segunda-feira, 1 de janeiro de 2018

CANTIGA PARA 2018

Por Maria Félix Fontele (Taguatinga, DF)




JUSTIÇA (?) (2017)

Por Paccelli José Maracci Zahler (Brasília, DF)


GATO

Por Márcia Duro Mello (Bagé, RS)



Gato na janela,
gato na tuba,
gato sem botas,
tempero na panela,
gato de juba,
figos em compotas,
gato no borralho,
noite em luar...
Cebola, pimenta e alho,
gato na cadeira,
sopa a provar...
Gato do mato,
cheiro de pasto,
estrela estrelada.
Gato na rede,
rede de gato;
mato a sede
na água do pote,
enquanto espero
o amanhecer.

(Publicado no livro Antologia do Movimento dos Escritores Bageenses, 2017)

OLHO DO FURACÃO (2017)

Por Paccelli José Maracci Zahler (Brasília, DF)


CALUNDU GUZERÁ (THE LAST CIGARETTE)

Por Samuel da Costa (Itajaí, SC)

                                                Em memória de Raquel da Costa e Izabel Cristina da Costa

O que vem depois...
 De uma grave ofensa?
 Socos?
Empurrões?
 Gritos de dor?
***
E por onde será...
Que anda o meu agressor?
Que vivia a me atormentar!
Lá na minha distante infância.
***
Hei my little give me your hand!
Because so easy walk to the moon tonight.
Don't go alway my sister.
Don't go…
***
O que vem depois dos insultos?
Só a chama do ódio!
Que arde em chamas...
 Sem parar!


UM MAR DE LETRAS

Por Samuel da Costa (Itajaí, SC)
                                                                                  Para a poetisa Patrícia Raphael

Um mar infindo
Um mar infindo de letras
Um mar infindo
 De belas letras mortas
A vagar no cosmo sem fim
Entre astros mortos
***
Um sul-fragio universal
E nada mais
Para além disto
***
Um negro oceano infinito
De infinita dor
Em negras lágrimas secretas
Em meio
A um universo vasto
Multi-cores sem fim

ENTRE FEIRAS E MAFUÁS

Por Samuel da Costa (Itajaí, SC)
                                                                         Em memória de Miguel Maria da Costa
Feiras de prendas e jogos
Transmissão ao vivo
De música ruidosa
Que explode nos alto-falantes
Bagunça, confusão, rolo
Lá bem no alto do morro
***
Não é surpresa para mim
E para mais ninguém
Que entre Feiras e Mafuás
O negro foi barrado na portaria
***
Entre Feiras e Mafuás
Não é surpresa para mim
E para mais ninguém
Que o céu carregado
De negras nuvens
Despencou em fortes chuvas
Invadiu o meu barraco
Quebrou os meus discos de acetato
Em mil nanos-pedaços
***
Entre Feiras e Mafuás
Tem a cruz em chamas
E não é surpresa para mim
Que tem um mar belas letras
Negros e negras
Sagram e choram
A negra dor
A negra sina

A IRMANDADE DAS FLORES

Por Samuel da Costa (Itajaí, SC)

Há um hiato impressionista
Dentro de mim
São fundos intervalos abissais
Que nada dizem
Cravados
Dentro de mim
***
São mil histórias surreais
Inacabadas
Vagando dentro de mim
Mil vozes a gritar
Dentro de mim
***
Há uma negra e fria primavera
Sem flores vagas
Inarredável
Dentro de mim
***
Há uma ignota irmandade
Solapada
Dentro de mim
***
Há outros eus abstratos
Perdidos ad eternum
Transitando livremente
Dentro de mim

HOJE, ENCONTREI O NATAL

      Por Urda Alice Klueger (Enseada de Brito, SC)

(Escrito em 2008, logo após a Tragédia das Águas que assolou Santa Catarina)

                                   Hoje encontrei o Natal. Meu cachorro me acordou antes da hora costumeira, seis e pouco no relógio, e saí com ele para dar a volta matinal. No portão aqui do nosso abrigo de flagelados passava um homem empurrando uma bicicleta e levando uma cachorrinha presa por uma corrente.
                                   No primeiro momento, só vi a cachorrinha, amizade certa para o meu cachorro, e os dois pularam um no outro e se lamberam, e o dia começava prometendo ser bom. O homem perguntou:
                                   - A senhora sabe qual é o caminho que se deve tomar para se chegar à BR 470?
                                   Eu disse que ele estava certo, que era seguir sempre em frente aquela rua, que ele acabaria chegando à BR 470.
                                   - E lá vai dar em Guaramirim, não é mesmo?
                                   Não, não era mesmo. Para Guaramirim havia que se tomar a rodovia Guilherme Jensen, e lhe expliquei como fazer, onde entrar.
                                   - Mas não dá para ir pela BR 470?
                                   Para Guaramirim não dava. Prestei mais atenção no homem, um dos tantos andarilhos que circulam por nossas estradas nestes tempos estragados pelo neoliberalismo, apesar de agora já estar mais que comprovado, lá nos centros de poder, que o neoliberalismo não passava de uma falácia das piores, simples estrangulador de pobres para encher cofres já abarrotados de ricos.
                                   O homem da manhã estava incrivelmente sujo e coberto de feridas, com dois abcessos abertos nas bochechas. Havia muita crosta e muito pus em muitos lugares, e cobrindo tudo, a grande crosta de pó que é vestida, atualmente, quando a gente se locomove pelas ruas ou estradas da minha região, depois que secaram os mares de lama oriundos do derretimento dos morros. Um executivo que saísse a andar por aí de bicicleta acabaria com a mesma crosta de pó – só não teria as feridas e os abcessos. Fiquei pensando: seria uma doença, ou seria falta de determinadas vitaminas? Talvez fossem as duas coisas; talvez fossem algumas doenças; quem garante que os abcessos nas bochechas não proviessem de terríveis dores de dentes que aquele homem sorridente com sua cachorrinha tivesse tido só e desamparado, nos escondidos de passar a noite que ele devia conhecer? Aí ele me disse:
                                   - Mais para frente há acostamento? É que meu braço está quebrado em dois lugares, e está difícil tocar a bicicleta. Com acostamento fica mais fácil...
                                   Só então reparei no gesso do braço esquerdo, tão coberto de pó e sujeira que a gente nem prestava atenção.
                                   Sim, haveria acostamento mais para a frente, e fomos conversando, e os cachorros foram correndo, e eu lhe mostrava as muitas feridas nos morros, de onde a minha cidade sangrara como nunca havia sangrado antes, e as casas que já não existiam, e outras casas que haviam ficado enterradas na lama até a altura da metade das janelas...
                                   - Quantos quilômetros o senhor faz por dia, com essa bicicleta?
                                   - Dá para fazer uns 80...
                                   - E a cachorrinha anda isso tudo?
                                   - Não, ela vai aqui no engradado...
                                   Havia um engradado de plástico amarrado no bagageiro da bicicleta, onde o homem carregava seus bens. Não olhei muito, só reparei que havia uma garrafa de dois litros quase cheia de água.
                                   A cachorrinha tinha se animado demais, andava fazendo umas incursões para o meio da rua, e ele temeu por ela. Puxou-a pela correntinha, colocou-a no engradado, onde ela ficou, toda faceira e feliz, sem nem se importar com a interrupção das brincadeiras que fazia com meu cachorro. Ela amava profundamente aquele homem, morreria por ele. E ele me contou:
                                   - Era uma filhotinha jogada fora. Encontrei-a perdida numa rua de Navegantes. Está com quatro meses.  
                                   Conversamos rua afora, e fui descobrindo que aquele homem entendia de todas as estradas e cidades do sul do Brasil.
                                   - Em Barra Velha – contou-me – há uma mulher que tem doze cachorros. Todos grandes. Ela os acha na rua e leva para casa. É uma mulher de coração muito bom. Gasta mil reais por mês, só de ração.
                                   Eu me admirava.
                                   - Lá em Itajaí a enchente foi terrível. Eu vi como as casas de madeira ficaram imprestáveis. Mas a senhora tem certeza de que para ir a Guaramirim não tem que pegar a BR 470?
                                   Eu tinha. Perguntei-lhe o nome. Era José Aparecido e já não lembro o sobrenome, que ele tinha um singelo orgulho de ostentar, como quem tem um último bem que não pode ser roubado por nenhum neoliberal.
                                   - Em Guaramirim eu tenho amigos! – ele me contou, como um segredo de enorme valor, e me fez lembrar de Saint-Exupéry.  Eu estava mesmo bem curiosa para saber o que ele ia fazer numa cidade pequenininha. – Já trabalhei seis meses em Guaramirim catando papel, tenho amigos lá. Os meus amigos de lá fazem festa de Natal! No ano passado teve até chope!
                                   Pronto, estava explicado! Fiquei com um bocado de vergonha desta dor que há dentro de mim, que está me impedindo até de ouvir música de Natal, quando ela aparece sem querer.
                                   Ele contou-me outras coisas, sobre os três carrinhos de catador que já tivera; sobre as diferenças de preços de latinhas vazias que existia em Blumenau e em Curitiba – agora só tinha a bicicleta e a cachorrinha, que ia que ia montada na garrafa de água do engradado.
                                   - Mas a senhora tem certeza de que para Guaramirim não tem que passar pela BR 470?
                                   Garanti-lhe de novo, dei mais indicações do caminho. Perguntei:
                                   - Como é a festa de Natal em Guaramirim? Tem galinha assada?
                                   - Tem de tudo, dona. Tem carne, tem maionésia, tem chope! Tem até as mulheres que trabalham lá! – ele não disse da fraternidade que deveria ter, do consolo dos braços amigos, que sabe do reencontro com alguma antiga namorada, mas tudo estava implícito na intensidade da emoção dele.
                                   Eu deveria voltar, já fora longe demais pela empoeirada Rua das Missões, onde íamos caminhando, e via meu cachorro de língua de fora. Disse-lhe:
                                   - Tenho que ir. Meu cachorro já está com sede.
                                   Então, a galanteza maior de todas que ele poderia ter feito:
                                   - Mas tem água aqui na garrafa, dona. Pode dar para o cachorro.
                                   Sei bastante da vida dos andarilhos deste mundo para saber que não conseguem água com facilidade, que muitas vezes são apedrejados quando se aproximam de alguma casa para pedir água, pois as famílias pensam que eles vêm para lhes roubar as crianças. Aquele homem de abcessos nas bochechas e esmagado pelo poder do Capital dividia sua última riqueza sem nem pensar. Então me senti pequena e mesquinha diante da grandeza dele, e fiquei com vontade de chorar. Antes que o fizesse, despedi-me, e ele me apertou a mão sem nenhum constrangimento pelas feridas supuradas, com a galhardia de um rei.
                                   - Boa viagem para o senhor! Não esqueça de virar à direita onde lhe ensinei!
                                   - Feliz Natal, dona! É uma pena que a conversa já está acabando tão cedo! É muito bom viajar quando a gente pode ir conversando!
                                   Em Guaramirim, vai haver um grande Natal! É uma notícia muito boa. Será que aquele homem não era um dos reis magos e não estava encardido assim por ter atravessado os desertos bíblicos?
                                   Feliz Natal, José Aparecido! Aqui, choro de emoção por ter encontrado assim o Natal!


                                                           Blumenau, 14 de Dezembro de 2008.

AH, O LAGO TITICACA!

Por Urda Alice Klueger (Enseada de Brito, SC)

Era bem assim que eu pensava nele desde que o vi pela primeira vez, numa foto no meu livro de Geografia, lá nos tempos de Ginásio: “Ah! O Lago Titicaca!”. Aquela foto em preto e branco do meu livro de Geografia acompanhou-me pela vida afora e, muitos anos depois, em 1993, acabei indo conhecer o lago mais alto do mundo. Nessa época, eu já tinha visto muitas outras foto­grafias do mesmo, já falara com pessoas que o conheciam pessoalmente - enfim, era quase uma expert em Lago Titicaca.
Meus sonhos para o Lago Titicaca eram lindos: eu caminharia durante horas pelas praias que o margeiam, dentro de uma tarde idílica e amena, vendo os mais incríveis panoramas; eu passearia de barco, lentamente, sobre as suas águas que sabia azuis, numa perfeita comunhão com a natureza andina, por horas inesquecíveis, nascidas do sonho suscitado por um livro de Geo­grafia.
Na prática, não foi nada assim. Já fazia dias e dias que eu e minha amiga Sônia vínhamos viajando pelos alti­planos bolivianos, região extremamente árida, seca, e carente de oxigênio (está-se a 4.000 m de altitude). Apesar da aridez e do mal-estar da altitude, é lindo conhecer a Bolívia, com sua cultu­ra tão diferente da nossa, e eu achava que chegar ao Lago Titicaca seria a parte mais linda da viagem.
Saímos, enfim, uma manhã, de La Paz para o Lago Titicaca. Não é longe, e a aproximação dele deu uma melhorada na aridez geral e apareceram arvorezinhas, roças, vegetação em geral, e, principalmente, o estupendo azul do Lago, a se esgueirar pelos entremeios da paisagem de morrinhos, tão lindo ao sol que a minha alma parecia florescer - estava, enfim, chegando ao meu livro de Geografia do Ginásio!
Atravessamo-lo no Estreito de Quitina, e como fiquei surpresa ao ver nele navios de verdade, e a Capitania dos Portos à sua beira! Era uma travessia pequena, que se fez de bal­sa, e eu ansiava por chegar à Copacabana, às suas margens, onde nos demoraríamos por mais de um dia!
Copacabana é a praia do boliviano. Estação balneária muito freqüentada no verão, estava quase abandonada quando lá chegamos, no mês de maio. Além do Lago, a cidade tem a nos oferecer o Santuário de Nossa Senhora de Copacabana,  a padroeira da Bolívia, uma praça, diversas ruas, um banco, e um mingintório público (onde se faz xixi), palavra nova do espanhol para mim.
É claro que Sônia e eu dirigimo-nos ao Lago tão logo arranjamos hotel e comemos alguma coisa. Meu coração ba­tia forte de emoção (e de falta de oxigênio) enquanto negociava com um barqueiro um passeio pelo Lago. Embarcamos, eu a molhar a mão na água límpida e gelada da esteira do barco, crente estar vivendo um dos maiores sonhos da minha vida - quando o barqueiro voltou. O passeio todo durara 15 minutos, e não houve o que fi­zesse o safado do barqueiro voltar para a água.
Braba com ele, era hora da outra parte do sonho: longas caminhadas à beira do lago mais alto do mundo. Dei os primeiros passos confiante, mas, 20 metros depois, tive que desistir: a altitude me tirava as forças,  o coração dispara­va, a cabeça parecia que ia explodir diante do esforço. Tivemos que contentar-nos, eu e Sônia, em ficarmos sentadas num pedaço de madeira, enquanto, na nossa frente, uma família boliviana apro­veitava para lavar roupa dentro do Lago gelado.
Quando o mal-estar da altitude melhorou um pouco, voltamos lentamente à cidadezinha de Copacabana, passando pelo mingintório público. Gastamos uns 15 minutos conhecendo o Santuário de Nossa Senhora de Copacabana, e depois descobrimos que nada mais havia para fazer às margens do Lago Titicaca. Tu­ristas de todas as partes do mundo, tão aborrecidos quanto nós, espalhavam-se pela praça ou compravam algum artesanato. Todos falavam um pouquinho de espanhol, e quando conversávamos com algum, o papo era invariavelmente o mesmo:
- Vocês são de onde?
-  Somos do país tal.
-  E vão até onde?
- Vamos a Machupichu.
E aí acabava o vocabulário deles, e o tédio voltava para todos nós. O que foi bom, no Lago Titicaca, foram as trutas, enormes trutas grelhadas que se comia por três dólares, regadas a cuba-libre. Mas os sonhados passeios transformaram-se em desilusão.
Blumenau, 18 de agosto de 1996.

ENCONTRO COM A INFÂNCIA

                 Por Urda Alice Klueger (Enseada de Brito, SC)

                                   Faz dois dias que me encontrei com a minha Infância no Bairro Itoupava Seca, perto da Eletro-Aço, e eu ia em pé na garupa da bicicleta do meu pai! Como numa voragem, o coração me carregou no Tempo e retrocedeu até a época em que quem vivera aquilo fora eu, e embora quem fosse em pé na garupa da bicicleta de um pai de uns trinta e poucos anos fosse um garoto de uns dez, espadaúdo para a idade, bem alimentado e com o cabelo loiro espetado à escovinha, de repente era eu quem estava ali, e era mesmo meu pai, que também teria, na época, uns trinta e tantos anos.
                                   Então, de repente, era como estar dentro de um filme real, a infância me cercando em girândolas, e eu, menina já de escola andando em pé no bagageiro da bicicleta do meu pai, segurando nele com toda aquela total confiança que crianças pequenas tem nos pais, os pés metidos em calçados “Sete Vidas”, os vestidinhos coloridos que minha mãe costurava voando ao vento, o cabelo curto cortado pelo barbeiro Schoenfelder, pois ninguém confiava que criança assim arteira como eu conseguisse manter em ordem cabelos compridos, e como eu queria ter as longas tranças da minha prima Lori Passold! 
                                   Andar em pé no bagageiro da bicicleta do meu pai era o meu orgulho, a minha marca, já que nenhuma outra criança andava assim! Ficava cheia de pose, arriscando passos de trapézio, sem o menor medo de cair. Aquele bagageiro de bicicleta era como se fosse um palco onde eu podia viver todas as fantasias, e respirando profundamente eu as vivia na imaginação, e penso que, naquela Blumenau da década de 1960, com seus 60.000 habitantes e suas ruas sem calçamento, não havia quem não prestasse atenção naquela menina corajosa que não temia andar em pé no bagageiro da bicicleta do seu pai!
                                   Mais cedo ou mais tarde, naqueles tempos, alguém sempre acabava dizendo, quando me conhecia comportadamente ao lado da minha mãe, vindo da missa: “Ah! Mas esta é aquela menina que anda em pé na bicicleta!” – e eu fazia de conta que não, mas inchava de orgulho, por estar sendo reconhecida pela minha marca pessoal e por ter tanta coragem! 
                                   E então, nas segundas-feiras, que era o dia de folga do meu pai, andávamos por aí tudo, desde a buscar tangerinas no Garcia Alto até a ir comer algum maravilhoso doce com nata batida na Confeitaria Söcher, na cidade (ah! Até hoje chamamos o centro de Blumenau de cidade, como o fazíamos no passado, fazendo com que os novos moradores achem engraçado!), e para ir-se à cidade, era necessário calçar-se os sapatos brancos de Nugget e as meiazinhas coloridas, deixar de lado os “Sete vidas”! Nossa Rua XV já era calçada de paralelepípedos (guardei um lá em casa, quando fizeram o novo calçamento), e por aquela pista tão moderna meu pai disparava de bicicleta e o vento zunia nos meus ouvidos, enquanto, de pé, me apoiava com toda a confiança nos ombros dele!
                                   Então, faz dois dias, encontrei-me com a minha infância na rua de asfalto lá perto da Eletro Aço! Aquele menino e o pai dele eram como eu e o meu pai, e apressei o carro, no movimento congestionado, para ver direito como era aquele pai, pois talvez fosse o meu! O menino eu via bem, e é claro que devíamos ter coisas em comum, e assim pelas costas aquele pai tinha a vitalidade e a idade que o meu teria quando eu era criança – mas o trânsito não me deixou emparelhar com aquela bicicleta que, em conluio com o Tempo, fizera com que eu fosse como que abduzida para o Passado! Acabei por ter que me contentar em me manter em harmonia com o fluxo de automóveis e ver a bicicleta com a minha infância disparar lá para a frente, quando a sinaleira fechou. Não consegui ver o rosto daquele ciclista que talvez fosse o meu pai!
                                   Ficou a força das lembranças, no entanto, e toda a torrente de emoções que veio com elas! Como os canais de comunicação com o Tempo e o Espaço ficam livres e cheios de sensibilidade quando a gente é feliz!

                                                           Blumenau, 22 de julho de 2006.

                                                         

A ÚLTIMA HORTA DO CENTRO DE BLUMENAU

Por Urda Alice Klueger (Enseada de Brito, SC)

                                   Disseram-me que ele morreu com 88 anos – deve fazer, portanto uns 60 ou 70 anos que aquela horta existe, bem na esquina da Alameda com a rua  Coronel Vidal Ramos, que antigamente se chamava rua Paraná. Faz duas semanas que ele morreu – chamava-se Arno Zendron, e eu o conhecia de vista desde criança. Pertencia a uma família longeva – é de estranhar que não tenha completado o século, como outros dos seus irmãos, mas há que se convir que 88 anos também é uma idade respeitável.
                                   Seu Arno Zendron morou quase naquela esquina que citei acima por toda a sua vida – disse quase, porque ele morava um tanto fora da esquina – quem morava na esquina era a sua horta.
                                   Faz uns 30 anos que comecei a prestar atenção àquela horta. Trinta anos atrás Blumenau crescia, sumiam as vacas de atrás das casas, novas gentes, novas caras e novos costumes vinham fazer ninho na nossa cidade. Apareceram os supermercados, com vidros resplandecentes e espelhos nos seus setores de hortifrutigranjeiros; apareceram os frangos congelados e resfriados nos longos balcões de vidro, apareceu o leite “de pacote”. Paulatinamente, as hortas de Blumenau foram abandonadas; já não se criavam mais galinhas atrás das casas, venderam-se as vacas.
                                   O símbolo da resistência dos tempos antigos, em Blumenau, era a horta do seu Arno Zendron: no centro da cidade, em área nobre, que ia, aos poucos, sendo rodeado por edifícios de apartamentos, ela resistia, e tinha de tudo: a cebolinha, a salsa, as cenouras, a couve-flor, a alface, o aipim. Agora de cabeça não lembro bem das árvores, mas acho que há algumas bananeiras, um pé de pêssego, ralas árvores que não deveriam tirar o sol das hortaliças. Galinhas também andavam por lá; eram poucas, mas de vez em quando as havia, bem como se o tempo não tivesse passado, bem como se ainda se vivesse nos tempos da colonização, antes que o mundo tomasse o ímpeto de transformação que acabou tomando. Eu prestava a maior atenção naquela horta; sabia, o tempo todo, o que ela representava, e que ela era a última.
                                   Faz poucos dias que soube que o seu Arno Zendron tinha viajado para outras plagas. Fui lá olhar a horta, então. Ela já está um pouco descuidada, com capim crescendo nos canteiros, bem como fica uma horta antes do seu último suspiro. Enquanto o seu Arno esteve doente, ela começou sua despedida. Penso que ninguém irá ressuscitá-la, que está irremediavelmente condenada à extinção, para dar lugar, daqui a pouco, a um outro qualquer edifício de apartamentos.
                                   Chegou ao fim a última horta do centro de Blumenau. É como se tivesse acabado uma antiga resistência. É muito triste.


                                               Blumenau, 30 de Abril de 2002.

                                              

A PESSOA, A MULHER, A NEGRA

                                                        Por Clarisse da Costa (Biguaçu, SC)

            Eu estive pensando no que me disseram certa vez, que o negro é o culpado da sua escravidão. O que tem lógica nisso tudo. Mas a geração atual o que tem haver com os erros de nossos antepassados?
Vamos entender um pouco sobre escravidão. Ela teve início na África. Coisa de tribo. Una tribo dominava a outra e esta tribo vencedora tinha o direito de escravizar os habitantes daquela aldeia. Porém não eram maltratados.
            A escravidão é um tema complexo assim como o racismo. Não dá para dizer que o negro é o maior racista por essas questões, ou dizer que Clarisse Da Costa é racista por abordar esses assuntos. A questão em ser negro neste país é que somos em número a minoria ocupando os espaços. 
            Agora não falando de mim, até mesmo porque não quero me passar por vítima, vou falar da população negra. Certa vez me disseram que o negro se vitimiza e envergonha a si mesmo usando o sistema de cota. Mas esse é o sistema do Brasil, espaços têm, porém são pra poucos. A diferença é gritante até entre o homem negro e a mulher negra.