quinta-feira, 1 de dezembro de 2016

CARDIOPATIA (OU RÉQUIEM PARA UM VELHO PUNK)

Por José Carlos Vieira (Brasília, DF)

Morreu numa madrugada quente.
a lua... talvez minguante

Ao lado, uma garrafa de vinho pela metade
a taça em cacos jazia no tapete cinza.
Perto do travesseiro
o livro Ao sul de lugar algum,
de Charles Bukowski:
"Randall era conhecido por ser
um solitário convicto, um bêbado,
um homem amargo,
mas seus poemas eram crus e honestos,
simples e selvagens... "   

Morreu
coração explodiu, apesar da pouca idade,
virou uma gelatina disforme dentro da carne enrugada.

Tinha uma amante mais velha:
a cada 15 dias, visitava-o  .
Entre os lençóis, ela gemia, urrava, suava, chorava, ria
e falava de eternidade.
Deixava sempre dinheiro  dentro do aquário
(vazio de água e  cheio de plantas de plástico)...
depois  ia embora em seu sedã dourado 
para a casa do marido.

um tumor poderia levá-lo mais tarde
uma facada de amor ao lado do baço também
um susto, um tique, um teco.

Morreu
como morre um inseto
cego diante da luz do automóvel
anjo no chão depois do pecado.
Os anéis de prata brilhavam nos dedos frios e entrevados
uma caneta, carta de amor por começar,
o papel em branco.

Sim, a morte era branca como aquela folha
inútil, vaga, vazia
inexorável vácuo sem volta

Morreu
diante do espelho silencioso
do quadro azul de Iolovitch
entre remédios e remorsos.

A vida é um clichê
uma mentira encenada no palco
para  a  plateia de medíocres  --
só os medíocres sobrevivem tanto

Era uma vida de pequenos suicídios diários:
acordar, mijar, gritar o nome da melhor mulher
voltar para a cama
tropeçando em amores deixados nas gavetas do passado
aaaahhh! desespero!!

Morreu
sem perdão para a culpa dos outros.
Não um canalha, um cristo, um buda
mas poeta enganado, desenganado
mito do rock sem comprimidos e seringas

não havia vida há muito
rastejava pelos bares
vomitava palavras nos esgotos dos saraus
enfrentava o hálito da morte todas as madrugadas
deixou cicatrizes em diversos seios
mordidas insanas em batom rouge
sinais cravados para sempre
em peles lisas e perfumadas

morreu...
o sol vai nascer...

e as moscas lambem os olhos secos...

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