Revista literária virtual de divulgação de escritores, poetas e amantes das letras e artes. Editor: Paccelli José Maracci Zahler Todas as opiniões aqui expressas são de responsabilidade dos autores. Aceitam-se colaborações. Contato: cerrado.cultural@gmail.com
segunda-feira, 1 de janeiro de 2018
GATO
Por Márcia Duro Mello (Bagé, RS)
Gato na janela,
gato na tuba,
gato sem botas,
tempero na panela,
gato de juba,
figos em compotas,
gato no borralho,
noite em luar...
Cebola, pimenta e alho,
gato na cadeira,
sopa a provar...
Gato do mato,
cheiro de pasto,
estrela estrelada.
Gato na rede,
rede de gato;
mato a sede
na água do pote,
enquanto espero
o amanhecer.
(Publicado no livro Antologia do Movimento dos Escritores Bageenses, 2017)
Gato na janela,
gato na tuba,
gato sem botas,
tempero na panela,
gato de juba,
figos em compotas,
gato no borralho,
noite em luar...
Cebola, pimenta e alho,
gato na cadeira,
sopa a provar...
Gato do mato,
cheiro de pasto,
estrela estrelada.
Gato na rede,
rede de gato;
mato a sede
na água do pote,
enquanto espero
o amanhecer.
(Publicado no livro Antologia do Movimento dos Escritores Bageenses, 2017)
CALUNDU GUZERÁ (THE LAST CIGARETTE)
Por Samuel da Costa (Itajaí, SC)
Em memória de Raquel da Costa e Izabel Cristina da Costa
O que vem depois...
De uma grave ofensa?
Socos?
Empurrões?
Gritos de dor?
***
E por onde será...
Socos?
Empurrões?
Gritos de dor?
***
E por onde será...
Que anda o meu agressor?
Que vivia a me atormentar!
Lá na minha distante infância.
***
Hei my little give me your hand!
Because so easy walk to the moon tonight.
Don't go alway my sister. Don't go…
***
Lá na minha distante infância.
***
Hei my little give me your hand!
Because so easy walk to the moon tonight.
Don't go alway my sister. Don't go…
***
O que vem depois dos insultos?
Só a chama do ódio!
Que arde em chamas...
Sem parar!
UM MAR DE LETRAS
Por Samuel da Costa (Itajaí, SC)
Para a poetisa Patrícia Raphael
Um mar infindo
Um mar infindo de letras
Um mar infindo
De belas letras mortas
A vagar no cosmo sem fim
Entre astros mortos
***
Um sul-fragio universal
E nada mais
Para além disto
***
Um negro oceano infinito
De infinita dor
Em negras lágrimas secretas
Em meio
A um universo vasto
Multi-cores sem fim
ENTRE FEIRAS E MAFUÁS
Por Samuel da Costa (Itajaí, SC)
Em memória de Miguel Maria da Costa
Em memória de Miguel Maria da Costa
Feiras de prendas e jogos
Transmissão ao vivo
De música ruidosa
Que explode nos alto-falantes
Bagunça, confusão, rolo
Lá bem no alto do morro
***
Não é surpresa para mim
E para mais ninguém
Que entre Feiras e Mafuás
O negro foi barrado na portaria
***
Entre Feiras e Mafuás
Não é surpresa para mim
E para mais ninguém
Que o céu carregado
De negras nuvens
Despencou em fortes chuvas
Invadiu o meu barraco
Quebrou os meus discos de acetato
Em mil nanos-pedaços
***
Entre Feiras e Mafuás
Tem a cruz em chamas
E não é surpresa para mim
Que tem um mar belas letras
Negros e negras
Sagram e choram
A negra dor
A negra sina
Transmissão ao vivo
De música ruidosa
Que explode nos alto-falantes
Bagunça, confusão, rolo
Lá bem no alto do morro
***
Não é surpresa para mim
E para mais ninguém
Que entre Feiras e Mafuás
O negro foi barrado na portaria
***
Entre Feiras e Mafuás
Não é surpresa para mim
E para mais ninguém
Que o céu carregado
De negras nuvens
Despencou em fortes chuvas
Invadiu o meu barraco
Quebrou os meus discos de acetato
Em mil nanos-pedaços
***
Entre Feiras e Mafuás
Tem a cruz em chamas
E não é surpresa para mim
Que tem um mar belas letras
Negros e negras
Sagram e choram
A negra dor
A negra sina
A IRMANDADE DAS FLORES
Por Samuel da Costa (Itajaí, SC)
Há um hiato impressionista
Dentro de mim
São fundos intervalos abissais
Que nada dizem
Cravados
Dentro de mim
***
São mil histórias surreais
Inacabadas
Vagando dentro de mim
Mil vozes a gritar
Dentro de mim
***
Há uma negra e fria primavera
Sem flores vagas
Inarredável
Dentro de mim
***
Há uma ignota irmandade
Solapada
Dentro de mim
***
Há outros eus abstratos
Perdidos ad eternum
Transitando livremente
Dentro de mim
HOJE, ENCONTREI O NATAL
Por Urda Alice Klueger (Enseada de Brito, SC)
(Escrito em 2008, logo após a
Tragédia das Águas que assolou Santa Catarina)
Hoje
encontrei o Natal. Meu cachorro me acordou antes da hora costumeira, seis e
pouco no relógio, e saí com ele para dar a volta matinal. No portão aqui do
nosso abrigo de flagelados passava um homem empurrando uma bicicleta e levando
uma cachorrinha presa por uma corrente.
No
primeiro momento, só vi a cachorrinha, amizade certa para o meu cachorro, e os
dois pularam um no outro e se lamberam, e o dia começava prometendo ser bom. O
homem perguntou:
-
A senhora sabe qual é o caminho que se deve tomar para se chegar à BR 470?
Eu
disse que ele estava certo, que era seguir sempre em frente aquela rua, que ele
acabaria chegando à BR 470.
-
E lá vai dar em Guaramirim, não é mesmo?
Não,
não era mesmo. Para Guaramirim havia que se tomar a rodovia Guilherme Jensen, e
lhe expliquei como fazer, onde entrar.
-
Mas não dá para ir pela BR 470?
Para
Guaramirim não dava. Prestei mais atenção no homem, um dos tantos andarilhos
que circulam por nossas estradas nestes tempos estragados pelo neoliberalismo,
apesar de agora já estar mais que comprovado, lá nos centros de poder, que o
neoliberalismo não passava de uma falácia das piores, simples estrangulador de
pobres para encher cofres já abarrotados de ricos.
O
homem da manhã estava incrivelmente sujo e coberto de feridas, com dois
abcessos abertos nas bochechas. Havia muita crosta e muito pus em muitos
lugares, e cobrindo tudo, a grande crosta de pó que é vestida, atualmente,
quando a gente se locomove pelas ruas ou estradas da minha região, depois que
secaram os mares de lama oriundos do derretimento dos morros. Um executivo que
saísse a andar por aí de bicicleta acabaria com a mesma crosta de pó – só não
teria as feridas e os abcessos. Fiquei pensando: seria uma doença, ou seria
falta de determinadas vitaminas? Talvez fossem as duas coisas; talvez fossem
algumas doenças; quem garante que os abcessos nas bochechas não proviessem de
terríveis dores de dentes que aquele homem sorridente com sua cachorrinha
tivesse tido só e desamparado, nos escondidos de passar a noite que ele devia
conhecer? Aí ele me disse:
-
Mais para frente há acostamento? É que meu braço está quebrado em dois lugares,
e está difícil tocar a bicicleta. Com acostamento fica mais fácil...
Só
então reparei no gesso do braço esquerdo, tão coberto de pó e sujeira que a
gente nem prestava atenção.
Sim,
haveria acostamento mais para a frente, e fomos conversando, e os cachorros foram
correndo, e eu lhe mostrava as muitas feridas nos morros, de onde a minha
cidade sangrara como nunca havia sangrado antes, e as casas que já não
existiam, e outras casas que haviam ficado enterradas na lama até a altura da
metade das janelas...
-
Quantos quilômetros o senhor faz por dia, com essa bicicleta?
-
Dá para fazer uns 80...
-
E a cachorrinha anda isso tudo?
-
Não, ela vai aqui no engradado...
Havia
um engradado de plástico amarrado no bagageiro da bicicleta, onde o homem carregava
seus bens. Não olhei muito, só reparei que havia uma garrafa de dois litros
quase cheia de água.
A
cachorrinha tinha se animado demais, andava fazendo umas incursões para o meio
da rua, e ele temeu por ela. Puxou-a pela correntinha, colocou-a no engradado,
onde ela ficou, toda faceira e feliz, sem nem se importar com a interrupção das
brincadeiras que fazia com meu cachorro. Ela amava profundamente aquele homem,
morreria por ele. E ele me contou:
-
Era uma filhotinha jogada fora. Encontrei-a perdida numa rua de Navegantes.
Está com quatro meses.
Conversamos
rua afora, e fui descobrindo que aquele homem entendia de todas as estradas e
cidades do sul do Brasil.
-
Em Barra Velha
– contou-me – há uma mulher que tem doze cachorros. Todos grandes. Ela os acha
na rua e leva para casa. É uma mulher de coração muito bom. Gasta mil reais por
mês, só de ração.
Eu
me admirava.
-
Lá em Itajaí a enchente foi terrível. Eu vi como as casas de madeira ficaram
imprestáveis. Mas a senhora tem certeza de que para ir a Guaramirim não tem que
pegar a BR 470?
Eu
tinha. Perguntei-lhe o nome. Era José Aparecido e já não lembro o sobrenome,
que ele tinha um singelo orgulho de ostentar, como quem tem um último bem que
não pode ser roubado por nenhum neoliberal.
-
Em Guaramirim eu tenho amigos! – ele me contou, como um segredo de enorme
valor, e me fez lembrar de Saint-Exupéry.
Eu estava mesmo bem curiosa para saber o que ele ia fazer numa cidade
pequenininha. – Já trabalhei seis meses em Guaramirim catando papel, tenho
amigos lá. Os meus amigos de lá fazem festa de Natal! No ano passado teve até
chope!
Pronto,
estava explicado! Fiquei com um bocado de vergonha desta dor que há dentro de
mim, que está me impedindo até de ouvir música de Natal, quando ela aparece sem
querer.
Ele
contou-me outras coisas, sobre os três carrinhos de catador que já tivera;
sobre as diferenças de preços de latinhas vazias que existia em Blumenau e em
Curitiba – agora só tinha a bicicleta e a cachorrinha, que ia que ia montada na
garrafa de água do engradado.
-
Mas a senhora tem certeza de que para Guaramirim não tem que passar pela BR
470?
Garanti-lhe
de novo, dei mais indicações do caminho. Perguntei:
-
Como é a festa de Natal em Guaramirim? Tem galinha assada?
-
Tem de tudo, dona. Tem carne, tem maionésia, tem chope! Tem até as mulheres que
trabalham lá! – ele não disse da fraternidade que deveria ter, do consolo dos
braços amigos, que sabe do reencontro com alguma antiga namorada, mas tudo
estava implícito na intensidade da emoção dele.
Eu
deveria voltar, já fora longe demais pela empoeirada Rua das Missões, onde
íamos caminhando, e via meu cachorro de língua de fora. Disse-lhe:
-
Tenho que ir. Meu cachorro já está com sede.
Então,
a galanteza maior de todas que ele poderia ter feito:
-
Mas tem água aqui na garrafa, dona. Pode dar para o cachorro.
Sei
bastante da vida dos andarilhos deste mundo para saber que não conseguem água
com facilidade, que muitas vezes são apedrejados quando se aproximam de alguma
casa para pedir água, pois as famílias pensam que eles vêm para lhes roubar as
crianças. Aquele homem de abcessos nas bochechas e esmagado pelo poder do
Capital dividia sua última riqueza sem nem pensar. Então me senti pequena e
mesquinha diante da grandeza dele, e fiquei com vontade de chorar. Antes que o
fizesse, despedi-me, e ele me apertou a mão sem nenhum constrangimento pelas
feridas supuradas, com a galhardia de um rei.
-
Boa viagem para o senhor! Não esqueça de virar à direita onde lhe ensinei!
-
Feliz Natal, dona! É uma pena que a conversa já está acabando tão cedo! É muito
bom viajar quando a gente pode ir conversando!
Em
Guaramirim, vai haver um grande Natal! É uma notícia muito boa. Será que aquele
homem não era um dos reis magos e não estava encardido assim por ter
atravessado os desertos bíblicos?
Feliz
Natal, José Aparecido! Aqui, choro de emoção por ter encontrado assim o Natal!
Blumenau,
14 de Dezembro de 2008.
AH, O LAGO TITICACA!
Por Urda Alice Klueger (Enseada de Brito, SC)
Era bem assim
que eu pensava nele desde que o vi pela primeira vez, numa foto no
meu livro de Geografia, lá nos tempos de Ginásio: “Ah! O Lago Titicaca!”.
Aquela foto em preto e branco do meu livro de Geografia acompanhou-me pela vida
afora e, muitos anos depois, em 1993, acabei indo conhecer o lago
mais alto do mundo. Nessa época, eu já tinha visto muitas outras
fotografias do mesmo, já falara com pessoas que o conheciam
pessoalmente - enfim, era quase uma expert em Lago
Titicaca.
Meus sonhos
para o Lago Titicaca eram lindos: eu caminharia durante horas pelas praias que
o margeiam, dentro de uma tarde idílica e amena, vendo os mais
incríveis panoramas; eu passearia de barco, lentamente, sobre as suas águas que
sabia azuis, numa perfeita comunhão com a natureza andina, por horas
inesquecíveis, nascidas do sonho suscitado por um livro de Geografia.
Na prática, não
foi nada assim. Já fazia dias e dias que eu e minha amiga Sônia vínhamos
viajando pelos altiplanos bolivianos, região extremamente árida, seca, e
carente de oxigênio (está-se a 4.000 m de altitude). Apesar da aridez e do
mal-estar da altitude, é lindo conhecer a Bolívia, com sua cultura tão
diferente da nossa, e eu achava que chegar ao Lago Titicaca seria a parte mais
linda da viagem.
Saímos, enfim,
uma manhã, de La Paz para o Lago Titicaca. Não é longe, e a aproximação dele
deu uma melhorada na aridez geral e apareceram arvorezinhas, roças, vegetação
em geral, e, principalmente, o estupendo azul do Lago, a se esgueirar pelos
entremeios da paisagem de morrinhos, tão lindo ao sol que a minha alma parecia
florescer - estava, enfim, chegando ao meu livro de Geografia
do Ginásio!
Atravessamo-lo
no Estreito de Quitina, e como fiquei surpresa ao ver nele navios de verdade, e
a Capitania dos Portos à sua beira! Era uma travessia pequena, que se fez de
balsa, e eu ansiava por chegar à Copacabana, às suas margens, onde nos
demoraríamos por mais de um dia!
Copacabana é a
praia do boliviano. Estação balneária muito freqüentada no verão, estava quase
abandonada quando lá chegamos, no mês de maio. Além do Lago, a cidade tem a nos
oferecer o Santuário de Nossa Senhora de Copacabana, a padroeira da Bolívia, uma praça, diversas
ruas, um banco, e um mingintório
público (onde se faz xixi), palavra nova do espanhol para mim.
É claro que
Sônia e eu dirigimo-nos ao Lago tão logo arranjamos hotel e comemos alguma
coisa. Meu coração batia forte de emoção (e de falta de oxigênio) enquanto
negociava com um barqueiro um passeio pelo Lago. Embarcamos, eu a molhar a mão
na água límpida e gelada da esteira do barco, crente estar vivendo um dos
maiores sonhos da minha vida - quando o barqueiro voltou. O passeio todo
durara 15 minutos, e não houve o que fizesse o safado do barqueiro voltar para
a água.
Braba com ele,
era hora da outra parte do sonho: longas caminhadas à beira do lago mais alto
do mundo. Dei os primeiros passos confiante, mas, 20 metros depois, tive
que desistir: a altitude me tirava as forças, o coração disparava, a cabeça parecia
que ia explodir diante do esforço. Tivemos que contentar-nos, eu e Sônia, em
ficarmos sentadas num pedaço de madeira, enquanto, na nossa frente, uma família
boliviana aproveitava para lavar roupa dentro do Lago gelado.
Quando o
mal-estar da altitude melhorou um pouco, voltamos lentamente à cidadezinha de
Copacabana, passando pelo mingintório
público. Gastamos uns 15 minutos conhecendo o Santuário de Nossa Senhora de
Copacabana, e depois descobrimos que nada mais havia para fazer às margens do
Lago Titicaca. Turistas de todas as partes do mundo, tão aborrecidos quanto
nós, espalhavam-se pela praça ou compravam algum artesanato. Todos falavam um
pouquinho de espanhol, e quando conversávamos com algum, o papo era
invariavelmente o mesmo:
- Vocês são de onde?
- Somos do
país tal.
- E vão até
onde?
- Vamos a Machupichu.
E aí acabava o
vocabulário deles, e o tédio voltava para todos nós. O que foi bom, no Lago
Titicaca, foram as trutas, enormes trutas grelhadas que se comia por três
dólares, regadas a cuba-libre. Mas os sonhados passeios transformaram-se em
desilusão.
Blumenau,
18 de agosto de 1996.
ENCONTRO COM A INFÂNCIA
Por Urda Alice Klueger (Enseada de Brito, SC)
Faz dois dias que me encontrei com
a minha Infância no Bairro Itoupava Seca, perto da Eletro-Aço, e eu ia em pé na
garupa da bicicleta do meu pai! Como numa voragem, o coração me carregou no
Tempo e retrocedeu até a época em que quem vivera aquilo fora eu, e embora quem
fosse em pé na garupa da bicicleta de um pai de uns trinta e poucos anos fosse
um garoto de uns dez, espadaúdo para a idade, bem alimentado e com o cabelo
loiro espetado à escovinha, de repente era eu quem estava ali, e era mesmo meu
pai, que também teria, na época, uns trinta e tantos anos.
Então, de
repente, era como estar dentro de um filme real, a infância me cercando em
girândolas, e eu, menina já de escola andando em pé no bagageiro da bicicleta
do meu pai, segurando nele com toda aquela total confiança que crianças
pequenas tem nos pais, os pés metidos em calçados “Sete Vidas”, os vestidinhos
coloridos que minha mãe costurava voando ao vento, o cabelo curto cortado pelo
barbeiro Schoenfelder, pois ninguém confiava que criança assim arteira como eu
conseguisse manter em ordem cabelos compridos, e como eu queria ter as longas
tranças da minha prima Lori Passold!
Andar em pé
no bagageiro da bicicleta do meu pai era o meu orgulho, a minha marca, já que
nenhuma outra criança andava assim! Ficava cheia de pose, arriscando passos de
trapézio, sem o menor medo de cair. Aquele bagageiro de bicicleta era como se
fosse um palco onde eu podia viver todas as fantasias, e respirando
profundamente eu as vivia na imaginação, e penso que, naquela Blumenau da
década de 1960, com seus 60.000 habitantes e suas ruas sem calçamento, não
havia quem não prestasse atenção naquela menina corajosa que não temia andar em
pé no bagageiro da bicicleta do seu pai!
Mais cedo ou
mais tarde, naqueles tempos, alguém sempre acabava dizendo, quando me conhecia
comportadamente ao lado da minha mãe, vindo da missa: “Ah! Mas esta é aquela
menina que anda em pé na bicicleta!” – e eu fazia de conta que não, mas inchava
de orgulho, por estar sendo reconhecida pela minha marca pessoal e por ter
tanta coragem!
E então, nas
segundas-feiras, que era o dia de folga do meu pai, andávamos por aí tudo,
desde a buscar tangerinas no Garcia Alto até a ir comer algum maravilhoso doce
com nata batida na Confeitaria Söcher, na cidade (ah! Até hoje chamamos o
centro de Blumenau de cidade, como o fazíamos no passado, fazendo com que os
novos moradores achem engraçado!), e para ir-se à cidade, era necessário
calçar-se os sapatos brancos de Nugget e as meiazinhas coloridas, deixar de
lado os “Sete vidas”! Nossa Rua XV já era calçada de paralelepípedos (guardei
um lá em casa, quando fizeram o novo calçamento), e por aquela pista tão
moderna meu pai disparava de bicicleta e o vento zunia nos meus ouvidos,
enquanto, de pé, me apoiava com toda a confiança nos ombros dele!
Então, faz
dois dias, encontrei-me com a minha infância na rua de asfalto lá perto da
Eletro Aço! Aquele menino e o pai dele eram como eu e o meu pai, e apressei o
carro, no movimento congestionado, para ver direito como era aquele pai, pois
talvez fosse o meu! O menino eu via bem, e é claro que devíamos ter coisas em
comum, e assim pelas costas aquele pai tinha a vitalidade e a idade que o meu
teria quando eu era criança – mas o trânsito não me deixou emparelhar com
aquela bicicleta que, em conluio com o Tempo, fizera com que eu fosse como que
abduzida para o Passado! Acabei por ter que me contentar em me manter em
harmonia com o fluxo de automóveis e ver a bicicleta com a minha infância
disparar lá para a frente, quando a sinaleira fechou. Não consegui ver o rosto
daquele ciclista que talvez fosse o meu pai!
Ficou a força
das lembranças, no entanto, e toda a torrente de emoções que veio com elas!
Como os canais de comunicação com o Tempo e o Espaço ficam livres e cheios de
sensibilidade quando a gente é feliz!
Blumenau,
22 de julho de 2006.
A ÚLTIMA HORTA DO CENTRO DE BLUMENAU
Por Urda Alice Klueger (Enseada de Brito, SC)
Disseram-me
que ele morreu com 88 anos – deve fazer, portanto uns 60 ou 70 anos que aquela
horta existe, bem na esquina da Alameda com a rua Coronel Vidal Ramos, que antigamente se
chamava rua Paraná. Faz duas semanas que ele morreu – chamava-se Arno Zendron,
e eu o conhecia de vista desde criança. Pertencia a uma família longeva – é de
estranhar que não tenha completado o século, como outros dos seus irmãos, mas
há que se convir que 88 anos também é uma idade respeitável.
Seu Arno
Zendron morou quase naquela esquina que citei acima por toda a sua vida – disse
quase, porque ele morava um tanto fora da esquina – quem morava na esquina era
a sua horta.
Faz uns 30
anos que comecei a prestar atenção àquela horta. Trinta anos atrás Blumenau
crescia, sumiam as vacas de atrás das casas, novas gentes, novas caras e novos
costumes vinham fazer ninho na nossa cidade. Apareceram os supermercados, com
vidros resplandecentes e espelhos nos seus setores de hortifrutigranjeiros;
apareceram os frangos congelados e resfriados nos longos balcões de vidro,
apareceu o leite “de pacote”. Paulatinamente, as hortas de Blumenau foram
abandonadas; já não se criavam mais galinhas atrás das casas, venderam-se as
vacas.
O símbolo da
resistência dos tempos antigos, em Blumenau, era a horta do seu Arno Zendron:
no centro da cidade, em área nobre, que ia, aos poucos, sendo rodeado por
edifícios de apartamentos, ela resistia, e tinha de tudo: a cebolinha, a salsa,
as cenouras, a couve-flor, a alface, o aipim. Agora de cabeça não lembro bem
das árvores, mas acho que há algumas bananeiras, um pé de pêssego, ralas
árvores que não deveriam tirar o sol das hortaliças. Galinhas também andavam
por lá; eram poucas, mas de vez em quando as havia, bem como se o tempo não
tivesse passado, bem como se ainda se vivesse nos tempos da colonização, antes
que o mundo tomasse o ímpeto de transformação que acabou tomando. Eu prestava a
maior atenção naquela horta; sabia, o tempo todo, o que ela representava, e que
ela era a última.
Faz poucos
dias que soube que o seu Arno Zendron tinha viajado para outras plagas. Fui lá
olhar a horta, então. Ela já está um pouco descuidada, com capim crescendo nos
canteiros, bem como fica uma horta antes do seu último suspiro. Enquanto o seu
Arno esteve doente, ela começou sua despedida. Penso que ninguém irá
ressuscitá-la, que está irremediavelmente condenada à extinção, para dar lugar,
daqui a pouco, a um outro qualquer edifício de apartamentos.
Chegou ao fim
a última horta do centro de Blumenau. É como se tivesse acabado uma antiga
resistência. É muito triste.
Blumenau,
30 de Abril de 2002.
A PESSOA, A MULHER, A NEGRA
Por Clarisse da Costa (Biguaçu, SC)
Eu
estive pensando no que me disseram certa vez, que o negro é o culpado da sua
escravidão. O que tem lógica nisso tudo. Mas a geração atual o que tem haver
com os erros de nossos antepassados?
Vamos entender um pouco sobre escravidão. Ela teve início na África. Coisa de tribo. Una tribo dominava a outra e esta tribo vencedora tinha o direito de escravizar os habitantes daquela aldeia. Porém não eram maltratados.
A escravidão é um tema complexo assim como o racismo. Não dá para dizer que o negro é o maior racista por essas questões, ou dizer que Clarisse Da Costa é racista por abordar esses assuntos. A questão em ser negro neste país é que somos em número a minoria ocupando os espaços.
Vamos entender um pouco sobre escravidão. Ela teve início na África. Coisa de tribo. Una tribo dominava a outra e esta tribo vencedora tinha o direito de escravizar os habitantes daquela aldeia. Porém não eram maltratados.
A escravidão é um tema complexo assim como o racismo. Não dá para dizer que o negro é o maior racista por essas questões, ou dizer que Clarisse Da Costa é racista por abordar esses assuntos. A questão em ser negro neste país é que somos em número a minoria ocupando os espaços.
Agora
não falando de mim, até mesmo porque não quero me passar por vítima, vou falar
da população negra. Certa vez me disseram que o negro se vitimiza e envergonha
a si mesmo usando o sistema de cota. Mas esse é o sistema do Brasil, espaços
têm, porém são pra poucos. A diferença é gritante até entre o homem negro e a
mulher negra.