado de pêssego e maçã.
Descobri logo que aquela parada para colher nectarina tinha sido premeditada, pois o meu companheiro tomou de uma faca afiada e de lâmina do brilhante aço que estava no porta-luvas do veículo que usava para fatiar a fruta. Eu estava muito próximo daquele homem neurótico e fiquei meio apreensivo com a ameaça do punhal. Fiquei um pouco aliviado ao constatar que o interesse dele se prendia em colher o máximo de frutas, colocando tudo dentro de uma caixa de papelão estrategicamente escondida atrás do banco em que estávamos sentados. Bastava esticar o braço e ir colhendo. Quando ele conseguiu encher a caixa, perguntou se eu queria também algumas frutas. Argumentou que aquilo era do governo e que não merecia ser respeitado. “Afinal - dizia o aparente celerado - O governo era do senhor Reagan”. Agradeci dizendo que não poderia levar nada, pois estava preocupado com qualquer excesso de volume para levar em viagem de trem dentro de poucas horas para New York. Ele concordou e insistiu que comêssemos ali mesmo o que fosse possível. Depois de empanturrado comecei a ficar preocupado, pois estávamos em uma propriedade oficial do Departamento de Agricultura e aquele cultivo de nectarina se destinava certamente para as observações da pesquisa e experimentação. O homem parece que lia os meus pensamentos ou os deduzia pelo meu comportamento comedido. Com um grande pedaço de fruta na boca, enquanto ele tentava mastigar, consegui entender numa espécie de grunhido que lhe brotou do fundo da garganta; “Não se preocupe, pois isso é tudo do governo do Reagan!” Era mesmo uma fixação contra o governo daquela época. Daí para frente fiquei mesmo muito preocupado com a faca nas mãos do doutor maluco.
Eu já vinha há alguns anos desenvolvendo uma atitude mental para abstrair meus pensamentos de qualquer situação emocional incômoda como aquela perante um homem doente da cabeça. Assim, a sua voz era como uma coisa distante e quase inaudível para mim. Eu não estava mais nem prestando atenção ao que ele dizia e, por outro lado, não tinha mais qualquer temor de uma faca brilhante, afiada e pontiaguda. Fiquei mesmo até em situação confortável e orgulhoso de minha capacidade para enfrentar aquele momento aparentemente perigoso. A situação exigia que eu pudesse exercer, ao máximo, a minha capacidade de desligamento emocional, retirando-me mentalmente para outras distantes galáxias do pensamento. E isso eu deveria fazer não só por estar ali diante daquela figura extremamente desagradável mas, sobretudo, pelo desconforto do sentimento de insucesso da minha missão que naquele dia terminava ali em Beltsville no histórico Estado de Maryland. De fato, a cruel e irracional burocracia americana tinha me vencido: eu viera de longe para ajeitar as coisas e não tinha conseguido absolutamente nada. Meus objetivos não tinham sido alcançados e isso era profissionalmente muito ruim. Eu tinha de me esforçar para que pudesse ficar em uma zona de conforto comigo mesmo. Mas o infeliz acompanhante no imenso pomar de nectarinas insistia, provavelmente sem o saber, em piorar o dia que já iniciava nada bem para mim.

– Eu sempre tive um verdadeiro ódio aos dirigentes do meu país!

Essa afirmação daquele homem era feita quase aos gritos. Parece que se dava conta da minha completa ausência e só poderia interromper-me nas minhas abstrações com aqueles gritos. E aos berros, ele continuava no mesmo tom agressivo, olhando-me fixamente com os seus olhos lacrimejantes e muito claros:

- Foram todos esses miseráveis - acrescentou - Que me mandaram para duas guerras!

Naquele momento, fui tomado por um sentimento de piedade para com o desvairado pesquisador, aquele pobre americano de duas guerras. E quando ouvi a palavra guerra, assomou-me um equilíbrio comum com o neurótico devorador de nectarinas: eu também odiava a guerra com suas motivações mercenárias, suas justificativas políticas, e as suas trágicas conseqüências. Mas, mesmo naquele momentâneo estado de piedade e identificação com o meu louco cicerone, passei a assustar-me com a continuidade de suas palavras:

- Eu odeio desde Lincoln a Reagan! - gritou por fim olhando para o horizonte tomado pela vermelhas e saborosas frutas.

Confesso que o inusitado da cena deixou-me bastante confuso. Não sei se por causa do que estava ocorrendo, mas o vermelho exuberante passou a exercer em mim um incontrolável poder e domínio mórbidos: imaginei estar sentindo um cheiro de pólvora e sangue! Era evidente que eu estava sendo submetido a um típico surto psicótico. Eu ouvia nitidamente o troar dos velhos canhões. Fui sendo tomado de contagiante emoção. Não era para menos. Ali naquelas mesmas paisagens onduladas tinham sido sacrificadas milhares de vidas dos jovens americanos. Concentro minha emoção e os estrondos se sucedem. Minha “fuga” daquele homem do meu lado me transporta para uma época, ali mesmo, entre 1861 e 1865. Carinhosamente me recordo de Abe Lincoln: depois de muito sangue molhando aquelas terras que se transformariam em pomares, o dia 15 de abril de 1865 seria marcado pelo seu sangue também derramado, perto dali, por um outro louco que sabia odiar tal como meu acompanhante.
Não me dou conta que o meu louco já tinha dado partida no nosso carro e tomado o caminho para o local onde eu aproveitaria um pequeno ônibus circular para retornar a Washington. Nada mais ouço do que o vizinho de viagem está dizendo. Qualquer lembrança da Guerra Civil americana sempre me impressionava. Muitos romances tinham se baseado naquele momento terrível da história da América. Por isso, me desligara das arengas do maníaco de 1982 e desfrutava, melancolicamente, das paisagens fumegantes da destruição dos homens ali em Maryland do século XIX!
Volto à realidade e peço ao homem que faça uma rápida parada no Baltimore Boulevard, na porta do Del Haven Motel. Eu ainda tinha de pagar a conta e retirar a minha pequena bagagem. Eu tinha saído muito cedo e não pudera tomar essas providências. Faço isso agora rapidamente e volto minha atenção para o acompanhante pedindo que me deixe perto, em outro local, em um estacionamento do microônibus do governo que me levará para o centro de Washington pela rota número 1. Eu precisava afastar-me com urgência daquela situação. Eu não merecia aqueles constrangimentos mentais que o homem me oferecia. Assim, enquanto o pequeno ônibus amarelo seguia pela rota 1, eu, sem grandes esforços, abstraia o espaço e o tempo. Estava novamente em pleno século XIX! Naquela maravilhosa situação, como se um torpor me envolvesse, pelas margens da estrada eu via somente belas fazendas e senhoriais mansões de estilo vitoriano. Não via - ou não queria ver - os modernos edifícios da Universidade de Maryland. E como o meu ônibus teve de sair da rota número 1 provavelmente devido a um acidente à frente, desviamos por alguns quilômetros aproveitando a Capital Beltway. Mesmo nessa moderníssima estrada eu conseguia imaginar e sentir os solavancos das estradas carroçáveis dos anos 1800. Naquele momento, em 1982, eu deveria enxergar as instalações do Goddard Space Flight Center da NASA. Que nada! Minha imaginação, quase infantil, e o meu devaneio de maravilhosa psicose consentida me proporcionavam somente imensas planuras e fazendas nas ondulações verdejantes. Minha ausência no tempo e no espaço parecia real e sem limites.
Finalmente, no centro da cidade, o pequeno ônibus pára bem em frente da Union Station e sou obrigado a sair dos meus sonhos para o embarque em poucos minutos. Enquanto espero a chamada pelo alto-falante autorizando a descida para as plataformas, fico olhando o teto da encantadora estação ferroviária e me distraio o suficiente para não prestar atenção aos avisos. Felizmente, uma senhora se aproxima e me pergunta se eu também não estaria esperando o embarque para New York. Ao agradecer e confirmar, noto que se trata de uma dama no mais apurado trajar. Roupas simples, mas elegantes e bem talhadas em seda, emolduravam o seu corpo aparentemente frágil. Na cabeça, um belo chapéu de veludo verde claro à moda do Tirol suíço, completava a graça da minha salvadora. Descemos as escadarias para a plataforma indicada e deparamos com os vistosos vagões de aço da Amtrak e, por coincidência, escolhemos aquele que estava destinado aos passageiros não-fumantes. Desejando demonstrar minha intenção de retribuir a gentileza daquela senhora, ofereço ajuda para alcançar o degrau da escada do vagão. Não foi necessária a minha colaboração. Noto que imediatamente à minha oferta de apoio surge um outro cavalheiro que auxilia a elegante dama. Mesmo assim ela sorri para mim em sinal de agradecimento. Enquanto caminhamos pelo corredor do vagão, ela toma a iniciativa de entabular a conversa para passar o tempo da viagem de cerca de três horas até o nosso destino comum.

– Então o senhor é também um cidadão de New York?
– Não - afirmo sem esconder meu orgulho - Sou brasileiro!
- Mas que ótimo! Gosto muito dos brasileiros!

Por conta daquela “declaração de amor” para com os brasileiros me tomo de intimidades e não me faço mais de rogado. Apresento-me e vou logo ocupando um lugar na mesma confortável poltrona de couro verde ao lado da agradável companhia. Vejo que meu dia estava mesmo mudando: daqueles momentos de angústia perto do louco de Beltsville, estava agora junto de uma pessoa que dizia gostar dos brasileiros. A dama toma novamente da conversa e me pergunta sem muita cerimônia. “O senhor gosta do canto clássico?” Um pouco surpreso e sem poder negar, arrisco aprofundar na pergunta e respondo com outra pergunta:

– A senhora quer saber se entendo do canto lírico?
– Não - contesta com um doce sorriso - Só quero saber se o senhor gosta dos intérpretes clássicos.

Fico alguns segundos procurando na memória de qual intérprete eu mais gostava. Quero impressionar a minha inquiridora, mas minhas incursões pelo mundo artístico do belo canto não passam de Pavaroti, Maria Calas e tenho de confessar a minha pobreza cultural. Ela ri gostosamente e continua naquilo que parecia um exame oral: “E dos brasileiros de quem o senhor mais gosta?” Nesse momento a minha acompanhante tocou em um ponto fraco e delicado e respondo com firmeza de um entendido do mundo artístico do meu país. “Dos brasileiros, não conheço nenhum digno de minha admiração. Mas, uma brasileira marcou a minha infância e toda a minha vida - e continuei sem poder disfarçar a minha emoção - Era, e ainda é, uma espécie de amor que tenho por quem nunca pude ver pessoalmente!”

– Interessante! Muito interessante! – agora a dama não sorriu talvez por respeito à solenidade de minhas palavras, mas continuou – Este seu grande amor ainda vive?
– Tenho certeza que sim – afirmei já refeito da emoção e acrescentei – Ela vive aqui nos Estado Unidos! Eu gostaria de um dia – acrescentei como se fosse uma confissão – Poder falar com ela e dizer da minha antiga admiração e respeito!
– Mas que impressionante! O senhor parece mesmo ter um grande amor guardado e que nunca pôde realizar um sonho!
– É verdade, é verdade! – concordei sem esconder minha desolação – Pode crer minha senhora, parece coisa infantil, mas não é!

Como nossa conversa se prolongou por quase uma hora, a dama manifestou a vontade de tomar as providências para nosso almoço que seria servido no vagão- restaurante, adjacente ao que estávamos instalados.
Ao tomarmos assento em uma mesa comum no vagão restaurante, a minha dama de companhia sugeriu que se fizesse um brinde ao meu amor contido pela cantora brasileira. Achei aquilo estranho, mas concordei com o despropósito. Em seguida, ela com desembaraço e demonstrando desenvoltura e segurança no que deveria ser feito, fez um sinal para o garçom. Quando o elegante e bem vestido garçom se aproximou, foi logo consultando a refinada dama: “O mesmo de sempre, miss Carol?.” Naquele momento em que tomei conhecimento do nome da minha acompanhante, ela não escondia uma espécie de satisfação e, sorrindo, aprovou recomendando: “Sim e do melhor!.”
Os minutos foram preenchidos com a agradável conversa com miss Carol enquanto o veloz Amtrak avançava em direção a New York. Por nosso turno, sorvíamos preciosos champanhes sem a preocupação com o almoço. Por força dos diversos brindes trocados, ao tilintar das nossas taças de puro cristal, fomos nos embriagando. De minha parte me rendia ao champanhe em razão da armadilha melancólica em que eu tinha sido apanhado. Ao que parece, pelo que toca à miss Carol, ela estava preparando-me para a crucial satisfação de sua curiosidade feminina:

– Então, estás pronto para revelar o nome desse grande e respeitoso amor?
– Sim! Ela se chama Dodô Salinas – e repeti com um sentido de confissão tardia de minha vida - A fabulosa soprano Dodô Salinas!
– Mas esta Dodô Salinas - inquiriu a dama – será a mesma soprano que estreou em 1937 aqui no Metropolitan Opera House of New York?
– Sim! – confirmei quase regurgitando a mistura de champanhe e nectarina – É esse o meu amor sonhado!

No momento em que voltava do lavatório, onde tinha ido me socorrer dos copos de champanhe, eu pude notar que a elegante dama acabava de trocar algumas palavras com aquele mesmo cavalheiro que a socorrera para adentrar no vagão ainda lá em Washington. Achei ainda mais estranho aquela atitude, pois o homem não tinha se aproximado enquanto nos divertíamos nos alegres brindes ao longo da viagem que estava por terminar. Fiquei mais intrigado quando, já novamente acomodado, pude constatar que o estranho homem parecia cumprir uma ordem de miss Carol. Ele trancou-se na transparente cabina telefônica do mesmo vagão e falou com alguém, gesticulando e rindo muito. Após isso, ele fez um discreto sinal para minha acompanhante como dizer que estava tudo OK. Eu fingi que não tinha notado aquelas misteriosas manobras. Eu era agora um bêbado sem medo.
Logo que a composição parou nos subterrâneos da Penn Station, no coração da ilha de Manhattan, a descontraída dama foi logo dizendo: “Nos distraímos no champanhe, e nem almoçamos”. Era verdade, passava das duas horas da tarde e meus únicos alimentos tinham sido as nectarinas e as garrafas de champanhe.

– Aceita um convite para almoçar, senhor Steisloff?

Minha curiosidade ficou aguçada com aquele convite e ainda mais quando vi o estranho cavalheiro carregando a única mala de miss Carol e nos acompanhar para fora da estação. Atravessamos a estreita passagem de pedestre e o cavalheiro se adiantou para abrir as portas traseiras de uma limusine Cadilac negra, onde nos acomodamos em um ambiente refrigerado e sem os ruídos da rua 31 naquelas horas da tarde.

– Podemos sair da 31 e seguir pela Broadway - ordenou delicadamente miss Carol – Depois siga direto para o Lincoln Center.

Pensei lá com meus botões: “Ôpa, no Lincoln Center, então vamos ter um almoço supimpa!” O potente Cadilac cumpriu galhardamente a distância entre a estação e o ponto de chegada na velocidade máxima permitida e, por sorte, com todos os sinais de trânsito a nosso favor. Quase no final de nossa pequena viagem, o motorista retorna à esquerda pela avenida Columbus, já na frente do Lincoln Center, entrando na 66 para tornar à direita para avenida Amsterdam e descer a rampa da garagem privativa do Metropolitan Opera House. Quando entramos naquela garagem tive a curiosa sensação de que estávamos entrando em um túmulo. Tudo escassamente iluminado e um silêncio quase aterrador. O que estaria para ocorrer dali para frente? Será que miss Carol estaria me conduzindo para o museu do Metropolitan? “Que bom” – pensei – “Ali, eu poderia ver, pelo menos, as velhas fotos das centenas de divas que brilharam naquele teatro acima de nós.”E, que pena!” – continuei imaginando – “Nunca poderei ver a minha Dodô!”. Já com a visão um pouco mais acostumada à penumbra, saímos do enorme veículo já estacionado e nos dirigimos para uma rampa. A medida em que íamos subindo, podíamos ir melhor percebendo alguns maravilhosos gorjeios dos prováveis ensaios daquela tarde. Bem mais acima, em um longo corredor de macio atapetado já se podia distinguir que se tratava mesmo de um ensaio de uma soprano. A orquestra parava a todo instante, conforme as exigências da pessoa que dirigia o ensaio. Ao chegar no enorme salão pude vislumbrar, extasiado, o fabuloso palco precariamente iluminado. Senti as minhas entranhas sufocando, comprimindo meu coração. Eu estava no mesmo local onde, há 45 anos, minha adorada Dodô tinha se lançado para o mundo maravilhoso da ópera! Sentia um pouco de tristeza enquanto continuava caminhando em direção ao monumental palco. Ali, bem perto, continuava o ensaio para a próxima temporada de agosto do Metropolitan. Minha anfitriã guiou-me até as escadas laterais que davam acesso ao palco. “Mas que intimidade!” - cochichei para miss Carol - “A senhora vai interromper o ensaio?”. Já bem perto, pude notar que a preceptora do ensaio dava instruções, ao que parece, sobre as técnicas de ritmo e técnicas para respiração correta. A preceptora estava de costas para nós e pressionava o diafragma da soprano. Já perto dos artistas, em pleno placo e para surpresa, miss Carol segreda no meu ouvido:

– Aqui mando eu! Sou a curadora artística do Metropolitan Opera House of New York!

Mais assustado fui ficando, a medida que o ensaio foi paralisado para atender à miss Carol que estava chegando. De repente, a preceptora, uma veneranda senhora, se volta para nós e, sorrindo todos do meu embaraço, sou introduzido formalmente:

– Senhor Steisloff, quero apresentar-lhe minha antiga amiga, miss Dodô Salinas!
– Muito prazer – responde miss Dodô com uma classe de diva – Estávamos esperando para o almoço!

Minhas pernas fraquejaram não sei se por causa do meu estado etílico ou devido ao choque emocional pela repentina surpresa. E, de inopino, miss Dodô vem em minha direção. Nervosamente, eu estendo minha mão trêmula para um cumprimento formal. A minha inatingível deusa despreza a mão estendida e, sem nenhuma cerimônia, abraça-me com desembaraço e concede-me um beijo. Mantenho-me nos seus braços que me apertam e participo, mesmo assustado, daquele seu beijo profundo, demorado e descaradamente sensual. Não foi um simples ósculo de pessoas que apenas se gostam e se reencontram. Foi um beijo devasso, público e convidativo para outros desdobramentos mais profundos. Terminado o beijo, do qual tenho que desvencilhar-me, eu não sabia se meus sentimentos agora eram de vergonha ou de decepção para com a cena. Para piorar a situação, não pude constatar em nenhum dos presentes, ali no palco, qualquer sinal de reprovação àquela atitude de miss Dodô. Ao contrário do que eu esperava – uma condenação mesmo velada – todos aplaudiram e ficaram esperando a minha reação. Sorriram às gargalhadas quando a grande Dodô Salinas me largou e disse, avaliando seu contraparte no escandaloso beijo:

– E ele beija bem! E com sabor de nectarina!

Entristecido e bastante encabulado, sigo todos em direção à uma escada atrás do palco, provavelmente para o local onde deverá ser servido o prometido almoço. Começo a ficar imaginativo e quase revoltado por ter alimentado aquele amor antigo e religiosamente guardado. “É mesmo um ambiente promíscuo o meio artístico!” – cogito olhando para a velha Dodô bem acabada pelo tempo - “Como fui ingênuo por toda a minha vida!”. Vou subindo a escada, mas a tristeza vai me invadindo de forma tão avassaladora que não desejo mais acompanhar os comensais. Acho-os um bando de depravados nova-iorquinos e desejo fugir para o meu cantinho. Meu lugar protegido junto à minha esposa que me espera em Roboken, no outro lado do rio no Estado de New Jersey.
De repente sou sacudido por uma pancada no ombro e uma pessoa fala alto, quase gritando junto ao meu rosto:

– Senhor Steisloff, acorde que já chegamos ao centro de Manhattan!

Totalmente confuso, abro os olhos e vejo o rosto de miss Carol junto ao meu e ela bondosamente repete:

– Está na hora do senhor acordar e desembarcar para tomar o outro Amtrak para New Jersey.

O trem pára e eu pergunto ainda estonteado se dormi todo aquele tempo. Miss Carol sorri e diz despedindo-se:

– Senhor Steisloff, logo depois da primeira garrafa do champanhe foi um sono só. E o senhor parecia tão cansado e feliz...

Sobre o autor:

O autor Amauri Rodrigues, nasceu na tradicional, piedosa e gloriosa São João del Rey, berço, também, do mais distinguido mártir da nossa Independência. Amauri vem a ser trineto de Heinrich Christoph Steisloff que aportou no Brasil no início do século XIX para abrir, na picareta, a Estrada União e Indústria que liga Petrópolis-RJ à Juiz de Fora, em Minas Gerais. Talvez pela saga desse seu mais antigo parente conhecido, o autor escreve sob o pseudônimo literário Von Steisloff cujas mentiras não ofendem nem magoam. Ao contrário, as ficções bem postas têm o poder de desencadear fantasias pessoais, eliminando os medos e outros segredos.

(Originalmente publicado no nº 3 da Revista Cerrado Cultural, 2008).

O PADRE DA VILA DO TAIANO

Por Lucinei Bitencourt Silveira (Boa Vista, RR)

Alguns anos atrás me foi passada a missão de executar uma rede de energia
elétrica, na Maloca da Barata, uma comunidade indígena próxima a vila do
Taiano, cerca de 150 km de Boa Vista, Roraima. Assim, no dia marcado peguei a turma e
me mandei para o local. Já na largada me aconteceu um imprevisto. Ao fazer
uma freada para não bater em um ciclista, um motoqueiro bateu na traseira
da camionete e caiu dentro da carroceria ficando bem machucado. Na confusão
que se criou, um carro parou a alguns metros do acidente, no meio da rua, sendo
abalroado por um outro curioso (no caso uma curiosa), "Bueno", aí o bicho pegou
para o meu lado, pois não sabia se atendia o motoqueiro ou apartava a briga
das mulheres envolvidas no acidente paralelo. Investigando depois descobri
que o tal motoqueiro vinha conversando com uma das mulheres em seu carro,
por isso não viu quando freei e me bateu, o rebu foi grande mas entre
mortos e feridos salvaram-se todos.
Liberado da encrenca, segui viagem para a tal Maloca. Chegando por lá,
iniciamos os serviços de escavação e implantação dos postes. O dia foi bem
proveitoso, e ao final do dia peguei o pessoal e fomos até a Vila do Taiano
que fica a uns 10 km do local dos serviços. Chegando por lá, cacei um boteco
e fui jogar uma sinuca, acompanhada de uma cerveja bem gelada, que ninguém é
de ferro.
Estava concentrado na jogatina e na bebericação que nem notei que foi
juntando gente na frente do boteco. Como não conhecia ninguém, achei que a
aglomeração era coisa normal. Lá pelas tantas, bateu o sono e voltamos para a
maloca onde iríamos nos arranchar. No dia seguinte, trabalhamos normalmente
até o meio-dia e, como era um sábado, dispensei a turma e me toquei, desta vez
''solito no más'' até a vila para almoçar e depois retornar a Boa Vista.
Por lá encontrei alguns amigos e ficamos jogando conversa fora e tomando uma
geladinha para espantar o calor. Então, começou tudo de novo. Foi juntando
gente e eu sem entender nada. As pessoas vinham, davam uma espiadela e saiam
rindo e comentando. Como sou meio desligado, não dei bola e segui no bate
papo. De repente, mete a cara no local um grande amigo meu, espiou me viu e
caiu na gargalhada, vindo me contar que corria o boato nos dois povoados que o padre da Vila
do Taiano estava desde sexta-feira bebendo e jogando sinuca nos botecos. Eu nunca vi o tal padre mas, segundo o pessoal, era a minha cara esculpida e encarnada . Durante todo o tempo da obra, tive que aturar a turma me chamando
de "O Padre do Taiano" e, ainda por cima, bebum.

Sobre o autor: Lucinei Bitencourt Silveira é natural de Bagé, RS, engenheiro eletricista. Atualmente, reside em Boa Vista, RR.

(Originalmente publicado no nº 3 da Revista Cerrado Cultural, 2008).