sexta-feira, 1 de abril de 2016

OS MEUS MORTOS...

Por Humberto Pinho da Silva (Vila Nova de Gaia, Portugal)

Se me ponho a pensar no tempo que passou, salta-me, com imensa saudade, à memória, infindável rosário de mortos.
Tantos, que fico pensativo, a refletir:
Como é possível, Deus meu, ter desaparecido os que partilharam comigo: momentos felizes e infelizes da minha existência?! … Como é possível, que familiares e amigos, que me acompanharam em êxitos e fracassos, tenham-me deixado para sempre?!
Mas é verdade! …
Onde estará, agora, o meu companheiro, inseparável amigo, que calcorreava, quase como peregrino, velhas e típicas ruas da Invicta Cidade do Porto?
Sim; onde estará o fiel confidente, que sem pejo, revelava-me, cenas episódios, preocupações, enquanto deambulávamos, em sérias e eruditas visitas de estudo, e pesquisávamos as genealogias de nobres e ilustres famílias portuenses?!
Na companhia amiga de Manuel Maria Magalhães (Alpendurada), palmilhei antigas ruas e ruelas da Cidade da Virgem; vielas e becos bafientos, evocativos de personagens camilianas, como Augusta, moradora na rua Arménia.
Onde estará, igualmente, a boa brigantina, que quase diariamente recebia-me na acolhedora salinha, de aconchegante luminosidade, onde, nas tardes frias de Inverno, ardiam brasas enrubescidas, na antiga braseira de cobre?
Era elegante, meiga, sempre com o acalentador sorriso bailando nos bem delineados lábios, cor de morango.
Acolhia-me, carinhosamente, de coração aberto; eu, rapaz despedaçado pelo turbilhão da vida, e receoso de incerto futuro.
Tinha a bondosa senhora, três filhos; cada qual o mais encantador; todos, me transmitiam, animo, frescura e alegria de uma infância feliz.
Amavam-me – disso estou certo, – com a intensidade e ternura das crianças de coração e alma pura.
Por que têm os jovens de crescerem?
Não seriam mais felizes, mais graciosos, e até, para eles, melhor, ficarem eternamente crianças?
Aos poucos, lentamente, muito lentamente – quase sem se sentir, – tornam-se adultos. Perdem a formosura, as linhas juvenis, a espontaneidade, amolgados pela turbulência da vida e pela sociedade hipócrita e injusta…
Onde estará, agora, também, a boa madrinha Baptista, que tanto gostava de mim; e eu tanto gostava dela?
Visitava-a todos os sábados.
Foi no quintal, da sua casa, onde havia: pessegueiro, que todos os anos se toucava de lindas e graciosas flores cor-de-rosa; glicínia, de cachos roxos, que tudo perfumava; e maciço de roseirinhas-de-toucar, abraçadas a grade de cor parda, que na Primavera desabrochavam em pequeninas flores, aveludadas, brancas como cal, que oloravam, em ondas de perfume, todo o quintal, que passei parte da minha infância… Esse quintalzito era o meu mundo…
Foi com a semanada da madrinha Baptista – chamava-a assim, mas não o era, – que comprei os meus primeiros livros e os meus primeiros chocolates.
Era padre o meu padrinho. Um dia, inesperadamente, recebi um telefonema, convidando-me para passar o mês de Agosto, na sua companhia.
Radiante, aceitei. Sempre desejei viver no campo, entre flores silvestres e animais; entre árvores seculares e searas maduras, prontas para a ceifa.
Nessa encantadora aldeia transmontana, reconheci sobrinho seu. Esbelto rapagão, simpático e delicado.
Com ele, cavalguei entre muros xistosos, por estreitos e agrestes caminhos, que nos levavam a verde prado, que marginava singelo e plácido arroio.
Nele, havia uma vaquinha mansa, de olhos meigos, frondosa figueira, que nos abrigava do sol ardente, e podia-se ver, entre a folhagem, o azul transparente do céu transmontano.
Foram dias de descanso e fraternal convívio.
Meu padrinho faleceu; e o jovem, também. Morreu de morte trágica.
Ambos permanecem no meu coração; sepultados dentro de mim.
Conto, ainda, no imenso rol dos meus mortos, a Maria:
Conheci-a desde a puberdade. Passei, talvez, os melhores momentos da infância, na sua companhia.
Certa manhã abalou para Africa. Carteamo-nos durante meses. Depois casou, e a correspondência extinguiu-se.
Soube da sua morte pelo telefone. Teve prolongada agonia, batalhando com doença, que não perdoa.

Muitas mais figuras partilharam comigo, alegrias e tristezas, ao longo da minha longa existência; mas, as mencionadas, foram as que mais me marcaram, deixando-me na alma, dolorosas cicatrizes, que não desapareceram, porque as gravei dentro de mim.

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