quinta-feira, 1 de fevereiro de 2018

DESMISTIFICANDO O CHÁ DE COCA

Por Urda Alice Klueger (Enseada de Brito, SC)


Em 1993, minha amiga Sônia e eu fizemos os preparativos para uma viagem à Bolívia e ao Peru no meio de muita farra: voltaríamos casadas com traficantes de cocaína, voltaríamos viciadas em chá de coca. É claro que não queríamos casar e nem nos tornarmos viciadas, mas nossos amigos riam muito dos nossos planos.
Viajamos, enfim. A primeira cidade boliviana que conhecemos foi Santa Cruz de La Sierra, ainda na parte baixa da Bolívia, antes de se subir os Andes. Santa Cruz nos surpreendeu por ser uma cidade grande e bonita, plana e planejada, cujo centro, com uma antiga catedral espanhola, linda praça e casario espanhol, é cercado por moderna cidade de prédios modernos, agradável e aconchegante.
Chegamos de manhã à Santa Cruz, e gastamos o dia conhecendo a linda cidade (eu esperava uma cidadezinha de tugúrios, muito feia) e, de tardinha, passamos por um mercadinho, onde havia na vitrine ... chá de coca! Há que se lembrar que o chá de coca, na Bolívia, é tão legal e consumido quanto o cafezinho, no Brasil; mas ainda não sabíamos disso, e o chá famoso exercia uma grande atração sobre nós, dava uma idéia de proibido, de pecado, e quem não gosta de experimentar o proibido? Olhando para os lados, para ver se ninguém nos via, Sônia e eu entramos no mercadinho e compramos uma caixa de chá, com os mesmos cuidados que as pessoas têm quando compram pornografia.
A caixinha de chá que compramos era de famosa marca alemã, tinha linda embalagem envolta em papel celofane, e o chá vinha em saquinhos, como qualquer chá respeitável. Escondemos a caixa na bolsa e voltamos correndo para o hotel, onde mandamos preparar duas chávenas. Quando nos entregaram as xícaras, em nosso apartamento, Sônia e eu nos deitamos para tomá-lo, para que quando acontecesse o "barato", estivéssemos deitadas e nada nos acontecesse. Até hoje eu morro de rir ao lembrar como ficamos as duas deitadas, após tomar o chá, esperando o "barato". Dez minutos depois eu perguntei:
- Sônia ... tudo bem aí?
Estava tudo bem, assim como comigo, nada estava acontecendo com ela. Mais dez minutos, e Sônia pergunta:
- Urda ... tudo bem?
Era hilariante a cena, nós a esperarmos o "barato" que não veio. Uma hora depois, morrendo de rir, resolvemos voltar aos nossos passeios. O chá de coca não dá barato nenhum.
Só fui entender a verdadeira função do chá de coca depois que subimos os Andes. Naquela altitude de 4.000 m, não sei como se viveria sem ele. O mal-estar da altitude é uma coisa terrível, que não se tem como fugir - mesmo deitada, mesmo dormindo, a altitude nos faz sentir muito mal - mesmo dentro do sono, tem-se a sensação de que se respira agulhas, ou navalhas, e a cabeça está sempre com a sensação que vai explodir. Qualquer pequeno esforço, como o de se subir uma escadinha de cinco degraus, deixa-nos sem forças, derreados, com o coração disparado, e é nessas horas que o chá de coca é benvindo. Ele nos ajuda um monte a melhorar, dá-nos a sensação de que se vai conseguir sobreviver, é o melhor remédio que existe contra os males da altitude.
No Bolívia, toma-se chá de coca tanto no botequim da esquina, quanto no mais fino restaurante. Os mais refinados garçons do país, quando vêm chegarem turistas derreados, que jogam os braços e as cabeças sobre as mesas e não conseguem nem mais falar, sabem direitinho o que eles precisam. Polidamente, aproximam-se e perguntam :
- Mate de coca?
E a gente dá graças a Deus que o garçom perguntou, que não precisou gastar aquele tiquinho de energia necessário para pedir a infusão que vai devolver um pouco das forças, porque força a altitude tirou toda.
Eu sempre digo que Deus faz as coisas perfeitas, o Diabo é que as estraga depois. Num lugar alto como os Altiplanos andinos, onde é tão difícil viver, Deus colocou a coca e o seu chá terapêutico (o gosto não é bom, mas a gente o acha maravilhoso pelo bem que ele nos faz.). O Diabo, depois, fez com que o homem descobrisse a forma de, com aquelas folhas ingênuas e boas, produzir cocaína.


Blumenau, 25 de agosto de 1996.

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