sexta-feira, 20 de maio de 2011

CONDIÇÃO

Por Pedro Du Bois (Itapema, SC)

Alimento-me da incerteza em que perduro
químicas reações desencadeadas
pelo medo. Medro minha condição
de máquina humanizada em espaços
no branco esforço de me fazer
em traços de concretude: iludo-me
em forças inexistentes.

domingo, 15 de maio de 2011

VOLÚPIA

Por Ridamar Batista

Seus dedos levantam a blusa,
Querem sentir o veludo
Guardado embaixo da seda
Com bicos agudos e tesos.
Seus lábios descem ligeiros
Depois do beijo na boca
Cheiram o perfume do colo
Sugam a seiva da flor.
As mãos deslocadas,
Buscam segredos, intrusas,
Invasivas, roçam pudores
Perco de vez a reserva
Baixo a guarda sem medo
A boca ainda ousada
Declara em beijos molhados
A posse total de meu fogo.
Igual que seus beijos ardentes
Me entrego à volúpia gostosa
Vou e volto, subo e desço
Grito seu nome! E desmaio.

(Do livro da autora, intitulado Carícias na Carne)

MEU FOGO

Por Ridamar Batista

Sinto em meu corpo
O calor da vida
Correndo pelas veias.
Um calor que abrasa as artérias.
Um sentimento que inunda
Minha veia poética.
Sinto um fogo intenso
Queimando meus pensamentos
Em completa transmutação.
O momento é de parto.
Parece-me renascer,
Como se de repente meu eu
Desabrochasse de novo,
Para o desconhecido,
Para o amanhecer.
Como se eu fosse a primavera
Que está por vir e já floresce
As matas,
E já verdeja os campos
Apesar da sequidão do tempo,
Quente!
Desabrocho antes da hora,
Com este fogo dentro de mim.
Saio da fogueira como Fênix.
Preparada para a vida,
Pronta para a luz
E digna do amor.

(Do livro da autora, intitulado Carícias na Carne)

AMORES...

Por Ridamar Batista

Muitos amores eu tive
Amando sem confessar
Outros amores confessos
Vividos com desatino
Chegaram sem me avisar.
Amei a uns e outros
Porque sou assim mesmo
Como máquina a semear
Espalha sementes a esmo.
O amor brotou de mim
Como galhos de uma planta
Uns me fizeram puta
Outros me fizeram santa.
O amor, este embusteiro
Muitas vezes me enganou
Eu amei a muita gente
Pouca gente me amou.
Mesmo assim muito aprecio
O sabor desta doçura
Quando o provo é como mel
E se engulo é amargura.

(Do livro da autora, intitulado Carícias na Carne)

segunda-feira, 9 de maio de 2011

MADRES DEL TRECE DE MAYO

 
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Por Jorge Amâncio

Negras de la casa grande
castas madres com hijos
de la crianza a los cuidados

Negras sin precio
presas al pasado
libres del pecado
de las senzalas

Negras sin nombres
Negras sin marías
Negras madres sujetas a la suerte
negras manos que labram
que acariciam
que unen

Mujeres guerreras
caultivas y libertas
Negras, discriminadas
amadas y respetadas
Negras madres de leche

En África agricultoras
mujeres interlocultoras
otrora esclavas de casa
ortogam la luz de la vida

Santas mujeres madres
negras como la noche
brillan como el sol

Muerem por sus hijos
viven para sus hijos
Madres,
negras en la cotidianeidad


( Tradução: Alicia Silvestre, disponível em:
http://lasafinidadeselectivas.blogspot.com/2007/05/alicia-silvestre.html)

Jorge Amâncio, Madres

 
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sexta-feira, 6 de maio de 2011

HOMENAGEM À MINHA MÃE: MINHA MÃE MORREU?

Por Vânia Moreira Diniz

Minha mãe, Luiza Alice Arraes Moreira, morreu quarta-feira, dia 30, e esta data passou a marcar definitivamente minha vida. Nunca deixarei de sentir o aperto no peito, a sensação do chão fugindo sob meus pés e minha raiz verdadeira que foi arrancada brutalmente. A vida parecia negar-me o oxigênio que um dia propiciara quando cheguei ao mundo, depois de abrigada durante 9 meses no útero materno. Senti-me asfixiada, sem ar.

Alguma coisa arrastou-me para o velho fundo do poço, onde meu pai dizia que às vezes era preciso permanecer durante uma fase para que se desse a renovação interior e pudéssemos retornar mais amadurecidos pelo sofrimento. E nele estou nesse momento para que possa sair intacta.

Pensei que minha mãe não morreria jamais. É claro que sabia que isso era impossível. Mas ela sempre se manteve tão segura, com uma coragem inquebrantável, força ilimitada e vigor admirável que era quase impossível imaginá-la inerte.

Uma das lembranças mais remotas que surgem no meu pensamento como se fosse um filme de curta metragem foi constante nesses dias difíceis. Eu era muito pequenina e estava chegando do colégio no ônibus escolar quando minha mãe veio ajudar-me a descer.

Seus cabelos naturalmente lisos e negros encaracolavam-se num permanente temporário e estava tão bonita que desejei cobri-la de beijos e abraçá-la. Os lábios pintados discretamente contrastavam com a cor clara de sua pele e refletiam um brilho imenso em seus grandes e expressivos olhos. Ainda bem que nossas reminiscências são nítidas e jamais ficam amareladas como as fotos.

Mamãe era culta, consciente de sua própria segurança, e gostava imensamente de arte. Assídua freqüentadora de teatro ao lado de meu pai não se eximia de dizer que prefiria o teatro ao cinema. Suas opiniões eram declaradas com imensa transparência. Fora criada num ambiente propício à música e literatura. Minha avó era uma exímia pianista e meu avô um literato, escritor brilhante e tudo isso ficara marcado dentro de sua alma.

Ao lado disso eu sentia sua autoridade, jamais falando alto, mesmo quando extremamente zangada e ainda assim suas opiniões eram acatadas pelo carisma que ela exercia em todos os níveis. E a certeza que sua condição de mulher era extremamente admirada, pois fora criada por um homem que se posicionava a favor do matriacardo e casada com outro que respeitava a mulher de uma maneira que até hoje eu aprecio profundamente.

Sentava-se sempre ereta, como jamais consegui, a coluna perfeita e nunca a vi deitando-se à tarde, mesmo em dias de domingo. Sua postura fazia-me lembrar alguém em visita de cerimônia, porém eu sabia que mesmo estando sozinha era esse o modo como ela convivia consigo mesma.

Era sensível sem ser exagerada e o lado racional conduzia sua vida com mais eficácia, por isso pergunto-me sempre como a sensibilidade pode me dominar a ponto de várias vezes ela ter chamado minha atenção quanto ao sofrimento que isso podia me causar.

Teve oito filhos, cinco homens e três mulheres e todos nós sabíamos que apesar de meu pai ser um intelectual notoriamente admirado e conhecido, envolvente e de grande inteligência só uma pessoa conseguia dominá-lo ou fazê-lo mudar de opinião: Minha mãe.

Não é que cedesse ou o fizesse para ficar mais tranqüilo, ele realmente se convencia do que ela dizia e sempre me interroguei como mamãe conseguia essa proeza, mas até hoje não consegui entender. Meu pai não só era persuadido como passava a ser o grande defensor daquela idéia, talvez mais do que a mulher e ficávamos boquiabertos diante daquela proeza.

Durante sua vida teve grandes sofrimentos como a morte de meu irmãozinho aos cinco anos e mais tarde nos últimos anos, de meu pai e mais dois irmãos todos prematuramente levando em conta a média de vida atual. Sofreu demasiado, e eu me perguntava onde tirava forças para seguir com coragem apesar da saudade que expressava em lágrimas constantes, da dor imensa que transparecia em seus olhos e da obstinação em continuar vigorosa, conservando intacto cada um de seus conceitos.

Nunca deixava de dizer a verdade e não era amável apenas para agradar. Era amada por todos, principalmente pela família mesmo nos momentos mais críticos e esse fascínio que ela exercia em relação às pessoas era um mistério sedutor não só para os filhos como para todas as pessoas que convivessem com ela. Uma mulher especial!

Tivemos vários conflitos, mas isso nada tem a ver com o amor que sempre sentimos uma pela outra. Sempre a conservei no coração, embora procurasse evitar na intimidade tocar nas divergências de nossos pontos de vista. Sabíamos que acima de tudo o amor que sentíamos era a sensação que realmente importava.

Teria muito conteúdo para descrevê-la com extrema minúcia, mas a emoção faz-me parar num ponto indefinido e passar a sentir suas palavras, os momentos que passamos juntas e refletir na força de seu caráter em todas as situações.

E agora, seis dias após sua morte, com uma profunda saudade, desejando desesperadamente vê-la e senti-la eu me pergunto em aflição imensa e não acreditando na realidade dura e cruel: Mamãe morreu? Eu não acreditava por mais que pensasse nisso e que soubesse que todos nós vamos embora um dia e por essa razão volto a perguntar com o vazio no coração: Mamãe morreu? E agora, meu Deus?

Somos cinco irmãos agora, perdidos em tristeza profunda, comentando nossas vidas, falando sobre nossa mãe e pai, sobre a infância e adolescência, as ruas de Copacabana testemunhas de nossos passos ou do tempo que nos faz reconhecer perdas intoleráveis. Fixamos um os olhos dos outros e perguntamos perdidos em realidade inacreditável: Mamãe morreu?

(Nota da autora: Texto escrito seis dias após a morte de minha mãe em 2007. Uma homenagem à minha mãe nas vésperas do dia das mães.Vânia Moreira Diniz,
06-06-2007)

quarta-feira, 4 de maio de 2011

O MAU

Por Ridamar Batista

A maldade humana sai do esconderijo
todas as forças do mau vêm a tona
nem religião e nem filosofia ocultam
os males causados pela força bruta
de quem estava por cima e no poder
quem sabe absoluto de tudo, de todos
sem medo de represália ou repúdio
o mau instalou seu trono e cetro régio
governando almas e gentes
num louco desatino de fazer ganhar
o ouro, a fama, o saber ou o ódio
que este souberam bem plantar e colher
em cada safra da nossa cruel história
de seres errantes neste planeta de paz
onde tudo houvera sido belo
não fosse a fera bastarda habitante de nós.

DISSABOR

Por Pedro Du Bois (Itapema, SC)

 
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GATOS

Por Eneida Moraes Miranda Zähler

Sofás com fios puxados
Pernas, braços e móveis arranhados
Pêlos por todo lado,
Mas tudo isso, no entanto,
Vale pelo carinho
Que vem bem de mansinho
Dessas lindas criaturas,
Que sem amarguras
Nos levam em um segundo
Para o seu doce
E encantado mundo.

(Publicado originalmente na Revista CERRADO CULTURAL nº 08/2008)

TEMPO

Por Cassiane Schmidt

Flores de papel enfeitam o jardim
Nuvens no céu ensaiam tempestades
Elfos em serenata tocam clarim
A saudade vagueia em alucinantes viajens

Prelúdios da noite seduzem o dia
O sino da igreja lembra-me das horas
A melancolia com as lembranças brinda
Sonhos esquecidos onde ninguém mais mora

Letras e músicas na alma deixam rastros
O destino borda as marcas do tempo em fino tecido
Crianças presas em porta-retratos
Congelam corpos adormecidos

Quero parar o tempo com as mãos
Ressuscitar folhas de calendários
Ouvir aquela velha canção!
Encontrar nos braços de mamãe meu relicário

De manhã, cheiro doce, pés no chão
Vida tecida pelas mãos da felicidade...
À tarde: desajustes, reajustes de tempo, contradição
Bolo sem velas partilha a idade...


À noite: cortejos de sombras conduzem o passado
Cartas sem destinatários convidam a partir
As horas crucificaram o tempo calado
Hora de dormir...

(Publicado originalmente na Revista CERRADO CULTURAL nº 08/2008)

ENCONTRO

Por Cassiane Schmidt

Naquela tarde vazia
Quando meu olhar encontrou o teu
Não imaginei que nascia
Uma dor no peito meu

Distância agora é sentença
Banco de réus pra paixão
Vou divulgar meu amor na imprensa
Escandalizar o seu/meu coração

Nada de dor, nada de lágrimas
Componho versos de memórias
Registro sonhos em páginas
Último capítulo da história

O relógio é cúmplice do tempo
Lembranças esquecidas em gavetas
Velhos calendários lançados ao vento
Amor velado em linhas de letras


(Publicado originalmente na Revista CERRADO CULTURAL nº 08/2008)

CORDELIGA-A-TRIPA

Por Gustavo Dourado

Homenagem ao Grupo Musical de Brasília
Para Aldo Justo e Nonato Veras

Liga a Tripa e o Pensamento
Liga a alma e o coração
Liga o sonho e o desejo
Religa com emoção
Quem se Liga... não des.liga:
Liga-a-Tripa da canção...

Aldo Justo faz justiça
Liga o sonho trovador
Ita é pedra do eterno
Com verso transmutador
Nonato, Fino, Carrapa:
Duboc luz cantador...

Liga o Mundo e a Natureza:
Márcio experimental
Aldo e Ita no Beirute
Um violão sem-igual
Não se quebra a poesia:
Liga Tripa Musical...

Não se mata a criação
A arte não se espanca
Revolucionar o Ser:
Alegrar minha carranca
Liga a Tripa agora e sempre:
O infinitom se destranca...


(Publicado originalmente na Revista CERRADO CULTURAL nº 08/2008)

NÃO SE MATA A POESIA

Por Gustavo Dourado


O poeta não morreu

Está em encantamento

Não se mata a poesia

Lorca é puro sentimento

Voa eterno pela vida:

Nas ondas do pensamento...



(Publicado originalmente na Revista CERRADO CULTURAL nº 08/2008)

A SAGA DE SÃO SEPÉ (poesia gauchesca)

Por Antônio Francisco de Paula

Em mil setecentos e vinte e dois
Na redução de São Luís Gonzaga
Nascia naquelas plagas
Um bugrinho iluminado
Guarani de muita fé
Conhecido por Sepé
Que em guri foi adotado

Levado pra São Miguel
A vizinha redução
Para junto de teus irmãos
Naquela terra bendita
Onde foi catequizado
Educado e preparado
Pelos padres jesuítas

Ali vivia contente
Com teu povo irmanado
Cultivando lavoura e gado
Alimentos para o sustento
Aprendendo com os missionários
Os ofícios mais raros
As construções dos monumentos

Oficinas, escolas, igrejas
Cidades inteiras planejadas
Com jardins, ruas, calçadas
Com toda a infra-estrutura
Aquela grande família
De tudo um pouco aprendia
desde música à escultura

Mas para a infelicidade
Daquela gente inocente
Surgia de repente
O tratado de Madri
De Espanha e Portugal
Pra enxotar do torrão natal
Os nativos guaranis

Determinava o tratado
Da raposa e do leão
A troca de possessão
No maldito documento
Os nossos belos rincões
Os sete povos das missões
Pela Colônia de Sacramento

José Sepé Tiaraju
Valente cacique guerreiro
Pêlo duro missioneiro
Comandou a insurreição
Peleou de peito aberto
Contra o destino incerto
Em defesa deste chão

Lutou heroicamente
De arco, flechas e lançaços
Contra arcabuzes e canhonaços
De Castela e Lusitanos
Dia sete de fevereiro
Tombou morto no entrevero
A lança e bala dos tiranos

Na refrega que precedeu
O massacre de Caiboaté
Despediu-se São Sepé
Daquela terra tão rica
E o teu sangue guarani
Escorreu no Batovi
Às margens da sanga da bica

Numa nuvem de fumaça
Seguiu o facho de luz
Na companhia de Jesus
Para estância grande do céu
Bradando com entono
Esta terra tem dono
Foi dada por Deus e São Miguel


E os potentados do além-mar
Imbuídos pela ganância
Invadiram as estâncias
Para saquear nossas riquezas
Sanguinários desalmados
Que nunca foram julgados
Pelas terríveis proezas

Sepé partiu para o além
A duzentos e cinqüenta anos
Mas continua vivo lutando
Inspirando teus guerreiros
Clamando por liberdade
Igualdade e fraternidade
Aos povos do mundo inteiro.

(Publicado originalmente na Revista CERRADO CULTURAL nº 08/2008)

MERCADO DEL PUERTO

Por Von Steisloff


Só vejo-te aos sábados. Quem sabe talvez seja essa a razão de que, cada vez que retorno a ver-te, fica em mim um desejo de sempre voltar. Nesse local o melhor que se sente é um reencontro sincero com um passado. Vejo-me ali, sem filtros ou lentes bondosas que eliminem minha insignificância de quem apenas é mais um que passa. Acomodo-me em um banco onde outros já se sentaram e nada sinto que possa modificar minha situação de passante. Sou mais um com a sublime ilusão de entender o presente e viver o doce momento que pertence ao passado. Quando retorno a ver-te, examino cada ponto, tentando captar um sinal que possa ser familiar. Tudo é fortemente passado e eu sou apenas o presente. Não consigo entender nada do local nem das pessoas que ali estão. São todas estranhas para mim. Sinto também que sou estranho para todos. Sorrio e procuro me embriagar com o vinho ácido que vou pedindo nos copos mal lavados. Tenho a impressão de que ali, todos procuram também um refúgio como eu. Por entre a multidão que se forma cada sábado, os tipos mais raros perambulam com seus copos, vão bebendo e olhando para quem também os olha.


Engano-me na bebida para que passem as horas e aproveito para estudar a estrutura de ferro centenária que sustenta o galpão imenso. Tudo parece tão distante no tempo, mas misteriosamente familiar. É um abrigo seguro de uma época invejada por mim. O mais que consigo é volver mentalmente na esperança de reviver imagens que nunca vi. Não consigo concentrar-me, pois sou chamado à realidade pela triste algazarra.


Vejo, pelos corredores sem luz, um desfile de expressões inteligíveis. Todos falam alto e, às vezes, por gestos, tentam se impor, pois a hora é feita para confessar aos amigos os sucessos e as amarguras da semana.

Minha visão turva-se e sinto-me feliz por estar ali junto aos miseráveis que me pedem para lhes comprar uma gilete que jamais usarei. O desfile continua com os aleijados de voz rouquenha. São três da tarde e o vinho corre solto e será pago pelo entusiasmo e sem qualquer reclamação. Os garçons mais vividos aproveitam para carregar na conta. Tudo noto, mas nem ligo. A euforia vai quase para o auge e os odores se misturam. Há uma convivência e tolerância promíscua entre o sujo e o limpo. Entre pobres e remediados. Uns comem sem reservas enquanto muitos pedem trocados para completar um lanche. É um frenesi de misturas onde uns são apenas pobres e outros alegremente infelizes. Encontro-me no centro de um fenômeno de galhofa nacional e do nanismo político que tanto mal faz a esse país. Aqui estão representados, o fausto do passado e a visão terrível do futuro. Ninguém percebe, ou não quer perceber a gravidade da rota escolhida. Toca pra frente. O melhor é pedir outro copo de vinho.


Volto minha vista para o teto pegado da fuligem dos anos. O imenso relógio de quatro faces parou nas onze horas de um dia qualquer. Por que todos também não levantam suas visitas entre um gole e outro, para refletir que o tempo parou? Será que só eu insisto nessa reflexão política? Parece que a vocação das massas é mesmo ser comandada por minorias audaciosas. Aqui e ali, ouço comentários sobre os acontecimentos esportivos ou coisas sem importância dessa espécie. Não fossem essas conversas, teria a impressão que o casarão seria de um silêncio religioso. Quase grito impaciente para que percebam no enegrecido teto as mensagens ali deixadas.


Se elevassem suas vistas, talvez suas almas fossem tocadas pela estética vigorosa da harmonia deliciosa e antiga. Olho enternecido para o cidadão que está ao meu lado. Nem percebe que o observo tal é o seu interesse pelo pedaço de churrasco à sua frente. Os grupos pelos balcões nem se dão conta da minha presença. Melhor assim. Fico sozinho com minhas reminiscências de um orgulho que caiu sem nunca ter lutado. Afinal, o que sou? Nem sou daqui.


Entristeço-me com esse covarde pensamento e chego mesmo a ficar um pouco envergonhado. Na realidade nunca me senti de parte alguma. Um pouco imaginativo, passo a considerar que eu poderia até mesmo julgar-me genuinamente integrante do país e de suas vergonhas. Sinto que se continuasse no vinho acabaria nas lágrimas. Eu não podia ficar estimulando uma posição de homem do mundo, com caráter internacional que eu realmente nunca assumiria. A mazela nacional pertence aos nacionais. É uma ferida que eles devem tratar. Isso sim é mais cômodo.


Venho ao local para sentir-me bem e acabo entristecendo-me. Minha sensibilidade e percepção traem este passante e fico ruminando problemas de outros. Recomponho-me e decido parar com as fantasias. Procuro justificar o espetáculo que vejo, mais com gozo de turista do que de um observador crítico e informado. Finalmente consigo encarar meu parceiro de balcão e arrisco um sorriso. Fenômeno! Ele reage e também sorri sem saber porquê. Deve ter me achado engraçado. Diante de tanta miséria alguém encontrar qualquer motivo para sorrir como eu fizera.


Na realidade estou mesmo feliz. Saio pelos corredores e procuro tocar de leve nas pessoas que entopem as passagens. Procuro sentir-me como um deles. Os acidentais contatos com suas roupas grossas e ásperas já os tenho acariciantes. Sintonizo melhor meu ouvido para inteirar-me das conversas. Julgo tudo tão normal. São alegres mesmo! O que eu via como miséria é parte de uma história que aos poucos vou entendendo. Minha curiosidade se aguça e passo a captar imagens e sons ignorados. Aquela algazarra era uma orquestra humana abafando os tambores do pessimismo. Eram palmas à vitória que têm como certa, embora distante. Estavam ali, como em todo fim-de-semana, numa espécie de culto a um quartel do civilismo. Na sua azáfama nem percebiam que o turista ingênuo invadia aquele templo pensando tratar-se de uma casa de folclore. Passo a compreender o estimulante que é o local e confesso-me integrado naquela festa semanal. A emoção é mais forte e abre em mim desejos de permanecer e nunca mais sair. Quedo-me perplexo diante daquela simbiose entre um pavilhão de ferro e um povo que o ama e precisa dele. Saio e, vagarosamente, volvo minha cabeça para rever sua silhueta vetusta. É por isso que prometo ver-te novamente, no próximo sábado, oh! meu “MERCADO DEL PUERTO”.

Montevidéu, 1982

(Publicado originalmente na Revista CERRADO CULTURAL nº 08/2008)