quarta-feira, 1 de março de 2017

ESTACIONAMENTO (2017)



(arte computacional)

DÁDIVAS

Por Vânia Moreira Diniz (Brasília, DF)

Quando o meu céu clarear,
Quando as nuvens se condensarem,
Quando a luz aparecer brilhante,
E as estrelas voltarem a cintilar,

Quando entender minha linguagem,
A falar de amor com naturalidade,
E procurar em meu coração a liberdade,
Quando puder olhar para o horizonte,

Quando fechar os olhos suavemente,
E mesmo assim enxergar as imagens,
Que fazem parte da minha história,
Quando sonhar com arco-íris novamente,

Quando entender a ternura de teu olhar,
E segurar tuas mãos retendo o calor,
Verificando que o desejo está próximo
E a razão parcialmente encoberta,

Quando puder sentir em meus olhos
O colorido da natureza absorvente,
E a energia dominar meu inconsciente,
Quando comentar a beleza do planeta,

Quando os elementos naturais me dominarem,
E puder novamente alcançar minha alma,
Tê-la entre as mãos e compreendê-la,
Sem a estranheza de nenhum momento,

Então estarei vivendo copiosamente,
Saboreando o fruto especial e deleitoso,
Usufruindo da vida todos os elementos
E redistribuindo as dádivas que me doaram.

GOLDEN EARRINGS

By Arjun Singh Bahti (Jaisalmer, Índia)

Golden rings in the ears, a thick moustache, and a colorful turban: this was the image of a perfect man in our society some years ago.
I had two golden earrings in my ears when I was studying at Jodhpur University in western Rajasthan. One day I noticed that whenever I entered the class, a group of girls always laughed at me. I asked them why. And there was a very funny reply. They told me that in South India, earrings are always worn by ladies. 
“You look like a girl,” a voice came from the group. Well, that was a big challenge for a boy who was thinking he was a perfect man. The girls came from South India, and they were studying here because their parents were working in Jodhpur. 
After some days I came back home. I told the funny story of the earrings to my grandparents. I told them what the South Indians thought about me. My grandfather became a little angry and said, “The man who does not wear earrings is, of course, a woman.” 
Well, I was a perfect man for my grandparents, having earrings. At the same time, the South Indian girls had a different idea about me. 
I took a decision and removed one of the earrings when I went back to college. I told my classmates that with a ring I am a man of tradition and without an earring, I am a man for a South Indian. But the mistake I made was that I removed the wrong one. 
I had no idea what mistake I had made. After some months when I was in Jaisalmer, a foreigner called me and asked me about the ring I had in one of my ears. I told him the whole story. And then I heard something that made me run away from the place. I rushed back home and removed the ring from my ear. Now, either I wear both of the rings or remove both of them. 
I came to know how different cultures have different meanings for different objects.

OS BRINCOS DOURADOS

Por Arjun Singh Bahti (Jaisalmer, Índia)

Brincos dourados nas orelhas, um bigode espesso e um turbante colorido: esta era a imagem de um homem perfeito em nossa sociedade alguns anos atrás.

Eu tinha dois brincos dourados nas minhas orelhas, quando eu estava estudando na Jodhpur University, na parte ocidental do Rajasthan. Um dia, eu percebi que toda vez que eu entrava na sala de aula, um grupo de meninas sempre ria de mim. Eu perguntei a elas o porquê. E tive uma resposta muito engraçada. Elas me disseram que, no Sul da Índia, os brincos eram sempre usados por mulheres.

 “Você parece uma menina”, disse uma voz vinda do grupo. Bem, aquilo foi uma grande  provocação para um rapaz que estava pensando que ele era um homem de verdade.  As meninas tinham vindo do Sul da Índia e estava estudando aqui porque seus pais estavam trabalhando em  Jodhpur.

Depois de alguns dias, eu voltei para casa. Eu contei a história engraçada dos brincos para meus avós. Eu contei para eles o que os indianos do Sul pensavam de mim.

Meu avô ficou um pouco irritado e disse:“O homem que não usa brincos é, obviamente, uma mulher.”

Bem, para os meus avós, eu era um homem de verdade usando brincos. Ao mesmo tempo, as meninas do Sul da Índia tinham uma ideia diferente a meu respeito.

Decidi tirar um dos brincos quando eu voltei para a faculdade. Disse aos meus colegas de classe que, com um brinco, eu era um homem da tradição e, sem um brinco, eu era um homem para o Sul da Índia. Mas o erro que cometi foi ter removido o brinco errado. 

Eu não tinha ideia do erro que eu tinha cometido. Depois de alguns meses, quando eu estava em Jaisalmer, um estranho me chamou e me perguntou sobre o brinco que eu tinha em uma das minhas orelhas. Eu contei para ele toda a história. E, então, eu ouvi algo que me fez perder o rumo. Corri para casa e retirei o brinco. Agora, ou eu uso os dois brincos ou nenhum.

Vi como diferentes culturas atribuem diferentes significados para diferentes objetos.


(Traduzido e adaptado por Paccelli José Maracci Zahler)

UMBERTO ECO (CORDEL)

Por Gustavo Dourado (Taguatinga, DF)

Umberto Eco da semiótica
Da estética medieval
A linguística, a ficção
O contexto cultural
Filosofia em voga
Multiversom literal

Semiólogo, filósofo
Ensaísta, professor
Romances e best-sellers
Na agenda do criador
Grandes livros escreveu
Com impulso inovador

Filho de Giovanna e Giulio
Nasceu em Alexandria
Família de 13 irmãos
No ser a filosofia
Pesquisa e linguagem
O texto na liturgia

1932
Dia 5 de janeiro
No Piemonte italiano
Deu o seu grito primeiro
Nasceu Umberto Eco
Um escritor timoneiro

Literatura na alma
A prosa do candeeiro
A busca da iluminação
O livro foi seu luzeiro
A mente esclarecida
Um artista por inteiro

Mentiras que Parecem Verdades
As Formas do Conteúdo
A Estrutura Ausente
De um escritor graúdo
Que quase tudo conhecia
E que amava o bom estudo

Em Turim, Bologna, San Marino
Destacado professor
Editor de cultura da RAI
Eterno pesquisador
Luminar da sapiência
Foi um livre pensador

Estudou Literatura
Filosofia Medieval
Amava bibliotecas
A essência cultural
Tinha milhares de livros
Verve intelectual

Foi militante católico
Depois veio o ateísmo
PHD em Turim
A língua no ativismo
Crítico da midiocridade
E do vão proselitismo

São Tomás de Aquino
Tese de doutoramento
Análise da cultura de massa
A crítica em seu pensamento
Com a alemã Renate Ramge
Expressou bom sentimento

Antologia de ensaios
"Obra Aberta" publicou
Gruppo 63, contracultura
Barthes o influenciou
"Apocalípticos e Integrados"
Muito bem comunicou

"Tratado Geral da Semiótica"
"Ilha do Dia Anterior"
"O Cemitério de Praga"
Na arte do pensador
"A História da Beleza"
Na senda do escritor

"A Misteriosa Chama da Rainha Loana"
"O Pêndulo de Foucault", "Baudolino"
"Número Zero", última obra
Deu seu toque cristalino
Como Se Faz Uma Tese
Despertou o nosso tino

“Crônicas de uma sociedade líquida"
Obra em preparação
Coletânea de ensaios
Pelo mestre de Milão
Escritos em L'Espresso
Com boa elaboração

Lançou "O Nome da Rosa"
Com fama internacional
Tradução em várias línguas
Referência cultural
Foi filmado por Annaud
Sétima Arte magistral

Prêmio Médicis, Prêmio Strega
Vasto reconhecimento
Doutor em sabedoria
Archote no pensamento
Alquimista da escrita

Reluz o conhecimento.

TORQUATIANA

Por Gustavo Dourado (Taguatinga, DF)

Anjo louco renascente
Anjo barroco cigano
Netuno do oceano
Sertanejo universol
Torquato fenomenal
És poeta soberano

Desfolhaste a bandeira
Da manhã luz tropical
Estrela d'alva serena
Vespertina musical
Ritmaste a nova era
Iluminando o carnaval

Combateste o arcaísmo
O modismo, a opressão,
Ao morrer eternizou-se
Sem medo da repressão
Foste vítima da tortura
Da angústia da razão

Antropófago criativo

MultiArtista criador
Mago do tropicalismo
Morreu de arte e amor
Morreste abandonado
Pelo sistema jogado
No precipício da dor...

GALÁXIAS (2017)


(arte computacional)

THE UNITED $TATES OF BRA$YL

Por Gustavo Dourado (Taguatinga, DF)

Park Way
Lake Side
Quality Hotel
Blue Tree Park
Blue Tree Towers
St. Peter
St. Paul
Mercure
Carlton
Resort
Bay Park
Lake`s
Bob`s
Confort Park
Liberty Mall
Park Shopping
Corporate Center
Plaza Inn
Metropolitan Flat
Designer Center
Star Night
Kongre$$o Natyonal
Personal Banking
Drive thru
Happy hour
Delivery
Coffee Break
Fashion Mall
Manhattan Plaza
The Brazil $A
Onde fica o Central Park?
Ainda tem Conjunto Nacional?

SÁBIA SABIÁ

Por Gustavo Dourado (Taguatinga, DF)

Sabiá Sábia...
Sabe como ninguém
Encantar o canto...

Sabiá Sábia
Canta nas palmeiras
Encanto à brasileira...

Ave do Saber
Cantarola Poesia
Sabiave do Ser

Sabiarte do canto
Dádiva da natura
Dádiva da natura

ANÉIS (2017)


(arte computacional)

PRISONS

Por Pedro Du Bois (Balneário Camboriú, SC)

I close my eyes at the sight of cars
lined up on the narrow street
standing at the red light

those which carry us
those which take us and bring us back

the sight is terrifying as it shows
imprisoned people
by closed windows
from locked doors

the red traffic light precedes
the red of the
thrown body

I turn a blind eye to fate
in repetition: I know about the signal
open to the body

wich narrowly escapes.

PRISÕES

Por Pedro Du Bois (Balneário Camboriú, SC)


 Fecho os olhos na visão dos carros

enfileirados na rua estreita

parados no sinal vermelho
  

os que nos transportam

os que nos levam e nos trazem


a visão aterroriza no que mostra

pessoas encarceradas

em vidros levantados

de trancadas portas
  

o sinal fechado antecede

o vermelho do corpo

arremessado


não abro os olhos ao destino

em repetições: sei do sinal

aberto ao corpo


que escapa de raspão.

CHAMAS (2017)


(arte computacional)

CLARISSE CRISTAL NA REALIDADE LIQUEFEITA

Por Samuel da Costa (Itajaí, SC)

Os outros são um detalhe alheio,
A nós mesmo,
As nossas próprias existências liquefeitas
Parada diante do estúdio de tatuagens, Clarisse tomou fôlego e por fim decidiu entrar no recinto. Medos, dúvidas e receios agora eram coisas do passado, se evanesceram no ar com a claridão da luz do dia. O temor de sentir dores e das marcas indeléveis no corpo já nãos existiam mais.
— Tu vai ficar ai! Parada por muito tempo? Espantando a minha fiel clientela! — A voz fluiu melodiosa pelo ar, apesar do tom grave, das palavras proferidas, que saíram do interior do estúdio. Clarisse adentrou, e sentei uma estranha sensação de nostalgia a percorrer-lhe o corpo inteiro, ao ser tragada, pela escuridão da antessala do estúdio. Ela esqueceu totalmente do celular, último modelo, que a mãe dela lhe dera de presente há pouco tempo. O aparelho moderno jazia em mil nanos-pedaços, no meio da rua movimentada. A culpa não foi da jovem bibliotecária, pois o aparelho vibrou e depois tocou, assim que ela saiu da livraria. Clarisse logo imaginou a cena toda, Anna Victória ligando, em prantos, para mamãezinha querida dela, em seguida um conversa breve, chorosa e rápida. E esta última ligando para a mãe de Clarisse, que liga furiosa para a filhinha rebelde e malcriada. A moça então põe fim ao melodrama, espatifando o aparelho no meio da rua com muita força sem sequer atende-lo.
O estúdio de tatuagens era amplo e moderno, com vários espaços, separados por biombos, estúdios menores dentro de um grande estúdio. Clarisse longo percebeu, no ambiente maior, uma grande lousa digital na lateral esquerda do amplo estúdio, vários cavaletes de muitos tamanhos aqui e ali, notebooks, tabletes de vários modelos e tamanhos, vários estojos de lápis aquarelável supracolor, muitos sprays de tintas, também de várias cores, tamanhos, marcas e preços, vários quadros inacabados em vários movimentos culturais e de escolas de belas artes. Era uma bagunça bem organizada, ali funcionava uma estranha mistura de escola de belas artes com estúdio de tatuagens.
— Então o que te trás ao meu humilde comércio? — Foi Cris, que fez a pergunta de maneira afável. Clarisse já tinha visto pessoas assim em revistas, filmes, reportagens na TV, em livros ou mesmo andando na rua mesmo. Cris era uma figura andrógina e estava de pé bem diante dela. Alta, pele amendoada, com os olhos castanhos rasgados, longos cabelos lisos e negros reluzentes, usava uma camisa física preta, esmalte negro despontavam nas mãos, calça larga e tênis de esqueitista. Mas a voz melodiosa e cheia de vida, a pele sedosa e o sorriso delicado denunciavam era uma mulher.
— Quero fazer uns riscos e furar as orelhas também, minha querida! Aceita cartão?— Clarisse riu sozinha com a própria tentativa patética de ser engraçada. — Os outros são um mero detalhe, alheio a nós mesmo, as nossas existências liquefeitas!— Clarisse leia a frase em voz alta e de forma imponente, que estava pintada na parede do lado direito cada palavra estava escrita com cores diferente e de fonte manuscrita. — Coisa de marqueteiro, metido a poeta frustrado me parece! Qual é o teu nome afinal de contas?
— Podes em chamar de Cris...
— Já sei: — Sua criada, pronta para te servir!
— Mais ou menos isso, começa a falar logo mais especificamente. O que queres minha querida? O que tu pensas em fazer nesse corpinho que Deus te deu?

— Quero fazer uma tatuagem de dragão, no meu braço e por um piercing na orelha!

MAIS UMA VEZ CLARISSE CRISTAL

Por Samuel da Costa (Itajaí, SC)

Dá-me a tua delicada mão!
Vamos juntos...
Vagar pelo infinito.
***
Vem luz da minha vida!
Quero me perder...
Nos teus olhos verdes infindos!
Mergulhar nos teus trigais cabelos
***
Quero passear pela infinitude...
Do teu ser imortal
Descortinar-te por inteiro...
Desvendar o teu ser absoluto
Por fim


A nova Clarisse reapareceu na livraria, parcialmente repaginada. Com o cabelo bem curto e pintado de vermelho pitanga, deu adeus ao longo cabelo preto e reluzente. Um piercing ornamentando a orelha direita, uma tatuagem de dragão que cuspia fogo, que nascia no ombro esquerdo, serpenteava até o fim do antebraço, a pesada maquiagem desaparecer por completo. O sobretudo preto godê inverno ficou sabe-se lá onde, perdeu-se para sempre no tempo e no espaço. Contudo, as vestes escuras como a noite, ainda reinavam soberanas no corpo hialino da jovem bibliotecária, as mesmas que mais tarde dariam adeus. O fato de sair e voltar pela porta da frente e plena luz do dia, o sorriso radiante no rosto e o brilho no olhar denunciavam mudanças profundas e drásticas. Em suma, Clarisse Cristal era uma típica criatura de noite que invadira o dia em definitivo. Ela voltou para o ponto de partido, a livraria seu sagrado local de trabalho e estava com o firme propósito de saber o destino do livros As cinzas das horas.
— Desculpem minhas doces crianças do leste do Éden, meus pequenos arcanjos e querubinas, mas demorei muito para retornar do Café ivory tower! — A voz alta e estridente de Clarisse percorreu toda a livraria. Todos pararam para olhar a moça parada na porta de livraria. Passado o susto inicial todos voltaram para o que estavam fazendo. A senhora do cafezinho vestida elegantemente prosseguiu a sua marcha para a copa, o operador da fotocopiadora abaixou a cabeça, voltou para operar a fotocopiadora de forma mecânica e sonolenta, o subgerente da livraria, com seu paletó impecável não presenciou a cena, estava muito ocupado no escritório no piso superior a receber vendedores, os dignos representantes do mercado livreiro e bem como as estagiárias e os estagiários que só trabalhavam no período da tarde.
Clarisse viu, a poucos metros dela, Anna Victória atender um elegante e exótico casal, estavam os três parados diante balcão de embrulhos para presentes, sem notar da presença dela. Uma jovem balconista estava de costas, alheia a tudo e a todos, procurando algo na estante de embrulhos. Os olhos de Clarisse se detiveram no casal, a mulher uma jovem senhora de meia idade, tinha a pele alvíssima. Uma teuta de cabelos louros, curtos, seios fartos, olhos verdes bem vivos, uma pequena tatuagem verde escura no pulso esquerdo, ladeado de duas estrelas de cinco pontas menores da mesma cor. Clarisse leu o que estava escrito ali, em letra manuscrita e em itálico: Agnes. Ela estava vestida de forma sóbria e elegante, usava um tailleur azul escuro em malha com design quadrado muito sofisticado. Usava um blazer curto em formato arredondado com decote em V, mangas três por quatro, com pequenas fendas nos punhos, fechamento com três botões, forrado, saia com cós largo e pregas na frente zíper na lateral. E por fim uma flor branca pregada na lateral esquerda, entre o ombro e o coração, quebrava um pouco a clima formal do traje. Clarisse deduziu que ela era uma estudante estrangeira pós-graduanda em belas artes ou cadeira correlata, pelos trejeitos da jovem senhora e pelo perfume extravagante e da maquiagem, muito carregada para uma executiva. Também não passou despercebido, para Clarisse, as olheiras da jovem senhora, e o olhar vazio e perdido, para o outro ao lado dela. A outra ponta do casal era senhor de idade indefinida, de pela negra que brilhava na luz do sol, rosto sem barba e o cabelo cortado à moda militar. Ele trajava um clássico paletó azul escuro, calça da mesma cor, colete e vestia sapatos marrom de crocodilo Oxford preto. Clarisse deduziu que se tratava de um estrangeiro também, um africano provavelmente, um professor visitante, ou mesmo um adido cultural. O homem era todo sorriso ao ver o embrulhado delicadamente, passando das mãos da balconista para jovem promotora sênior de vendas.
— Mais uma boa venda amiguinha Aninha? — Falou Clarisse furiosa para a vendedora sênior, que nada sabia de literatura, atendendo aquele elegante casal. Ela calculou que era o livro As cinzas da horas mudando de mãos.

E qual o motivo da Anna Victória atender os dois pessoalmente e não ela, a resposta veio rápido, o homem estrangeiro falou em francês com Anna Victória. O homem falava francês com uma elegância aristocrática, um sotaque de Paris e Anna Victória o respondia com um sotaque canadense. Ele tomou o livro embrulhado da empacotadora e agradeceu e logo mostrou para a jovem senhora ao lado dele. A teuta sorriu amarelo para o elegante senhor africano, e esse engole o sorriso e se vira a moça dos, ele deu um cartão e fala em francês que Anna Victória logo repassa para a balconista e traduz o que o homem acabara de falar.

CLARISSE CRISTAL, A CIDADÃ DAS NUVENS

Por Samuel da Costa (Itajaí, SC)
Eu prefiro frases feitas...
Adoro lê-las… E pensar que são minhas!
Dizer: - Vou te amar para todo o sempre!
Usando velhos clichés.
***
Finjo ser poeta! Às vezes contista...
Nessas horas uso velhos clichés.
Porque dizer: - Eu te amo, não é dizer bom dia!
***
Às vezes leio velhas poesias.
Mas só às vezes! E penso que são meus...
Aqueles idílios de saudade...
***
Às vezes penso ser poeta!
Na pós-modernidade liquefeita!
A usar velhos clichés!
Para poder ousar dizer:
˗Te amo, não é bom dia!
Agora é oficial, Clarisse Cristal é a mais nova cidadã das nuvens, pois passou aquela manhã cinzenta e sonolenta, de outono sem sol, com a cabeça flutuando em brancas nuvens. Naquela hora de extrema dor e desespero, o pensamento de Clarisse pairava, na jovem mãe que acabara de se matricular, em uma academia de musculação, só para mulheres, era a novíssima fixação da jovem mulher naquele momento. Como o clube do livro, fora no mês passado, a redecoração completa da casa no mês anterior, e outros objetos de desejos efêmeros de quem não tem preocupações mais sérias na vida. Sempre era assim, a jovem mãe de Clarisse Cristal sempre tinha uma novidade premente e urgente de tempos em tempos que não chegam vivas ao fim do mês. E a cada efemeridade premente e urgente trazia junto, como subproduto, o pouco tempo para se dedicar a filha única. Já o pai, de Clarisse, era todo e só trabalho, o executivo de meia idade regozijava ao falar a toda hora, em qualquer lugar e para qualquer um, sobre planilhas de custos, relatórios, projeções futuras, mercado internacional, flutuação do cambio, retração da bolsa de valores e uma série de burocratizamos entediantes para os meros mortais.
Agora parada diante da estante de livros, usando um pesado avental de couro cru, usava vestes negras como a noite, a bota cano alto ornamentadas com as cinco fivelas cromadas, a veste nascia na palma dos pés e ai esvanecer nos joelhos, a saia preta crazy-in-love Portugal, um crucifixo, artesanalmente entalhado em madeira, Paolo Santo envernizada, estava no pescoço e uma blusa justa gothic oco rendas cor de vinho emoldurava o tronco. E ela ali estática diante da estante de madeira, repletas de livros velhos, a mais nova cidadã das nuvens pensou em tudo isso e indo por fim parar de forma intempestiva no seu amor platônico pelo o motoboy da livraria. Talvez o estilo de vida dele fosse de fato a real paixão derradeira de Clarisse. As idas e vindas, com o vento morno beijando o rosto, sem horários definidos ou mesmo itinerários preestabelecidos por quem quer que seja. Foi em olhada rápida nas redes sociais do moço, que Clarisse Cristal pode se deliciar e passar a amar mais ainda, aquela figura ideal, com os gostos daquele homem recoberto de doces mistérios, aquela homem um pouco mais velho que ela. A paixão por fotografia, jardinagem, viagens sem destinos certos, tatuagens tribais, música romântica e poesia por fim, logo ele, uma pessoa tão calada no ambiente de trabalho. Isso tudo se passou num estante pela cabeça sonhadora de Clarisse, a mais nova cidadã das nuvens. Até uma voz estridente a trazer de volta para a realidade em que vivia: — Adeus mundo das nuvens, ou melhor, até breve! — Falou uma voz sonolenta e distante dentro dela, que Clarisse reconheceu sendo dela mesma, mas com muito dificuldade.
— Astride... Astride… Astride desce dai guria... E vem cá, sua sonsa, sua tapada. Olha pra mim mulher!
Não tinha jeito, fingir estar ocupada já não dava mais, agora era descer da pequena escada de madeira, se virar e sorrir docilmente, escutar aquela criatura enfadonha e fútil , como se importasse com ela e a vida vazia de objetivos que levava. E a palavra cavalgadura brotou instantaneamente na mente de Clarisse, de forma natural e mais que espontânea. Ela pensou no fato de trabalhar no lugar há quase um ano e do enorme e o chamativo crachá em seu peito, escrito com letras garrafais a nome Clarisse Cristal não fazia diferença para a anencéfala. E foi quase vinte minutos de um relato monocórdio, sem sal e muito chato, onde Anna Victória contou em minúcias atômicas do fim de semana dela em família, que teve a felicidade de conhecer o novo namorado da própria Anna Victória.
— Nossa amiga! Que interessante, meu Deus que bom amiga! Simplesmente fantástico mesmo!
E a vontade de sair dali correndo, é outro clichê que Clarisse tentava evitar, mas em vão, pois o sentimento vinham sem perguntar se poderia vir ou não. E o terraço mais próximo era outra opção a ser considerado, em momentos como aquele era outro clichê a bem da verdade que também chegava sibilante. E a cena insólita, de ver do alto do prédio, o próprio corpo espatifado no asfalto quente e as pessoas passando ao lado do seu corpo sem vida e em pedaços, sem se importarem com ela, a deixou com dor de cabeça.
E entre a família problema, subemprego e vazios colegas de trabalho, paixonite pelo motoboy e repetidos clichês, ela vivia a vida na espera de algo novo, não melhor, mas novo e diferente daquela rotina claustrofóbica e mais que angustiante.



TURA-MALI VIRIDE (ENTRE A LUZ E A ESCURIDÃO)

Por Samuel da Costa (Itajaí, SC)

É o brilho límpido
Vívido
Do cristalino olhar
Da Ninféia-Alba
***
São os verdes olhos
Luminescências atrozes
Vorazes
A me fitar
Da sacrossanta diva
Que na densas alturas vive
***
É sempre
Em tediosas horas mortas
E é sempre ela
A lasciva negra dor
Pungente
De ser eu mesmo
E mais ninguém
Que me condena
Ao infinito sidéreo
Da equidistância
Mais-que-perfeita
***
É o brilho vago
Límpido
Vívido
Ebúrneo
Do cândido olhar
Da magnifica Alba
***
Sempre ela
E mais ninguém

NO RAIAR DO NOVÍSSIMO DIA

Por Samuel da Costa (Itajaí, SC)

Felicidade
Em um instante
Em nanossegundos
Fluidos
Cristalinos
Velozes
Vorazes
Fugazes
Que desintegram em belas letras
***
Felicidade eviterna
Minha siberiana musa
É escutar
A tua arcangélica voz
A segredar-me
Em horas extremas
Impróprias
Inexatas
Ao pé-do-ouvido:
- Já não posso mais viver sem
A tua presença na minha vida!
***
Muito breve amanhecerá
Para nós dois
Sacrossanta ninfa dos bosques
Saudamos o novíssimo dia
No sacrário
No átrio
Das nossas vidas sintéticas
E de mãos das dadas
Sagramos o arrebol
Irmanados
Para todo o sempre

SOMOS MAUS E HIPÓCRITAS

Por Humberto Pinho da Silva (Vila Nova de Gaia, Portugal) 

A maioria das pessoas declara: todos os homens são iguais: raça, religião, posição social, não é motivo de se apartarem.
Mas será que falam verdade?
Tirando exceções – sempre as há, – a maioria assevera o que é politicamente correto.
Usam palavras, ritos, formalismos, que estão na moda. Pretendem enganar-se ou enganarem os outros? Não sei.
Dizem que não são racistas; e realmente não são, desde que tudo se passe longe e com os outros…
Mas, se filho ou filha, pretendem namorar alguém de raça diferente, a atitude muda.
No Brasil, durante anos – e ainda, infelizmente, acontece, – famílias de raízes orientais, não aceitavam casamentos mistos.
Recordo – nos anos setenta, – a mocinha que foi morta pelo pai, porque teimava namorar jovem de religião diferente da sua!...
Os homens são todos iguais…mas há, uns, mais iguais do que outros…
No tempo de juventude, tive colega no liceu, que viu o namorico terminar, porque a mocinha não queria unir-se ao filho de um polícia…
Ela pertencia a família de doutores…
Salazar não pode casar com a filha dos Perestrelos, apesar de ser professor notável, e a menina nutrir grande afeição por ele, porque era filho do feitor! …
-“ Olha António: nós somos muito teus amigos, e temos razões para isso. Tu tens sido um rapaz exemplar e a tua inteligência deve levar-te longe. Isso agrada-nos muito; mas, apesar de tudo, lembra-te de que para nós hás-de ser sempre o filho do nosso feitor.” – Palavras de D. Maria Luiza, mãe da menina. (O Príncipe Encarcerado de Barradas de Oliveira)
Quantos descendentes de humildes cavadores do campo, uma vez obtido grau académico superior, esquecem os companheiros de infância, que não tiveram igual sorte?
Até filhos, há, que escondem a origem modesta dos progenitores! …
Cada qual pensa, consoante a posição que ocupa no xadrez da vida. O povo diz – e diz com razão: “ Se queres conhecer o vilão, mete-lhe a vara na mão.E Millôr Fernandes, definia, formas de governo, deste modo: “ Democracia, é quando eu mando em você. Ditadura, é quando você manda em mim.”
Amigo meu, dizia que os comunistas deviam ser muito felizes no amor…porque nunca ouvira dizer, que distribuíssem – pelo menos parte, – do que lhes saia, na lotaria…Nesse tempo não havia euromilhões.
O modo de pensar e agir, depende, quase sempre, das condições económicas, e do lugar que se ocupa na sociedade.
Os republicanos – nem todos, – invejam a fidalguia, porque não nasceram em família nobre. Todavia, na República, há verdadeiras dinastias. “ É a nobreza republicana…”, dizia, com graça, velha fidalga.
Em suma: asseveramos o que é de bom-tom afirmar; mas, no íntimo, por trás de cada frase, de cada palavra, muitas vezes, há outra frase, outra palavra…outro pensamento.
Queremos parecer: democratas, descomplexados, amigos de todos, e compreensivos; mas – salvo almas santas, – pouco nos importa o bem ou o mal dos outros…
“ Não preciso dele para nada!”, declarava jovem universitário, ao pai, quando este recomendava visitar velho amigo de escola; e realmente não precisava, porque se precisasse, apresava-se a telefonar, e a convida-lo para almoçar…

Como somos egoístas e maus!

O INTELECTUAL É UM ETERNO INCOMPREENDIDO

Por Humberto Pinho da Silva (Vila Nova de Gaia, Portugal)


Para o vulgo, estudar, escrever  e pensar, não é trabalho. Para a maioria das pessoas, trabalho : é o braçal. O do espírito: é puro passatempo ou divertimento.
Diz Fulton - Sheen, que quando se observa alguém com a cabeça entre mãos, logo lhe perguntam, se está com dor de cabeça…
Alçada Baptista, certa ocasião, em entrevista realizada pela RTP, contou que seu antepassado, conheceu velhinha que fora criada de Herculano.
Quando lhe perguntavam: - A senhora conheceu o Senhor Alexandre Herculano? Não conheceu?”
Ria-se muito, e dizia com indiferença:
_ “Conheci, conheci… Era um grande preguiçoso!…Passava o tempo a ler e a escrever!…”
Meu pai era jornalista. Frequentemente era abordado por amigos e leitores, que inqueriam quanto ganhava pelos “escritos”.
Como lhes dissesse que fora a remuneração mensal, nada mais recebia, e ainda colaborava, graciosamente, noutras publicações, pelo prazer que isso lhe dava. Ficavam admiradíssimos. Pasmados… Como podia passar horas a escrever sem receber nada!
Ao falar de Herculano, recordei-me da admiração que o Imperador do Brasil, D. Pedro II, tinha pelo historiador.
Veio visitá-lo na quinta de Vale de Lobos.
O escritor, receou recebe-lo. Em sua opinião, a casa era demasiadamente modesta para um Imperador.
D.Pedro II insistiu, e foi convidado para almoçar.
Conversaram quase três horas. Tão encantado ficou com o Imperador, que logo, que pode, o foi visitar. A simplicidade e a cultura de D. Pedro II ,a todos cativava.
Também o Imperador nunca o esqueceu. Na última visita, que fez a Portugal, a caminho do exílio, ao passar por Lisboa, depositou uma coroa de flores, sobre o tumulo de Herculano, no Mosteiro dos Jerónimos.
O Imperador tinha atenções, pouco usuais, em reis do seu tempo.
Mas, como ia dizendo, o povo admira-se que possa haver, quem escreva por prazer, e muitos, também não entendem, que haja quem trabalhe na vinha do Senhor, apenas para servir.
Amiga minha, sabendo que tinha uma filha catequista, na paróquia da localidade onde reside, inqueriu-me: “Quanto ganha” (!); porque pensava  empregar uma “pequena” como catequista!…
Dizem que Miguel Torga recusou o cargo de ministro, porque precisava de tempo, para pensar e escrever.
Esse prazer, era, para ele, superior à honra de ser Ministro de Estado…
Para o povo, o intelectual é um excêntrico, que passa horas e horas a ler e a escrever, apartado de tudo e de todos.
Mas, como podem compreender o intelectual, se a maioria trabalha, exclusivamente, por dinheiro, para amealharem sempre e sempre mais?!…


AO LADO DA ESTRELA D’ ALVA

Por Urda Alice Klueger (Blumenau, SC)

                                   Quando eu era pequena, havia aquela estrela no céu, assim, de tardinha, sozinha e luminosa, e aprendi cedo que se tratava da Estrela Vésper, ou da Estrela d’Alva, e desse nome eu gostava mais, pois tinha até uma música homenageando aquele astro mágico, que vinha antes da noite, e que diziam que, de manhãzinha cedo, quando todas as outras estrelas iam embora, ela continuava lá, firme, como nenhuma outra.
                                   Pensei muito nela, hoje, nessa estrela que aparecia dentre morros de verdura e umidade, quando era criança com tempo para prestar atenção a tudo, principalmente quando se tratava de astros. Ao longo da vida o tempo foi encurtando e os horizontes estreitos da minha cidade de morros foram fazendo com que eu prestasse menos atenção na Estrela d’Alva, até que hoje, bem no dia de hoje, lembrei tanto, de novo, daquela estrela que tinha até música, e saí para a amplidão da minha Enseada para verificar se ela continuava lá no mesmo lugar, chegando antes da noite, encantando o mundo com sua presença luminosa em plena tarde, e foi aí que veio a surpresa: a Estrela d’Alva já não está sozinha!
                                   Incrivelmente, agora lá no horizonte, no final da tarde, são duas as estrelas. Julguei entender o que acontecia: aquela um pouco menor, se bem que tão cheia de luz, era a mesma Estrela d’Alva que via dentre os morros verde-escuros da minha infância – mas, e a outra? Muito mais luminosa, maior, irradiando uma luz que tanto era vermelha, quanto terna, quanto doce, lá estava a nova estrela, e não ficava dúvida sobre de onde vinha: era a estrela chamada Marisa Letícia que hoje tomou o rumo do céu, que agora sempre vai estar por lá cuidando do que se passa com esta humanidade que consegue ser tão vil, às vezes, que a gente nem entende como o universo a suporta. Bom demais saber que Dona Marisa está lá, agora, livre e solta, sem mais sofrimentos, acima de qualquer opressão ou maldade que queiram lhe fazer, como aquela dos pedalinhos para os netinhos – ô gente nojenta que há sob o sol, gente podre, capaz de fazer maldades desse tipo – se bem que ela também viveu coisas muito grandiosas, como receber chefes de Estado na sua cozinha de gente humilde para comer o seu arroz com feijão e bife, e lembro de Fidel Castro, vindo do continente africano e dando uma paradinha na casa de Dona Marisa, e quando os repórteres insistiram para que viesse até à porta e dissesse alguma coisa, ele declarou, sumamente satisfeito: “Que delícia essa comida proletária!”. Comidinha feita por Dona Marisa, a querida, agora Estrela.
                                   Sou pobre de palavras quando se trata de falar de Dona Marisa, e então vou me apropriar do que disse hoje o professor Dr. Jaci Rocha Gonçalves, dentre outras coisas teólogo e antropólogo, a respeito dessa mulher que tão luminosa foi que acabou virando estrela: “Uma trajetória de luta, de sabedoria silenciosa, de coerência e firmeza com os valores que contam. O maior deles: cuidar, como mãe, dos excluídos. A história reconhecerá no tempo oportuno em que toda a verdade virá à tona.”
                                   O amor que eu tinha por ela era de tal monta que passei a maior parte do dia de hoje chorando dolorosamente – só comecei a me conformar quando a tarde foi para o fim e a vi, luminosa e encantadora, lá no céu, assim como tinha sido aqui na terra.
                                   Aumenta, hoje, a minha galeria de perdas irreparáveis, mas nasceu uma nova estrela! Querida Dona Marisa, a gente ainda vai se encontrar!


                                   (Enseada de Brito, 02 de fevereiro de 2017)

FEVEREIRO NA PRAIA GRANDE DO ITAPOCOROY

 Por Urda Alice Klueger (Blumenau, SC)

                                   Eu lembro muito bem: era fevereiro, e eu estava adolescendo naquele tempo mágico em que amávamos os Beatles e os Rolling Stones. Meu pai tinha um restaurante lá na Praia Grande do Itapocoroy, mas eu nunca morei lá: ficava em Blumenau durante os meses de aula, e ia para a praia nos meses de dezembro, janeiro, fevereiro e julho.
                                   Estar adolescendo naquele tempo mágico em que o mundo fervilhava com uma coisa totalmente nova chamada Movimento Hippie, e ir passar as férias num lugar privilegiado como a Praia Grande do Itapocoroy era mais que passar manteiga em focinho de gato. Se gato fosse, com certeza lamber-me-ia toda de tanta beleza, de tanto encantamento, de tanto mistério que havia naquele canto onde morávamos, e na vizinha praia de Armação do Itapocoroy. Eu e minha irmã Margaret tínhamos nossas obrigações, em tempo de férias, como ajudar nossos pais em coisas do restaurante (havia manhãs em que eu descascava um saco inteirinho de batatas!) e outras coisas assim, mas, nas tardes, baldes de plástico em punho, éramos encarregadas de ir até a vizinha  Armação buscar camarão fresco. O plástico ainda era uma coisa um tanto nova no nosso mundo, e os baldes coloridos tinham seu charme, e lá íamos nós, vencendo a branda elevação que separava uma praia da outra, e que, na direção da Praia Grande, era forrada de uma vegetação baixa, pois o vento Sul, quando batia, cortava qualquer coisa mais alta que quisesse se criar por ali. E na Armação, deixávamos nossos baldes coloridos nas salgas (para quem não sabe, salga é o lugar onde se descasca o camarão), e caíamos na água, por muitas horas, até de tardinha, quando o camarão pescado pela manhã já estivesse descascado e os nossos dedos estivessem roxos e murchos de tanto ficar na água.
                                   Tínhamos uma turminha de tomar banho, naquelas tardes, e lembro agora do Nel do seu Biéli, do Sérgio Pequeninho (que era um grandão, apesar dos seus 12 anos, que ele mentia dizendo serem 14), e outras crianças e adolescentes dos quais já não sei mais o nome. Brincávamos muito na água, naquelas tardes de férias, e mergulhávamos, e quando percebemos, estávamos todos nadando, sem que ninguém tivesse nos ensinado.
                                   Há milhares de coisas para contar daquele tempo encantado em que o mundo se movia entre as amarguras de uma guerra do Vietnã e a mensagem de Paz e Amor dos meigos hippies que nos encantavam. Uma, porém, está muito forte dentro de mim nesse fevereiro: era o florescimento de todas as ervas, arbustos e capins da Praia Grande a cada vez que fevereiro chegava.
                                   Era muito lindo!  Já disse que havia uma suave subida da Praia Grande, que descia em Armação, e que ali o vento Sul não deixava se criar nenhuma planta grande. Tudo era forrado, porém, de capins, matinhos e pequenos arbustos, que pareciam enlouquecer em fevereiro! Todos aqueles seres vegetais explodiam em flores e florinhas brancas e prateadas, desde o mais avantajado arbusto até o mais humilde fiapo de capim, que criava toda uma espiga cheia de florzinhas brancas grávidas de finas sementes, e tudo ficava tão branco e prateado que se tinha a ilusão que, em fevereiro, nevava na Praia Grande do Itapocoroy!  Eu primeiro olhava, depois andava no meio daquela loucura da natureza, tão grávida de beleza quanto as plantas estavam grávidas de sementes, e já de noitinha, quando o sol se punha lá no fundo daquele aclive nevado, e deixava o céu com todos os matizes do vermelho, eu olhava pela janela da nossa cozinha e nem conseguia acreditar que tanta beleza fosse possível. Aquilo me gerava uma grande angústia – era beleza demais para ser absorvida por uma simples adolescente que mal entendia da vida.
                                                                        Há uma cena daqueles tempos que nunca se apagou da minha alma:  eu andando por entre a loucura branca daquele florescimento de fevereiro, cantando a música de Chico Buarque que acabara de sair, e que começava assim: “Você era a mais bonita/ das cabrochas desta ala/ você era a favorita/ onde eu era o mestre sala...”  Era o verão de 1967, e eu já sabia que os verões nunca voltavam, mas também sabia que, nos fevereiros, a Praia Grande do Itapocoroy sempre ficaria coberta da neve de suas flores de novo. Ou não? Talvez hoje tenham construído casas por toda ela, e já não tenha sobrado espaço para viverem ali capins e matinhos que enlouquecem em fevereiro. Tomara que não! Não é lícito que o Ser Humano quebre a magia dos verões.


                                                                       ( Blumenau,SC,19 de Fevereiro de 2002)