sábado, 1 de fevereiro de 2020

ACHEGAS PARA OBTER UMA BIBLIOTECA


Humberto Pinho da Silva (Porto, Portugal)


Conta-se, que certa manhã, Camilo, estando na Praça Nova, no Porto, encontrou negociante seu conhecido, sobraçando grande quantidade de livros.
Ao Vê-lo, Camilo, disse-lhe a sorrir:
- Tantas livros leva! …”
Respondeu-lhe o homem, com a boca cheia de risos:
- “ São para meus filhos…São quatro quilos de conhecimento! …”
- Quatro quilos de sabedoria!? …” - Repetiu o romancista. – “Veja lá se o roubaram no peso…”

Possuir muitos volumes, nas estantes do escritório, para deslumbrar amigos e conhecidos, é coisa, em regra, de novo-rico.
Livros alinhados, perfilhados, encadernados a pele, com lombadas a oiro, não representam, nem cultura, nem sabedoria.
Há quem compre colecções inteiras, convencido que ao adquirir livros a metro, se torna culto…apenas decoram estantes…
Não é fácil ter uma boa biblioteca; depende do gosto literário, da profissão, e da capacidade de cada um.
O advogado, o economista, o engenheiro, e o médico, por exemplo, necessitam, além das obras basilares, que todos devem conhecer, livros técnicos, que lhes forneçam informações úteis para a profissão.
Cada qual deve escolher, na imensidade das obras, que, quase diariamente, se edita, os livros que lhe agrada e que lhe possa ser útil.
Um pouco de tudo – a meu ver, – será o ideal, tendo em conta a idade.

Além dos autores basilares, na língua portuguesa (Camilo *, Eça, Machado de Assis, Garrett, Alexandre Herculano, etc. …etc. …) que convêm conhecer, pelo menos as obras mais conhecidas, há vantagem de possuir punhado de clássicos, principalmente os acessíveis à maioria dos leitores, como: Frei Heitor Pinto, Manuel Bernardes, Francisco Manuel de Melo, António Vieira, Frei Luís de Sousa, Francisco Rodrigues Lobo, por exemplo. (S. Tomás, aconselha: não ir directamente ao mar; mas pelos pequenos ribeiros. Tudo depende da capacidade e da preparação.)

Dos estrangeiros poderei, entre outros, citar: André Mairois, Ortega y Gasset, Pascal, Teilhard de Chardin, Bacon, Marco Aurélio, Platão, La Bruyère, Erasmo, Descartes, Montaigne, Balzac, Azorín, Shakespeare, Kant, Proust, Tolstoi, Claudel, Stendhal, e muitos outros, que por ser lista extensa, não devo mencioná-los em artigo de jornal.

Há, todavia, autores, para quem desejar informações úteis e proveitosos conselhos, (livros de cabeceira,) que são: - em minha opinião, – imprescindíveis: Carrel, Sertillanges, Jean Guiton, Mário Gonçalves Viana, Marden, Billy Graham, Fulton Sheen, Montapart e a Bíblia (pelo menos o Novo-Testamento).

Além dos mencionados, que considero basilares, há outros de igual quilate, mas seria impossível mencioná-los, aqui.
Termino, com palavras de André Mairois:
“ Ter cultura, não é saber de tudo um pouco; também não é saber muito dum só assunto. É conhecer a fundo alguns grandes espíritos, alimentar-se deles, assimilá-los.”
Deve-se ler, reler, tresler, e meditar no que se leu.
Padre Manuel Bernardes aconselha, até, que é: “Mais frutuoso, e menos cara a lição moderada dos mesmos livros, do que a demasiada de vários.

*)”El Amor de Perdição”, de Camilo, es uno de los libros fundamentales de la literatura ibérica (castellana, portuguesa y catalana) – Unamuno- “Por tierras de Portugal y España”.

TALVEZ


Por Pedro Du Bois (Balneário Camboriú, SC)



Talvez estivéssemos neste lugar, felizes

anos de fartura, pouco tivemos em recompensas,

delas não precisávamos naquela hora de estimas

e abraços no carinhoso sonho de estarmos juntos



o bastante e o tanto satisfeitos, flores perfeitas

não cultivadas, os jardins dispostos ao acaso

da polinização e do brotar das flores; talvez

os começos sejam difíceis de serem superados

em progressivas jornadas de esquecimentos;



a rigidez científica cerceia os passos humanos

em descobertas etéreas dos nossos fantasmas:

crer no inolvidável, dar-lhe nome e forma, tê-lo

consciente do tom com que calamos os dramas;



nossas vozes diagramadas em escalas não sensoriais;

talvez abrir os olhos tenha sido o instante supremo

onde confundimos as imagens e vivemos dos reflexos,

pálidos rostos refletidos nas águas.


DESAPARECIDOS


Por Pedro Du Bois (Balneário Camboriú, SC)



argentina batida

do martelo

contra o metal do sino



o tambor isolado

em sua batida surda



os rostos cansados das esperas

por respostas ausentes de significados



o argentum traz o oficialmente negado

das mortes provocadas: inglórias maneiras

                             de se fazerem presentes



lúgubre como a morte a batida

permanece constante

                    irritante: debocha

do sorriso e dos abraços



a mão bate o martelo.


ATRÁS DOS SEUS OLHOS NEGROS

Por Clarisse da Costa (Biguaçu, SC)

Eu pude no labirinto
Que a solidão nos remete
Sentir através dos seus olhos negros
O poder que
Os seus sentimentos têm
De me envolver;
Meu coração palhaço
Me fez ficar entre duas escolhas,
Eu tive que decidir
E cá estou a sentir
Os poros em arrepios,
A boca sedenta pelo seu beijo
E o meu olhar lhe despindo
Querendo ver
A clara evidência
Dos teus eflúvios desejos;
Trazer-lhe para perto de mim
E lhe conduzir meus extintos
Como frases que se cruzam
Nas linhas em branco
E formam poemas distintos;
Meu universo singular
Que abraça a vida!

Clarisse da Costa é poetisa em Biguaçu SC
Contato: clarissedacosta81@gmail.com


PERMITA QUE EU TE SINTA

Por Clarisse da Costa (Biguaçu, SC)

Seu corpo é fogo
Ao ver me deixa quente
Criando fantasias
No meu quarto com você;
Eu só te peço
Permita que eu te sinta;
Eu quero ser
Mais que a sua poesia poética
E um tanto atrevida;
Eu quero ser a sua perdição;
Colar meu corpo junto ao seu
E deixar que você me toque
Como se não houvesse
O tempo do relógio nos dizendo
Que temos que ir;
Quero sentir
O perfume do seu corpo
No meu
E a minha pele molhada na sua;
Transpirando os desejos
Respirando tesão;
Sendo a sua safada
Sussurrando gemidos.
Se você permitir
Eu serei o seu vício.

Clarisse da Costa é poetisa em Biguaçu, SC
Contato: clarissedacosta81@gmail.com

TOMA MEU CORPO

Por Fabiane Braga Lima (Rio Claro, SP)

Com prazer,
Sem nenhuma timidez,
Queira-me com vontade,
Seja meu rei...
Deixe-me ser sua rainha!
Nua sobre a lua...
Me amarre em sua cama!
Sobre nossos corpos
Suados em chamas,
No ato de amar,
Não quero
Me fazer de santa,
Nem de dama,
Quero me envolver!
Na arte do amor…
Então me chama,
Adoce-me de êxtase
De prazer,
No delírio,
Do nosso amor ...
Diz que ama...
Sou somente sua,
Eterna sua....!

Fabiane Braga Lima é poetisa em Rio Claro S.P
Contato: bragalimafabiane@gmail.com



ME DIZ?!

Por Fabiane Braga Lima (Rio Claro, SP)


Queres me confundir?
Estou imensamente louca,
de amor por ti...
És aquele que tanto aprecio
que arrepia-me!
Veio do nada me amarrou,
na sua vida!
Fiquei sem saída...
Agora sinto-me vítima...
Insano querer!
Quero tê-lo em meus braços,
no calor dos seus abraços!
No seu adormecer e flutuar,
fazer-te mil ternuras!
Quero ser sua dama!
Chama-me...
Tu sabes que sou exagerada,
Mas chega de drama!
Venha!
Sussurra no meu ouvido,
Diga que Ama-me...
É até o nascer do dia,
Estarei aqui contigo...
Ofegante ao sentir-te..
Amada e alucinada!
Me joga pelas bordas,
Da nossa cama!
Venha logo Amor !
Busca-me estou te esperando..!
....
Fabiane Braga Lima é poetisa em Rio Claro, SP
Contato: bragalimafabiane@gmail.com




CRÔNICA DO DIA: MEUS 39 ANOS

Por Clarisse da Costa (Biguaçu, SC)

São 39 anos que não se conta em segundos ou minutos perdidos. Também não se resume em histórias rabiscadas, linhas mal traçadas e sexo ao capricho do homem.
São 39 próximos dos 40 anos. A solidão é o velho clichê. Parece que gosta de curtir com a minha cara.                                                                
            Tem dias que eu nem sei o que escrever numa folha em branco. Parece que uma parte de mim não passa de um breve rabisco. As reticências são cheias de mistérios. Enquanto isso o tempo não se cansa de me dizer que é pra frente que se vive a vida, ele vai e não olha para trás.                                                                              
            E os meus 39 em relação aos 57 anos do jovem Luís me diz que ainda tenho muito que aprender. E eu deixei de ser ‘’mulherzinha’’ contrariando o machismo e tudo que a sociedade acha sobre nós mulheres. Ainda ousei pegar a minha ‘’velha atitude’’ em ser o que ninguém espera de mim e cá estou a escrever novos caminhos.      



Clarisse da Costa é poetisa e cronista em Biguaçu, SC
Contato: clarissedacosta81@gmail.com             

BLACK BIRD, MADE IN U.S.A.

Por Samuel da Costa (Itajaí, SC)

O voo livre do pássaro...
De metal!
São penas sintécticas...
Abstratas!
A Iludir as massas...
E o canto pré-gravado!
E sampleado
Que soa falso e adulterado!
***
E mais que de repente!
O sonho de um mundo melhor.
É sepultado!
São os aviões não-tripulados!
São voos mortais...
A fazer vítimas inocentes!
Pelo mundo pobre afora...
***
Ei senhor Robert Bales!
Quem atirou e matou...
Os meus sonhos?
O meu sonho de liberdade...
De um mundo melhor!
***
São penas surreais.
Inexatas!
São voos vazios,
São voos não-tripulados!
A fazer vítimas invisíveis...
Impossíveis!
***
Quem tripula os drones?
No jogo mortal...
Que ninguém vê!
***
É o livre bater...
Das mortíferas asas...
Do pássaro de metal!
Em um voo homicida.
E não-tripulado...
***
É na mira!
Do senhor Robert Bales.
Mira impossível...
E absurda.
Que dispara e mata!
Tiros inexatos
Que ninguém condena,
***
É o mundo civilizado...
Que não condena.
O senhor Robert Bales.
Que dispara e mata!

Samuel da Costa é poeta em Itajaí
Contato: samueldeitajai@yahoo.com.br


MACHISMO


             Por Fabiane Braga Lima (Rio Claro, SP)                                           

            Não iria falar de machismo, mas algo diz, fala. Não queria me expor, mas sou mulher e tenho que fazer valer a pena. O machismo anda se predominando cada dia mais, infelizmente! Há certo grupo que se sente no direito, ou no modo absurdo de desrespeito a mulheres talvez mostremos ousadia!?
            Não, porque são verdadeiros machistas, homens que não são homens…! Apenas homens, projetos da ignorância, sádicos! Sem relevância, insignificantes como insetos! Homens que são apenas chamados de homens, sem respeito por alguma mulher! O mais intolerável é vê-los achando-se proprietários do corpo de uma mulher!
            Mulher já não pode sujeitar-se a colocar qualquer roupa que se torna objeto! Infelizmente já passei por isso, assim como muitas, sentindo-me brinquedo. Engana-se o machista que pensou isso! Somos mulheres unidas, usamos nossas micro-roupas no dia à dia, somos vaidosas, e nos unimos, ao contrário de um grupo de insetos nos desrespeitando!
            Eu mereço respeito e todas nos merecemos! Consigo acabar com verme machista em apenas minutos: Mexe conosco?! Olha bem pra mim?! Olhou! Então, imagina o que irá lhe acontecer, Nesse ano de 2020 todas nós seremos respeitadas… Basta...!.

Fabiane Braga Lima é poetisa e cronista em Rio Claro, SP
Contato: bragalimafabiane@gmail.com

FAMÍLIA CAZUMBÁ


Por Urda Alice Klueger (Enseada de Brito, SC)

                                    Fico aqui pensando: a vida imita a arte ou a arte imita a vida? Penso num romance que escrevi faz tempo, e que se chama Cruzeiros do Sul, onde acompanho uma família chamada Souza durante três séculos e meio pelas antigas vastidões ermas de Santa Catarina até os tempos mais recentes. Famílias como essa devem ter existido, e garimpei os acontecimentos históricos do estado através de livros científicos, para que tudo ficasse mais verossímil, e nos altos e baixos por onde a família andou, acabei contando a história de Santa Catarina, mesmo que tenha sido a grosso modo. Foi um ato de arte a imitar a vida.
                                    E agora leio essa admirável Família Cazumbá (Família Cazumbá – As peculiaridades dos descendentes de africanos nos últimos anos da escravidão e no pós-abolição – Recôncavo da Bahia – c. 1879-2015 – autoria de José Bento Rosa da Silva) e dou-me conta do inverso: a vida também imita a arte, sem dúvida. Bento, que um dia já foi meu professor, mergulhou na senda que trilha essa família Cazumbá que hoje está, inclusive, nas redes sociais, e a trouxe desde o século XIX, passo a passo pelos caminhos do Brasil, essa gente que conserva um sobrenome africano, coisa tão rara no nosso país. Seu livro é precioso em minúcias e investigações, e de mãos dadas com a família Cazumbá, Bento andou com ela por três séculos, subindo e descendo os tantos caminhos da vida, como uma vez eu fiz com esquecidos seres imaginários que usavam o nome Souza.
                                    Fui ao Facebook agora ver mais de perto a família Cazumbá, e ela está lá, com muitas e muitas pessoas, e fiquei a pensar que eu nunca teria sabido delas se o Bento não tivesse escrito esse livro – vieram-me à mente, então, os tantos personagens dos tantos livros que li, desde a infância, e que se tornaram muito fortes dentro do meu cérebro ou dentro do meu coração. Toda essa gente que me habita, hoje, está viva em mim e comigo, às vezes fica a me acompanhar nas mais inesperadas atividades.
                                    Moro numa casa com muitas vidraças luminosas e muita água de cachoeira na torneira, onde lavar louça é algo muito prazeroso, uma atividade que permite ficar pensando durante o trabalho, e como penso, nessas horas, em personagens que existiram ou não no mundo, mas que acabaram chegando até mim dentro de livros! Eu não saberia delas e não as teria como companheiras, hoje, caso não tivesse lido as suas histórias. Seria uma pessoa bem solitária, creio, não fosse a companhia delas, que sempre estão por perto e sempre me fazem refletir sobre elas próprias, sobre suas épocas e suas histórias, além de trazerem nos seus embornais os aromas daqueles dias em que as conheci dentro de livros, com informações adicionais, como, por exemplo, se era dia de chuva ou dia de recém-abertas flores de laranjeiras, talvez. É bem grande esse círculo de amigos que me acompanha vida afora – agora, por conta do Bento, também a família Cazumbá tem frequentado a minha cozinha de muitas vidraças e muita água de cachoeira, e ao meu redor eles, os Cazumbá,  andam e conversam, tanto aqueles lá do século XIX, quanto os jovens que foram encontrados na internet. Como é bom quando chega nova gente nos velhos anos mágicos que se vive!
                                    Parabéns, Bento! A vida imita a arte, sim!

Sertão de Enseada de Brito, 09 de janeiro de 2020.

Urda Alice Klueger
Escritora, historiadora e doutora em Geografia



CARTA Nº 10 – DE ZORRILHO PARA KATTY


Por Urda Alice Klueger (Enseada de Brito, SC)



Oi, Katty, tudo bem aí? Sei que sempre dão notícias minhas para você, mas na verdade a gente nunca conversou.
                        Quando eu vim para a vida aqui da minha família, o veterinário disse que eu tinha entre dois a três anos, o que significa que agora tenho entre cinco a seis anos, isto é, sou um cachorrinho jovem e cheio de energia, e às vezes faço coisas que deixam a Urda pasma, embora eu ache tão natural me esconder debaixo de cobertas e almofadas nos dias quentes – é algo que está no meu DNA, como se no passado eu tivesse pertencido a uma raça que gostava de tocas. Também tenho um buraco na cerca que só eu sei: como sou o menor da família, eu entro e saio do nosso lar quando quero. É um buraco secreto, onde só caibo eu, e nem a Urda nunca conseguiu descobri-lo. Também sou um bom cavador de buracos – talvez um dia eu chegue até o Japão! Às vezes a Domitila anda por lá xeretando a minha passagem secreta, mas como ela é gata, não precisa de buracos: sai por cima da cerca quando quer.
                        Essa Domitila é uma figura! Quando veio e era só uma coisinha de nada, tornou-se a minha maior amiga e dormíamos os dois juntos, abraçadinhos, além de brincarmos muito e muito. Só que ela acabou ficando um pouco maior que eu e aí tivemos que desfazer um pouco a sociedade, pois as unhas dela também cresceram. Hoje a melhor amiga dela é a Tereza Batista e eu sou um cachorrinho um pouco solitário, que vai e que volta e que faz o que quer – na verdade, acho que quem mais gosta de mim é a minha amiga Maria Antônia. Lá na casa dela eu subo em todos os sofás e ganho muito carinho – na nossa casa são tantos bichos que uma Urda só não é suficiente para todos nós. Veja só, além de todos dos quais já falei, ainda tem o Atahualpa e a Manuelita Saens.
                        Essa Manuelita é uma gata estranha, que vive só no quarto, banheiro e closed da Urda, e que só sai de lá por uma janela que tem uma escadinha para gatos, que dá para os fundos de casa. E lá, noutro dia, houve que ser feita uma obra por detrás das bananeiras, e o Cristiano, que é quem estava trabalhando, encontrou uma grande e linda cobra coral. O Cristiano ficou com muito medo e matou a cobra, mas agora a Urda sempre fica dizendo para a Manuelita tomar cuidado, pois pode aparecer o marido da cobra procurando por ela.           
                        - É o Cobro! – a Urda explica, bem preocupada, mas a Manuelita, do alto da sua aparente indiferença, noutro dia me segredou que estava cansada de conhecer aquela cobra, que sempre a via lá perto das bananeiras, à noite. Lá nos fundos passa um ribeirão onde os ratos veem beber água, e a cobra vivia ali, tocaiando os ratos. Manuelita contou, também, que a cobra era certeira, muito caçadora – enxerida como é, Domitila entrou na conversa e também disse que há muito conhecia a cobra, que só não a trouxera para dar de presente à Urda porque era muito grande.
                        Pois é, Katty, e a vida aqui vai seguindo, mas mesmo com muito pouco tempo, de vez em quando a Urda me pega no colo e fica conversando comigo. Ela diz coisas assim:
                        - Meu bichinho! O que terá acontecido na tua vidinha antes de eu te conhecer? – e eu fico com os olhos cheios de lágrimas, pois lembro daquelas coisas embaralhadas que ficaram dentro da minha cabeça e que não tenho como contar para ela, mas ela sabe que houve pelo menos duas situações muito diferentes no meu passado, pois a Urda entende muito dos corações dos cachorrinhos. Ultimamente, ela tem ficado com medo de me perder, pois sou muito livre e vou no colo de qualquer pessoa boazinha – e se alguém me leva, né? Mas esse é o meu jeito de ser, sempre correndo para lá e para cá, ou lá na frente ou lá atrás, aproveitando a minha vidinha como dá.
                        Está chegando o Ano Novo, e eu achei que esta seria uma boa ocasião para conhecer mais você, e então criei coragem para escrever. A Urda fala tão bem de você que você nem imagina!
                        Feliz Ano Novo, Katty! Muitas lambidas deste Zorrilhozinho que está tão gordinho que parece uma bola! Tudo de bom, e que as pessoas não soltem muitos foguetes para a gente ficar com medo!

                        Grande carinho,

Sertão da Enseada de Brito, 28 de dezembro de 2019.

Escrito por Urda Alice Klueger
Escritora, historiadora e doutora em Geografia.

LITERATURA:O QUE ACONTECEU EM 2019?


Por Vitor Pinto (Brasília, DF)

Sim, eu sei: 2019 é um daqueles anos intermediários que só aguarda a chegada de dias melhores, uma correção no que não está certo (ah, e como isto é assim no Brasil de hoje…). Em geral, espera-se que tudo aconteça, ou pelo menos seja diferente, nos anos “redondos”, aqueles que fecham uma década (alguns até um século): 1900 – 1990 – 2010 – 2020. Algo sobra para os que ficam a meio caminho: 1905 – 1995 – 2015. Os demais são mais facilmente esquecidos.
Mas, o fato é que estamos no final de dezembro de 2019, quando é de todo conveniente estendermos um olhar para aquilo de bom ou preocupante ocorrido desde janeiro e nada melhor do que escolhermos a literatura por ser uma boa referência para estes duros tempos em que vivemos.
Se literatura é cultura, então não restam dúvidas de que no Brasil este foi um dos piores anos de toda a história nacional. Ao ponto de que o governo federal acabou por jogar pela janela todo o esforço positivo (ou pelo menos as lutas) acumulado nos últimos anos, afinal condenando o setor a se tornar um desprezado apêndice de um ministério do … turismo (???). Logo, no mesmo fosso foram lançadas as agências responsáveis pela cultura pátria: Ancine, Iphan (patrimônio histórico), Ibram (museus), Biblioteca Nacional, Casa de Rui Barbosa, Palmares, Funarte.
Sequer de dados atualizados dispomos. A única pesquisa séria e independente realizada no país, a “Retratos da leitura no Brasil”, a cargo do Instituto Brasileiro do Livro, uma organização privada mantida por contribuições de empresas do mercado editorial, é feita a duras penas de 4 em 4 anos num mundo em que a informação é instantânea. Na última, já de 2016, constatou-se que brasileiro se limita a ler a Bíblia e mais algumas publicações de cunho religioso, seguindo-se os obrigatórios livros didáticos. Nas escolas, floresce uma paralela indústria de copias xerográficas que causa notável prejuizo a autores e editores. Não é de surpreender que a rede La Selva tenha falido, a francesa FNAC abandonou o nosso mercado, a Saraiva e a Cultura entraram com pedidos de recuperação financeira a fim de pagarem o que devem quando puderem e a perder de vista, indiretamente quebrando extensa lista de fornecedores e de editoras.
A mídia paulista diz que outras empresas menores estão se esforçando para ocupar os espaços liberados pelas grandes redes. É o caso da Livraria da Travessa, Da Tarde, Mandarina que abrem novas lojas, enquanto nas calçadas (a que ponto chegamos…) surgem modestas “livrarias de rua”. Se isso se dá em São Paulo e em alguma outra capital, no restante do país as poucas livrarias existentes fecham suas portas.
Fruto dos tempos atuais a literatura pouco a pouco se transformou num campo de batalha política onde vale tudo, menos a arte. Até a FLIP de Parati, um dos únicos portos de sustentação do movimento literário nacional, neste ano resolveu que a grande homenageada da feira deveria ser a poetisa americana Elizabeth Bishop, para quem “o golpe de 64 foi uma revolução rápida e bonita”. Antonio Prata tentou defendê-la dizendo que “Bishop é ótima porque foi abertamente gay numa época em que isto era heresia”. E acrescentou que bebia um bocado. Os frequentadores armaram uma revolta e tentaram um boicote que não deram em nada. Queriam homenagem a um (ou uma) brasileiro negro ou proveniente das chamadas “pautas identitárias”. Satisfizeram-se com duas mulheres como ganhadoras dos prêmios São Paulo e Oceanos (Ana Paula Maia com “Enterre seus mortos” e a portuguesa Djaimilia Almeida com “Luanda, Lisboa, Paraiso”).

Melhores brasileiros de 2019

O Jabuti do ano ficou com Pedro Ferreira de Souza com “Uma história da desigualdade” e o melhor romance foi conferido a Thiago Ferro por “O pai da menina morta”. No sul o movimento literário continua resistindo bravamente. O Prêmio Minuano de Literatura que objetiva reconhecer a produção dos escritores gaúchos fez uma bela festa para o vencedor Samir Machado com “Tupinilândia” que transformou em livro a pesquisa mostrando a inclinação dos brasileiros pela ditadura.
A revista Bula listou livros brasileiros cotados entre os melhores publicados no ano: “O verão tardio” de Luiz Rufatto e “Sobre o autoritarismo” de Lilia Moritz Schwarcz editados pela Companhia das Letras; “Liberdade vigiada” de Paulo César Gomes e “Sobre lutas e lágrimas” de Mário Magalhães pela Ed. Record; “Jovita Alves Feitosa, voluntária da pátria” de José Murilo de Carvalho pela Chão Editora; “Torto arado” de Itamar Vieira Júnior pela Todavia.
Em Brasília, houve uma Feira do Livro na Esplanada dos Ministérios, com as confusões e a modesta repercussão de costume. Os lançamentos costumam ser feitos no restaurante Carpe Diem, mas Pedro Tierra apresentou no Sebinho sua nova obra: “Pesadelo, narrativas dos anos de chumbo”, pela Ed. Autonomia.

No mundo, os grandes destaques

Os cinco “best books” do ano para o The New York Times foram:

Disappearing Earth” (Terra desaparecida) – Julia Phillips
The Topeka School (A escola Topeka) – Ben Lerner
Exhalation stories” (Histórias de evaporação ou de sussurros, em tradução livre) – Ted Chiang
Lose children archive (Arquivo de crianças perdidas) – da mexicana Valeria Luiselli
Night boat to Tangier (Barco noturno para Tangier) – Kevin Barry
O Time incluiu na sua lista dos cinco melhores:

The nickel boys (Meninos que valem um niquel) de Colson Whitehead
The testaments (Os testamentos) de Margaret Atwood, que mereceu uma bela foto de capa
Lose children archive (vide acima) de Valeria Luiselli
The need (A necessidade) de Helen Phillips
Black leopard, red wolf (Leopardo negro, lobo vermelho) de Marlen James
O também londrino The Guardian expandiu suas indicações para várias modalidades além da ficção e em Portugal em geral os críticos preferiram dar ênfase a livros publicados nos últimos anos, como “Rio das Flores” de Miguel Sousa Tavares; “O dia em que te esqueci” de Margarida Rebello Pinto; “Os cus de Judas” de Antonio Lobo Antunes; “História concisa de Portugal” de David Birmingham com tradução de Daniel Miranda,

No começo do próximo ano já poderão ser encontradas nas livrarias brasileiras outras obras dos dois Prêmios Nobel atribuídos para Olga Tokarczuk (“Vagantes” com histórias passadas em vilarejos poloneses) e Peter Handke (“Dom Juan narrado por ele mesmo”; “Ensaio sobre o cansaço”).