quarta-feira, 1 de fevereiro de 2017

MY WIDOWED AUNT

By Arjun Singh Bhati (Jaisalmer, India)

This is the story of my aunt, widowed after 18 years of marriage. And the even sadder story of why, in India, widows are ostracised by their society who believe they are bad luck.
“Are you son of Mr. Laxman Singh?” the doctor asked me. “No, he has no children, I am his wife’s nephew,” I replied. “Then call someone who is a close relation,” the doctor said. I told the doctor all his relatives lived in Jaisalmer, but my aunt is here [in Jodhpur] if he wants to talk to her. The Doctor thought for a while and said: “I am sorry to say both the kidneys of Mr. Laxman Singh have failed and it is better if you take him back to home because there is no more chance.”
I was shocked but with great courage asked the doctor again, what he meant by “no more chance.’ He said Mr. Singh was in his last stage of life and had maybe four or five days more.
I came out of the doctor’s chamber very sad and worried. I went to the general ward where my aunt was sitting near my uncle’s bed. She had not slept for couple of nights and was very tired. She asked me what the doctor told me. I had no words, so I said everything was fine.
When I came out of the hospital I called my father and told him what the doctor told me. He said nothing for a while and then said, “Boy, take care of them till I reach Jodhpur.”
My father arrived the next morning and met with the doctor, who told him there was nothing more to be done. But we told my aunt her husband was doing quite well and that we were going back to Jaisalmer. Tears rolled down her face, she understood this meant she was going to lose her beloved soon.
I still feel guilty about leaving my aunt there alone with my sick uncle. Despite many attempts, they had not been able to have children of their own, and so had treated my sister and I as their own.
A week later we received the news of my uncle’s death. I met my aunt a few days later, she embraced me and wept bitterly. For the next six months she did not leave her house. When she did emerge, clad in black, as dictated by the customs of our society, we took her into our home.
What is the condition of the widows in our society? Widows suffer a very miserable life here in India. She is not allowed to remarry. She is not allowed to wear colourful clothes or jewelry. She is not allowed to attend weddings or festivals. She is not supposed to participate in certain ceremonies like tying the thread during Raksha Bandhan. She is not even allowed to listen to music. If she steps in the way of someone it is a bad omen.
Why? The answer from our social system is she must be punished. Had the person not married this lady, he would have not died. It is believed the widow’s bad luck takes a son from his parents, and a father from his children. Like a compass needle that points north, man’s accusing finger always finds a woman guilty in this male-dominated society.
My aunt suffered the life of a widow for a year. My family and I were very sad for her. Then we all took a challenging decision. We convinced her to find work somewhere. Finally after many social objections she joined a school as an attendant. She is very busy there with the children and has been ordered to wear colourful clothes by the school’s administration. She passes her time well with the students and staff. She is happy now.
It took a lot for our family to go against the traditions of our society. And I think we were able to make that decision because we have been lucky enough to receive a good education. Truly an education can make change: it can change better than anything else.


MINHA TIA VIÚVA

Por Arjun Singh Bhati (Jaisalmer, India)

Esta é a história de minha tia, que ficou viúva depois de 18 anos de casamento. E até a mais triste história do porquê, na Índia, as viúvas são deixadas no ostracismo pela sociedade a que pertencem e que acredita que elas trazem má sorte.
“Você é filho do Sr. Laxman Singh?”, o doutor me perguntou. “Não, ele não tem filhos, eu sou o sobrinho de sua esposa”, respondi. “Então chame alguém que tenha uma relação mais próxima com ele” disse o médico. Eu disse a ele que todos os parentes dele viviam em  Jaisalmer, mas minha tia estava aqui [em Jodhpur] caso ele quisesse falar com ela. O médico pensou por um momento e disse:  “Lamento dizer que os rins do Sr. Laxman Singh estão gravemente comprometidos e seria melhor que você o levasse para casa porque não há mais chance.”
Fiquei chocado mas, com grande coragem, perguntei ao médico novamente o que ele queria dizer com “não há mais chance”. Ele disse que o Sr. Singh estava em seu último período de vida e que talvez tivesse mais uns quatro ou cinco dias de vida.
Eu saí do consultório muito triste e preocupado. Fui à enfermaria geral onde minha tia estava sentada ao lado da cama do meu tio. Ela não tinha dormido por pelo menos duas noites e estava muito cansada. Ela me perguntou o que o doutor havia me dito. Eu não tinha palavras, então disse que tudo estava indo bem.
Quando saí do hospital, liguei para o meu pai e disse a ele o que o doutor havia me dito. Ele ficou em silêncio por uns instantes, então disse: “Filho, tome conta deles até eu chegar em Jodhpur.”
Meu pai chegou na manhã seguinte e se encontrou com o médico, o qual disse a ele que não havia mais nada a ser feito.Mas dissemos para a minha tia que o seu  marido estava indo relativamente bem e que estávamos voltando para Jaisalmer. As lágrimas rolaram no seu rosto e ela entendeu que isto significava que ela iria perder seu amado em breve.
Eu ainda me sinto culpado por ter deixado minha tia lá, sozinha, com meu tio doente. Apesar das várias tentativas, eles não conseguiram ter os próprios filhos. e tinham tratado minha irmã e eu como se fôssemos seus  filhos.
Uma semana depois, nós recebemos a notícia da morte do meu tio. Eu encontrei minha tia poucos dias depois, ela me abraçou e chorou amargurada. Nos seis meses seguintes, ela permaneceu em sua casa. Quando ela saiu, vestida de preto, como determinam os costumes da nossa sociedade, ela veio nos visitar.
Qual é a condição das viúvas em nossa sociedade? As viúvas levam uma vida muito miserável aqui na Índia. A ela não é permitido casar novamente. A ela não é permitido usar roupas coloridas ou joias. A ela não é permitido assistir a casamentos ou festivais. A ela não é permitido participar de certas cerimônias como amarrar o fio durante o “Raksha Bandhan”.  A ela não é permitido, nem mesmo, ouvir música.She is not even allowed to listen to music. Se ela atravessa o caminho de alguém, isso é um mau presságio.
Por quê? A resposta do nosso sistema social é que ela deve ser punida. Se a pessoa não tivesse casado com essa senhora, ela não teria morrido. A má sorte da viúva vem dos seus pais, e um pai do seus filhos. Como a agulha de uma bússola que aponta o Norte, o dedo acusador do homem sempre encontra uma mulher culpada nesta sociedade dominada por homens.
Minha tia sofreu a vida de uma viúva por um ano. Minha família e eu ficamos muito tristes por ela. Então todos nós tomamos uma decisão desafiadora. Nós a convencemos a encontrar trabalho em algum lugar. Finalmente, após muitas objeções sociais, ela foi trabalhar em uma escola como assistente. Ela está muito ocupada com as crianças e foi obrigada a usar roupas coloridas pela administração da escola. Ela passa seu tempo muito bem com os estudantes e com a equipe [da escola]. Ela está  feliz  agora.
Foi difícil para a nossa família ir contra as tradições da nossa sociedade. E eu penso que  fomos hábeis em tomar aquela decisão porque tivemos a sorte de receber uma boa educação. Sinceramente, uma boa educação pode promover mudanças: ela pode mudar as coisas para melhor.

(Traduzido para o português por Paccelli José Maracci Zahler)

BARULHOS

Por Pedro Du Bois (Balneário Camboriú, SC)


No barulho das ruas

algumas horas

de paz e recolhimento



não há música no ar

nem palavra a ser dita



No barulho das casas

alguns minutos

de repouso e acolhimento



não há discurso

nem a fala do ator



no barulho em geral

instante em que o silêncio

aprofunda o gosto



não há como rasgar a folha


nem recitar a prece.

FOLHAS AO VENTO, CORAÇÕES PARTIDOS

Por Samuel da Costa (Itajaí, SC)

  (Para Vanessa Martins DA Maia)

Folhas ao vento
Amoras vermelhas
Morangos maduros
***
Airosas flores no jardim
Um alento
Um renascer
Algo novo por fim
***
Agora é primavera
No meu coração
Um amor que chegou
É saudade que findou
Esperanças de algo novo
Enfim
***
Folhas secas ao vento
Amoras vermelhas
Morangos maduros
Flores sidéreas
No hialino vergel
***
Uma tragédia
Uma despedida
Laços desfeitos
Um amor que se foi
Dois corações
Que se se partiram
Em mil nanospedaços

PASSADO

Por Pedro Du Bois (Balneário Camboriú, SC)


Escavamos destroços

retiramos camadas

terras e terras

sobre séculos



na busca das respostas

que não existem: (pois)

apenas crescemos

pouco a pouco nas gerações

que nos sucederam



assim

como música e vento

e árvores



escavamos trajetos

felizes em nos descobrirmos

menores e meninos.


MADONNA ISHTAR EM CHAMAS

Por Samuel da Costa (Itajaí, SC)

Fez-me
Um sedicioso convite
De irmanados
Ardemos em chamas
Para ascender ao cosmo
Em nanossegundos
***
Fez-me
Um titânico convite
Para juntos
Trespassar
A realidade liquida
Em um estante
***
Fez-me
Um vulcânico convite
De penetrarmos
No labirinto quimérico
Do prazer absoluto
***
Fez-me um convite:
- Vem consorte meu! Dá a tua mão
Vem sonho meu
Percamo-nos
Em venal pecado
Para todo o sempre

MEDITAÇÃO I

Paccelli José Maracci Zahler (Brasília, DF)

Creio ter me esquecido de Ti.
Tentei viver a vida do meu modo,
Fazer as coisas do meu jeito
E fracassei.

Hoje, volto meus olhos para Ti
Em busca de socorro.

Quase perco a esperança...

Tanto trabalho, sonhos,
Planos, anos,
Tudo desperdiçado.

Tenho me esforçado
Em fazer o melhor...

De que adianta tudo isso

Longe de Ti?

MEDITAÇÃO II

Paccelli José Maracci Zahler (Brasília, DF)

Eu me afastei de Ti,
Talvez tenha pensado
Que podia tudo
Como Tu.

Sofro tanto...

Minha solidão aumenta a cada dia
Amigos foram-se embora
Minha Fé se perdeu
Eu me perdi

Não tenho identidade.


Quem sou sem a Tua mão me amparando?

ZORRILHO I – COMO TERÁ SIDO?



Por Urda Alice Klueger (SC)

                                        Fico olhando para ti, meu bichinho, que um dia, num passado que não sei, já foste muito amado, tanto que qualquer pequeno carinho te deixa emocionado de ternura, os olhos líquidos de lágrimas, um milímetro da linguinha de fora dentre os dentes fechados, assim como quem não crê que aquilo tenha voltado (o carinho), ou lembrando talvez de um lugar e de um tempo do passado quando foste tão feliz com aquela pessoa que te deu amor, te ensinou a entender que estavas seguro, te ensinou a andar de carro no banco de traz, bem comportadinho...
                                               Penso em quem foi essa pessoa: uma criança? Um homem? Uma mulher? Que nome terias então?
                                               Impossível saber as coisas da tua pequena vida, que a veterinária disse que está entre dois ou três anos – que foi que te aconteceu? Eu, cá comigo, penso que em algum momento foste roubado com quem te quis porque eras pequenino, parecido com uma raposinha, pretinho com detalhes champanhe – quem te roubou? Um homem, uma mulher, uma criança? Impossível saber, mas decerto foi a partir daí que começou o teu duro calvário, sabe-se lá como, se ficaste passando de mão em mão, se fugiste à procura de quem te amava e foste de ancorar no lado podre da vida sem saber, sem querer – sei o que te passou aí nesse teu tempo turbulento: fome, maus tratos, falta de amor... Em algum momento conheceste o ódio de uma mulher má, daquelas parentes de bruxa malvada (talvez fosse a própria bruxa, como saber, aqui nessa proximidade de Naufragados, lugar de sabás de bruxas?), dessas pessoas de coração empedernido, dessas que dá asco até em Satanás, que foi aquela que os meus vizinhos viram quando veio a esta Enseada de carro e te atirou longe, na maré alta, para que te afogaste, sem nem o direito a uma última refeição, como o sórdido sistema prisional dos Estados Unidos ainda concede aos que estão para serem executados.
Sei de ti desde então, do alvoroço dos vizinhos por terem falado com aquela mulher má que ainda ficou jogando chispas de raiva antes de se ir como uma possessa, do teu quase último alento para sair das águas, todos molhadinho e trêmulo, e de como te segurei junto ao coração. Sei da fome que tinhas, que comias qualquer comida, mesmo cheia de formigas, e do teu cansaço, e da tua sede, e de como dormiste como um mortinho quando te botei dentro de uma casinha improvisada com uma caixa de papelão.
São cinco semanas, agora, que estamos juntos, e quanta coisa aprendi a teu respeito, como essa de teres o conhecimento do amor, um dia, quando não sei adivinhar, mas que posso imaginar, e fico a me perguntar quem te ensinou o amor, um dia, que não esqueceste dele mesmo depois de todas as maldades pelas quais passaste, e te tornaste capaz de amar de novo, e a cada pequeno gesto de carinho que te faço, quase te derretes de amor por mim, e vejo nos teus olhinhos marejados que há a lembrança de alguém, lá no passado, que te amou também, que foi tão bom para contigo que agora continuas apto a amar de novo...                                 
Hoje és meu cachorrinho e te chamo de Zorrilho, por tua semelhança com uma raposinha, e sabes e entendes quando te chamo assim que agora esse é o teu nome, e percebo, na tua ânsia de correr atrás de cachorrões quinze vezes mais pesados do que os teus parcos dois quilos (penso que tinhas uns 500 gramas quando chegaste, cinco semanas atrás), que serias capaz de morrer por mim.
Tu és bonzinho, educado, cordato, cachorrinho que sabe andar de carro e que num instante aprendeu que gosta muito de comer carne, molhos saborosos, nata, requeijão, coisas refinadas para um cão, e andas a rejeitar estas bobagens como arroz ou ração e, sobretudo, o quanto amas o pouco de amor que posso te dar (Atahualpa tem grande ciúme de ti) – não terias aprendido tanta coisa em cinco semanas se lá no teu curto túnel do tempo não tivesse havido aquela pessoa que um dia te deu amor em grande quantidade. Corta-me o coração ver teus olhinhos marejados de lágrimas quando recebes carinho e me fitas através daquele espelho líquido, transformado em emoção pura, a pensar que um dia, lá no passado...
Ah! Zorrilho, já se tornou bastante complicado vir a viver a vida, um dia, sem ti!

(Enseada de Brito, 14 de Janeiro de 2017)



(DES)IMPORTÂNCIA

Por Pedro Du Bois (Balneário Camboriú, SC)



Na relativa importância

legamos conhecimento



impávidos descendentes

de (im)próprios deuses

cientes em verdades



em relativa (des)importância

insetos voam ao redor

da luz onde se multiplicam



utilitários ascendentes

transferem aos novos

o necessários para a vida.


MIGRAÇÕES E CONSTRUÇÕES SÓCIO- CULTURAIS – UM ESTUDO DE CASO

Por URDA ALICE KLUEGER (SC)

RESUMO
                                  Estudo de caso de uma migrante branca, de origem européia, de uma região do Estado de Santa Catarina colonizada por brancos de origem européia para outra região de Santa Catarina também colonizada por brancos de origem européia, e os graves problemas de racismo/rejeição enfrentadas pela mesma ao longo de grande parte de sua vida.

Palavras-chave:Migração – migración;Racismo – razismo;Rejeição – recusación; Etnicidade – etnicidad


MIGRAÇÕES E CONSTRUÇÕES SÓCIO- CULTURAIS – UM ESTUDO DE CASO


1. INTRODUÇÃO

                                  Enquanto pensava, aqui diante do computador, em como começar este texto, me veio à lembrança umas fotos que recebi, faz poucos anos, dos Açores. Creio que por dois ou três anos colaborei com um jornal de lá, o que me granjeou diversas amizades naquela terra européia perdida no meio do mar, e um dos meus leitores, um escritor já muito idoso e dado ao hábito de muito fotografar, me mandou lindas fotos do interior da ilha em que morava, São Miguel. Sabia, já naquela altura, que, partidas por sucessivas divisões feitas por heranças ao longo de mais de cinco séculos, as terras açorianas estavam divididas em propriedades cada vez mais minúsculas, e as fotos que recebi mostravam bem o que sabia, mas eram lindas aquelas fotos, com os pequenos lotes de terra cuidadosamente cultivados ou, no mais das vezes, transformados em pastos para um gordo gado que abastecia a Europa de leite, queijo e carne.
                                  Além de lindas, as fotos me despertaram outra curiosidade: as cercas. Com tão minúsculos pedaços de terra, era impossível que logo no primeiro plano das fotos já não existissem as cercas, e lá estavam elas, de madeiras irregulares, cortadas, dispostas e pregadas irregularmente, muito diferentes das cercas às quais eu estava acostumada desde a minha infância.
                                  Como eram as cercas da minha infância e as cercas que até hoje conheço e convivo no Vale do Itajaí/Brasil? Como a parte deste Vale aonde vivo é de colonização alemã, as cercas quase sempre são feitas de materiais muito uniformes (estaquetas, telas, tijolos, sejam quais os materiais que forem), numa uniformidade que levam a pensar no senso estético que, de maneira geral, agrada ao descendente dos moradores dos antigos estados alemães que aqui vivem. Não é possível que se generalize e se diga que tal gosto é um gosto exclusivo dos descendentes de alemães, pois hoje é muito grande a quantidade de etnias que convive no Vale do Itajaí, mas, no mais das vezes, as cercas das casas e de outras propriedades mantêm uma simetria que, ao longo da minha vida, fui cada vez mais associando à coisa cultural do alemão.[1]
Na minha adolescência tive a oportunidade de conviver largamente com as gentes de origem lusa que então viviam em Armação do Itapocoroy, município de Penha/SC, e quando, na década de 1990, recebi aquelas fotos dos Açores, lembrei-me imediatamente das cercas que então eram usadas pelos pescadores de Armação do Itapocoroy, tão irregulares e sem simetria em 1970 quanto as açorianas de 1970.[2]
As considerações acima são um tanto quanto antropológicas, mas foi um exemplo que me veio com muita força, quando comecei a pensar no estudo de caso que quero em fazer. É um exemplo que ilustra bem que dentro das etnias européias, consideradas “brancas” pelos projetos de formação do povo brasileiro que são criados após a segunda metade do século XIX, etnias que, a princípio, eram bem-vindas em pé de igualdade pelas elites brasileiras dos séculos XIX e XX, mas onde havia muitas diferenças culturais, e que mesmo entre elas criavam-se sérios problemas de aceitação ou não pelos indivíduos que as compunham, quando, de alguma maneira, se “mesclavam” ou “misturavam”. Considero que este preâmbulo é necessário para entrar no meu estudo de caso. 


2. O ESTUDO DE CASO

2.1 O LUGAR DE ORIGEM

                                   A pessoa “estudada”, no caso, é uma mulher que hoje (2004), está com 83 anos e é proveniente de uma região de colonização lusa próxima do litoral de Santa Catarina, Tijucas. Essa região tem uma colonização bastante antiga feita por portugueses e seus descendentes, tendo, no final do século XIX, tido também uma colonização italiana. A pessoa estudada prefere não se identificar e pediu para ser chamada de Gilda. Além de não admitir a sua identificação, Gilda negou-se a gravar uma entrevista de História Oral. Os depoimentos que obtivemos dela são produto de uma longa convivência, onde as histórias foram sendo contadas aos poucos.
                             Gilda nasceu em 1921 bastante afastada do centro nervoso do Brasil, isto é, o Rio de Janeiro, lugar onde estava o governo central do país, onde se decidiam as coisas da política, da economia, da cultura, onde, naquela altura de Primeira República, os então cientistas procuravam programar um futuro étnico para o Brasil, que tinha como eixo central um ideal de branqueamento. Giralda Seyferth[3]  vai nos falar mais a respeito:

“O ideal de branqueamento ganhou o reforço das teorizações racistas intensificadas no final do século XIX e tornou-se tema de uma incipiente “ciência das raças” à brasileira, que deu respaldo acadêmico às especulações sobre o poder branqueador do processo de miscigenação herdado dos tempos coloniais.  Assim, ao pessimismo de Nina Rodrigues, que imaginava o Brasil irremediavelmente atrasado em face da presença substantivas de “raças inferiores” e “mestiços inferiores”, opõe-se o otimismo de João B. de Lacerda, antropólogo do Museu Nacional, que visualizou a possibilidade do branqueamento fenotípico do brasileiro do futuro por meio de um processo seletivo de mistura racial num prazo de três gerações.(...)”.
                       
                                               Com poucas palavras Giralda Seyferth resume o pensamento que corria pelo Brasil, nesse tempo, sobre a futura formação do seu povo, o que estava fazendo com que, desde a década de 1820, se pensasse em trazer imigrantes para o nosso país, principalmente imigrantes “brancos”, de origem européia.
                                   Gilda era uma brasileira branca, de origem européia. A princípio, sua vida não teria maiores problemas quanto à sua cor e/ou etnia, já que era muito clara, de cabelos castanhos e olhos verdes. Não era uma pessoa que tivesse que passar pelo cientificismo “branqueador” que existia no país. Apesar da sua origem lusa, crescera ela na casa do padrinho, agricultor, imigrante italiano, e muito absorvera da cultura italiana do padrinho e demais parentes dele, tanto costumes, quanto forma de religião, um pouco da língua, etc. O padrinho e os costumes absorvidos também eram de proveniência européia, de “gente branca”, e a mescla de sua origem lusa com a cultura italiana do padrinho não chegou a lhe causar maiores problemas. Ela freqüentou a escola possível na época, que eram três anos de ensino básico, e teve algumas regalias que não eram comuns a todos os brasileiros desse tempo onde a comunicação era incipiente, como a convivência com um padre holandês que era doutor em Teologia[4], e do qual, até hoje, lembra e relembra os ensinamentos, bem como a convivência com algumas lideranças locais, italianos de  cultura européia moderna, diferente da maioria dos brasileiros daquela localidade, e com os quais estava em contato através do padrinho e da igreja. 
                                               Gilda cresceu no momento em que o Brasil começava um projeto de industrialização de base nacionalista, que se alastrara até Santa Catarina, formando os três primeiros núcleos industriais do Estado: Blumenau, Brusque e Joinville. O país, que até então fora rural, começava a necessitar de mão-de-obra especializada nos diversos ramos da indústria, e era necessário que houvesse excedentes nessa mão-de-obra, para garantir seu funcionamento sem interrupções. A falta de excedentes sempre colocaria as empresas industriais em risco de alguma greve, coisa que o Capitalismo não podia permitir, pois paralizações poderiam levar a falências ou prejuízos. Assim, na década de 1930, o Presidente Getúlio Vargas vai direcionar a legislação do país para que passe a causar entraves aos agricultores, forçando muitos deles a abandonar a agricultura e a mudar-se para as cidades industriais, atraídos pelo emprego que então era conseguido facilmente.[5] Gilda contou como eram tais dificuldades: até àquela data um agricultor podia matar um porco, vender sua carne, sua banha e demais derivados sem nenhum problema – a partir das novas leis, se um agricultor quisesse vender uma lata de banha, teria que ter um contador, organizar uma contabilidade, comprar caros selos que significavam os impostos. Tornava-se bastante difícil a vida de um agricultor. Assim, como tantos outros agricultores, ela acabou deixando a vida agrícola e mudando-se para a cidade de Blumenau, onde de imediato conseguiu emprego na antiga Empresa Industrial Garcia.
                                   Blumenau era um outro mundo, no sentido de ter outra colonização, outros costumes, outra língua e ser industrializada, e ela afirma até hoje: “Deram-me emprego porque eu era bem crescida, bem saudável, bem branca.” Tinha 17 anos, então, e na Europa estava a rebentar a Segunda Guerra Mundial.

2.2 A MIGRAÇÃO

                                   A cidade de Blumenau, na época, vivia sua nona década desde a fundação. Situada no Vale do Itajaí, Estado de Santa Catarina, fora fundada por um alemão chamado Hermann Bruno Otto Blumenau e colonizada, principalmente, por alemães, se considerarmos seu núcleo inicial. Pelo resto do Vale, diversas outras etnias tinham se estabelecido, enfatizando-se a presença de italianos  que tinham chegado a partir de 1875. No espaço que hoje (2004) é o município de Blumenau, no entanto, a presença alemã era predominante.  Voltando a Giralda Seyferth:[6]

                                                        “(...) As críticas sobre o modo de colonizar o Sul (...) não resultaram em práticas outras: as colônias continuaram recebendo imigrantes europeus e seus descendentes, e os brasileiros em geral continuaram excluídos.

                    Até a década de 1940, algumas questões configuraram-se mais diretamente vinculadas ao debate sobre a identidade nacional brasileira e ao problema da imigração, e serão brevemente analisadas neste trabalho:
                    (...)
                    c) A questão étnica suscitada pela emergência, ainda no final do período imperial, das etnicidades construídas a partir da experiência compartilhada do processo imigratório. Nesse contexto, a etnia paradigmática da exclusão é a alemã, considerada a mais irredutível ao caldeamento e à assimilação. (...).” [7]

                                    Giralda Seyferth como que dá a “chave” para os acontecimentos que Gilda vai contar a seguir. Para situar melhor a época, é necessário que se olhe o governo de Getúlio Vargas não apenas como auxiliar valioso na implantação da industrialização brasileira, mas também no autor de um programa diferente do até então seguido para a formação de uma “raça” brasileira. Se até seu governo o que se discutia na academia e entre muitos cientistas era o “branqueamento” do povo, Vargas vai inverter o processo, desconsiderando o eurocentrismo então vigente para criar um outro personagem que deveria nortear a vida do Brasil de então adiante. O fato é analisado da seguinte forma por Seth  Garfield[8]:

                        “Como parte de seu projeto multifacetado de construção de um Brasil novo – mais independente economicamente, mais integrado politicamente e socialmente mais unificado, Vargas voltou-se para o valor simbólico dos aborígenes. (...) Os índios eram defendidos por Vargas por conterem as verdadeiras raízes da brasilidade.
                        (...)
                        Ao difamar o europeu e consagrar o indígena, os ideólogos e intelectuais da Era Vargas inverteram ou subverteram a concepção eurocêntrica da história da cultura e do destino nacional, vigente na elite brasileira. A essência da brasilidade havia sido redefinida por membros da elite e da intelligentsia: ela não atravessou mais o Atlântico, mas brotou do solo da nação, da sua fauna, flora e dos seus primeiros habitantes.”

                                               Se Vargas tinha um novo projeto de Brasil e começava a aplicá-lo a nível nacional, tal realidade não chegava a interferir com o que acontecia na antiga colônia Blumenau, onde os alemães e seus descendentes continuavam sendo a etnia “mais irredutível ao caldeamento e à assimilação”.[9] Há que se lembrar da nota de rodapé nº 1, onde convencionou-se que a palavra “alemão” designaria tanto os habitantes dos antigos estados que iriam formar a Alemanha em 1871 quanto seus descendentes. Um novo fenômeno vai acontecer em 1890, quando se cria, a partir da Alemanha, a doutrina do pan-germanismo, e o conseqüente “deutchstum”, o que poderíamos traduzir como “germanismo”, mas que não será discutido neste espaço. Continuar-se-á a usar a palavra “alemão” quando necessário se fizer referir-se aos habitantes de língua alemã que viviam em Blumenau.
                                               Gilda, brasileira branca de origem européia, vê-se então entre outra gente branca, de origem européia, que não está interessada no projeto nacionalista de Vargas, e que vê em Gilda um s[UC1] [UC2] [UC3] [UC4] er inferior, uma “cabocla”.  A definição de caboclo é a de mestiço entre o branco e o índio, mas na cidade de Blumenau tal palavra tem outra conotação: para o “alemão”, “caboclo” é quem não é alemão nem de “origem”[10] alemã. Nessa altura, é muito grande o número de filhos, netos e outros descendentes de alemães imigrantes já nascidos no Brasil, mas a comunidade continua a se sentir “alemã”, mesmo já sendo brasileira de diversas gerações. Ela “cabocliza” as etnias que não falam alemão, principalmente as pessoas de etnia lusa, e que ainda por cima são católicas, já que é muito grande o número de protestantes luteranos que vivem na cidade de Blumenau de então e de agora. É como cabocla que Gilda é recebida na nova comunidade, pois detém três graves defeitos: tem sobrenome luso, á católica e não fala a língua alemã. As discriminações que vai sofrer por conta desse acaboclamento resultante da migração pela qual passa são muito grandes em quase todos os ambientes: no emprego, conseguido por ser “bem branca”, na família do rapaz com quem vai namorar a seguir, por ser etnicamente diferente, etc. São quase infinitas as queixas e considerações que Gilda tem sobre as segregações e discriminações que vai sofrer logo na sua chegada e ao longo de algumas décadas adiante. Embora Jeffrey Lesser vá dizer que “A ‘brancura’ continuou como um requisito importante para a inclusão na ‘raça’ brasileira, mas o que significava ser ‘branco’ mudou de forma marcante entre 1850 e 1950” [11], o grupo étnico alemão, ao considerar “caboclos” aos demais grupos étnicos, reserva para si tal “brancura”. Giralda Seyfert de novo vai tomar da palavra[12]:

                    “Os grupos imigrados construíram suas identidades étnicas (...) baseados na percepção das diferenças em relação à sociedade brasileira. (...) A retórica etnocêntrica que acompanhou a elaboração das identidades estabeleceu o caboclo como o outro, o oposto ao imigrante europeu. – categoria usada como sinônimo de brasileiro. Esse sistema categórico construído por oposição envolve, principalmente, critérios raciais e formulações subjetivas acerca do caráter e da mentalidade – em que o caboclo aparece como indivíduo racialmente inferior, e o epípeto de “preguiçoso” é o menos carregado de intenções pejorativas. (...) Na representação do pioneiro, a categoria colono (trazida do jargão oficial) identifica os imigrantes europeus e seus descendentes, e a colonização é definida como um processo civilizatório instaurado na selva brasileira. Nela, certamente o caboclo brasileiro ocupa a posição de bárbaro diante de civilizados!”

A intenção deste texto é mostrar a história da personagem Gilda como migrante, e assim ficará de fora toda uma discussão que poderia ser feita aqui sobre etnicidade, pertencimento, etc., que caracterizaria ainda melhor a sociedade “alemã”, ou “de colonos”, como poderemos chamá-la daqui para a frente, em contraposição à cultura, língua, religião e demais costumes da cultura de onde Gilda provinha.
Taxada antecipadamente como “preguiçosa” e outros adjetivos ainda mais contundentes, Gilda adentra ao novo ambiente disposta a se fazer respeitar nele. Segundo ela, aprendeu que “quem fica quieto acaba vencendo”, e muito deve ter se calado para chegar hoje à posição de respeito que ocupa na mesma sociedade para onde migrou faz 70 anos, e que por antecipação já a excluía. Ela conta das grandes barreiras enfrentadas quando começou um namoro com rapaz “colono”, “de origem”, “alemão” (quando, na realidade, de alemão ele só tinha um avô). Ela não era “de origem”, como se a única origem válida para uma pessoa fosse a alemã.  Origem lusa não era “origem”, bem como muitas outras. Assim, sem “origem”,  Gilda vai enfrentado passo a passo cada rejeição que sofre na família do noivo (bem como nos outros ambientes aonde vive, como no trabalho, por exemplo), e acaba se casando com o mesmo. “Mantinha a casa sempre impecavelmente limpa e arrumada, para que não pudessem falar” – lembra ela. “Jamais deixava qualquer líquido escorrer pela beirada do fogão (os antigos fogões de tijolos), para que nunca alguém pudesse chegar e dizer que o meu marido se casara com uma cabocla que não era limpa.”  É possível se imaginar a constante tensão em que vivia Gilda, continuamente sob pressão, constantemente tendo de provar ser ela tão boa ou melhor que os “alemães”, para, de alguma forma, diminuir a rejeição onde vivia. Ao mesmo tempo, tem um bom relacionamento com o marido “de origem”.
“O meu marido se casou comigo para valer, para sempre. Era alguém que gostava realmente de mim.” Portanto, a exclusão no público não vai interferir no privado, e ela conta com orgulho como, aos poucos, a partir do casamento, o jovem marido vai passando a gostar sempre mais da sua comida do que da comida da mãe dele. É como uma redenção – é a aceitação dos seus costumes. Até hoje ela critica muito certos costumes alemães: “O feijão de vara, a cenoura, etc., eu refogava numa panela e depois os ensopava sem jogar o caldo do próprio legume fora. Os alemães cozinhavam até ficar mole, jogavam toda a água fora e depois comiam o legume com vinagre. Jogavam fora a melhor parte da comida, a parte onde estavam as vitaminas, as coisas boas. Eu era cabocla, mas sabia melhor que eles o que era bom para a saúde.”
Sua redenção parece ter sido no dia em que um cunhado esteve a visitá-los, e depois comentou com seu marido: “A tua mulher é limpa mesmo! Não é como a mulher de Fulano (uma “alemã”) que deixa o café escorrendo pela beirada do fogão” – referindo-se à forma como ela mantinha o fogão e o resto da casa. Quase setenta anos depois, ela lembra muito bem daquele momento.
Quando vieram as crianças, seu cuidado redobrou. Tinham que estar sempre muito limpas, muito bem cuidadas, de um jeito que não permitisse que qualquer parente “alemão” pudesse fazer qualquer crítica. A tensão continuava , e ela sabe como, nas festas da família, suas cunhadas mostravam suas crianças para os estranhos e diziam: “Veja que bonitinha! Tadinha!” – e ela sabia que o “tadinha” era um adjetivo que significava que se tratava de uma criança mestiça, portanto, de qualidade inferior, filha de uma cabocla.
Naquelas primeiras décadas de tensão ela adaptou-se o mais que pode ao grupo no qual penetrara, tentando vencer suas diferenças de migrante. As cercas de estaquetes da sua casa eram tão simétricas e bem feitas quanto as de qualquer outro “alemão”; seu jardim era composto por retilíneos canteiros de rosas e violetas, e ela plantava gérberas em filas tão “prussianas” quanto qualquer das suas cunhadas. Além da casa, do jardim e dos filhos, ela muito trabalhou para ajudar o marido, pequeno comerciante, e assim, aos poucos, acabou conquistando um respeito que não tinha no começo, diante da família do marido e da sociedade em geral. Deve ter demorado, no mínimo, umas três décadas. Ela viu todo o desenrolar da Segunda Guerra Mundial em Blumenau, viu o processo de nacionalização que o governo Vargas promoveu, viu a gente da qual agora passara a fazer parte ser obrigada a falar a sua língua (ela conta que inúmeras vezes foi censurada por falar palavras do português que os “alemães”, no seu parco entendimento de tal língua, lhe censuravam pelo uso), viu as muitas outras migrações para a cidade de Blumenau. O “colono” foi, muito lentamente, absorvendo as realidades brasileiras, sendo que, nas palavras dela, “Alguns não têm jeito. Continuam sendo “de origem” e não se interessam por mais nada.”
Gilda criou bem sua família, cuidou do seu marido até seu falecimento prematuro, aos 62anos, portanto, há mais de vinte anos, teve tempo, mais de uma vez, já na sua viuvez, de ir cuidar de cunhadas que estavam doentes, em cidades distantes, conquistando cada vez maior respeito na sociedade e na família. Ela está viva o tempo suficiente para ter visto diversas coisas: sua cultura primeira, sua migração e uma cultura nova, à qual se adaptou com firmeza, o processo de nacionalização, o recriar da cultura do pessoal “de origem”, quando Blumenau criou a Oktoberfest, em 1984. Com a criação da Oktoberfest, ela demonstrou muita emoção. Era uma festa que a fazia lembrar de tempos antigos, quando, mesmo cabocla a ser humilhada a todo instante, viveu os tempos coloridos da juventude, enfrentou uma família ferrenhamente “de origem”, casou-se.


2.3 HOJE

Hoje Gilda vive um refluxo da sua cultura original. Ela é economicamente independente; seus filhos tiveram sucesso econômico e profissional na vida e ela recebe considerações de pessoas e grupos estranhos por isto, além de ser considerada por sua própria personalidade que enfrentou as adversidades e lutou contra costumes estabelecidos, saindo vencedora de uma luta que durou quase toda a sua vida. É bastante evidente o quanto lhe importa o fato de ter conquistado o respeito da família do marido, que hoje lhe tem grande consideração, como é evidente a surpresa que tem quando vê autores portugueses famosos internacionalmente, como Eça de Queiroz ou o prêmio Nobel de Literatura José Saramago, usando palavras que lhe foram censuradas na juventude.
Gilda, hoje, não deve explicações de sua vida a ninguém, e então a sua cultura original pode refluir sem críticas, e basta-se chegar ao portão do jardim da sua casa para entender isto. Acabaram-se as gérberas em filas prussianas; acabaram-se as fileiras retilíneas de roseiras. Seu jardim é, hoje, exatamente um jardim português, com todas as plantas e flores misturadas, bem como se pode ver na maioria dos jardins daquele país ibérico. Sua casa é cercada por um muro retilíneo como os muros “alemães”  que foram falados na introdução deste texto, mas nada a impediria de fazer novas cercas como as da sua cultura lusa. Como migrante, algumas coisas ela acabou absorvendo da nova cultura, e como podemos ver num texto traduzido por Eunice Nodari[13]: “Grupos étnicos em cenários modernos estão constantemente se recriando e a etnicidade está sendo reinventada continuamente como resposta às realidades inconstantes tanto dentro do grupo como na sociedade anfitriã.”
Assim, com a liberdade do respeito adquirido e da idade, Gilda hoje pode viver a sua real personalidade, que vamos tentar explicar qual seja:  já não é mais a personalidade da mocinha “cabocla” que um dia avançou para dentro do terreno “inimigo”, nem a mulher “de origem” com a qual quis se parecer quando vivia sua luta pela conquista de respeito e de um lugar ao sol. Hoje ela pode se dar ao luxo de ter seu jardim luso e seu muro mais ou menos prussiano sem ter que explicar nada a ninguém. 

CONCLUSÃO
                                  
                                   No estudo de caso efetuado ficou bastante claro como uma cultura pode ser “absorvida” por outra, pelo menos durante algum tempo. São muitíssimos os casos de migrações pelo mundo, e há de haver tantos outros casos de rejeição/absorção/interpenetração/ e/ou outras possibilidades a cada vez que uma migração acontece. Sentimentos nos quais sequer se pensa, às vezes estão embutidos nos machucados e dores que as mudanças acabam provocando em grande parte dos migrantes, sentimentos que os ajudam a sobreviver no novo ambiente, onde, como no caso estudado, até a língua original era negada, primeiro num todo, depois, em parte. Também se pode observar que o migrante, de alguma forma, conserva sua cultura original, e, havendo a possibilidade, ela ressurge, mesmo que já ressurja mesclada com coisas da cultura adotiva. Novas sociedades se formam a partir do encontro de etnias diferentes, como é o caso de Blumenau, que já não é “colona” e nem “cabocla”, mas uma nova cidade onde ainda continuam se mesclando as muitas etnias que para ela migraram e continuam migrando. 

  

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CONZEN; Kathleen Nehls; GERBER, David A.; MORAWSKA, Eva; POZZETTA, George E.; VECOLI, Rudolph J. Fórum. The Invention of Ethnicity: A perspective from the U.S.A. In: Journal of American History. Fall, 1992. Traduzido por Eunice Sueli Nodari

GARFIELD, Seth. As raízes de uma planta que hoje é o Brasil: os índios e o Estado-Nação na Era Vargas. In: Revista Brasileira de História, São Paulo, n. 39, 2000, p.13-36

LESSER, Jeffrey. O Hífen Oculto. In: A negociação da identidade nacional: imigrantes, minorias e a luta pela etnicidade no Brasil. São Paulo: Editora da UNESP, 2001, p. 17-35

SEYFERTT, Giralda. Identidade Nacional, diferenças regionais, integração étnica e a questão imigratória no Brasil. In: ZARUR, George de Cerqueira Leite. Região e Nação na Aqmérica Latina. Brasília: Editora da UnB: São Paulo: Imprensa Oficial do Estado, 2000, p. 81-109




[1] Deixo convencionado que sempre que eu usar a palavra “alemão” ou “descendente de alemão”, estarei me referindo aos descendentes dos moradores dos antigos Estados que, em 1871, vão dar origem ao país que hoje conhecemos como Alemanha. Quando quiser me referir a algum alemão nato, darei a devida informação. (Nota da autora)
[2] Como quase tudo o mais que recebe a influência deste mundo quase globalizado, as próprias cercas irregulares de Armação do Itapocoroy praticamente desapareceram. (Nota da autora)
[3] SEYFERTH, Giralda. Identidade nacional, diferenças regionais, integração étnica e a questão imigratória no Brasil. In: Região e nação na América Latina. Org. ZARUR, George Cerqueira Leite. Brasília: UnB, s.d.
[4] Padre Jacob Hudleston Slatter (Nota da autora)
[5] A legislação que vai dificultar a vida do agricultor consiste numa série de leis complementares principalmente à Constituição de 1934, além de outros atos, como Decretos. O Professor Mestre em Educação e Geógrafo, Aldo Moretto Sobrinho, realizou a pesquisa sobre tal legislação, tendo usado como fonte, principalmente, boletins que eram emitidos para os Contabilistas da época. Esta informação foi confirmada com o referido professor, verbalmente, em julho de 2004.   
[6] SEYFERTH, Giralda. Op.cit. p. 88
[7] Grifo da autora.
[8] GARFIELD, Seth. As raízes de uma planta que hoje é o Brasil: os índios e o Estado-Nação na era Vargas. In: Brasil, Brasis. Revista Brasileira de História nº 39, v. 20. São Paulo: ANPUH, 2000.
[9] SEYFERTH, Giralda. Op. Cit., p. 88
[10] Até hoje, ano de 2004, Gilda usa a expressão “de origem” para designar os alemães e seus descendentes, como se ser “de origem” significasse ser alguém “melhor” na escala social. (Nota da autora)
[11] LESSER, Jeffrey. O hífen oculto. In: A negociação da identidade nacional: imigrantes, minoria e a luta pela etnicidade no Brasil. São Paulo: Editora da UNESP, 2001. p. 21
[12] SEYFERTH, Giralda, op. Cit. P. 97-98
[13] CONZEN, Kathleen Nehls et alii. The invencion of Ethnkcity: A perspective from U.S.A. In: Journal of American History, Fall 1992. Traduzido por Eunice Nodari. 

UM BEIJO NEGRO À FLOR DA PELE

Por Samuel da Costa (Itajaí, SC)

(Para Bel Lopes)

És o enamorado meu
E de mais ninguém
***
Beijo-te
Perdidamente em extâse
Dou-te felinamente
O meu felídeo coração
Por inteiro
***
És o meu ignoto poeta
Abstrato e absoluto
***
O estro teu
O teu vergel em chamas
Pertencem-me
É só meu
E de mais ninguém
***
Entre sussurros, gemidos
E prantos
Abraço-te
Rasgo-te
Mordo-te
Sou a tua negra musa ideal
Em chamas
***
Pertence-me
Poeta olvidado
No pelágio abissal infindo
***
És somente meu
E de mais ninguém
***
Pertence-me
És meu
E de mais ninguém

ABSTRAÇÕES NO LABIRINTO

Por Samuel da Costa (Itajaí, SC)

(Para Clarisse da Costa)

Vem negra poetisa
Enlaça
O teu corpo incorpóreo
Ao meu
***
Vem para mim
Irmanar
A tua poesia
Na minha
Para todo o sempre
***
Vem negra ardea
Vamos juntos aguardar
A negra noite cair
sobre nos
***
Unidos
Compor lado a lado
Em verso e prosa
Até as nossas vidas
Acabarem
***
Vem nubente de ébano
Dá-me a tua delicada mão
Adentramos
O vergel encantado
Em chamas
***
Vem minha sacrossanta
Negra musa
Ama-me perdidamente
Sob a negra luz
Do negro luar


NOITE CARA DE PAU

Por Clarisse da Costa (Biguaçu, SC)

E cai-se a noite... A solidão se tornou sua melhor amiga, o estranho é que ela não se acostumou ainda com a situação. As coisas mudaram seu curso e nenhum móvel da sala saiu do seu devido lugar. Somente o sofá que não é mais o mesmo. A sala ficou florida com a estampa do novo móvel e de repente Cruz e Sousa ao lado, ‘’O Assinalado’’ entrou no seu cotidiano: - Chegada a hora de crescer mais menina... – falou para si mesmo. E o maldito relógio não parou o tempo e cada segundo passava mais rápido que uma tartaruga. Tartaruga? Tadinha, a coitada mal anda com aquele corpinho! E a velha Biguaçu mais parada que Florianópolis em dia de domingo! Pelo mundo a fora, Jacob’s editam as regras da boa convivência: Negro não pode existir. Se é que isso pode se chamar de uma boa convivência!
São Jacob’s nos colocando grilhões e amordaças, ferindo a nossa liberdade. Um cara de pau ou mais um racista? O fato concreto é que a negritude não se cala por nada. O que ninguém imagina, é que um Jacob se quer disturba a real história dos negros. Na internet caiem por terra num apertar da tecla enter do seu aparelho. Um bloqueio e tudo resolvido. Algo temporário na verdade. A noite prossegue e os seus pensamentos vão longe. Para onde é o pouso nem ela sabe.

O estranho é que ela mesma escreve esse texto enquanto todos dormem e o único barulho é o apertar das teclas do seu computador. E diante de si um maluco que diz sentir algo por ela, um senhor beirando 62 anos. Mais um maluco na rede social ou desses caras de pau? E o que dizer da noite? Cara de pau chega tomando conta de tudo como se fosse seu e nem pergunta se a solidão pode ficar!