Revista literária virtual de divulgação de escritores, poetas e amantes das letras e artes. Editor: Paccelli José Maracci Zahler Todas as opiniões aqui expressas são de responsabilidade dos autores. Aceitam-se colaborações. Contato: cerrado.cultural@gmail.com
domingo, 1 de setembro de 2024
OS AMORES DE GUILHERMINHO E HENRIQUETA (PARTE 1)
OS
AMORES DE GUILHERMINHO E HENRIQUETA
OU
O GRANDE AMOR DE
JÚLIO DINIS
Por Humberto Pinho da Silva (Porto, Portugal)
Contraíra, em 1827, casamento,
a Senhora Dona Ana Constança Potter Pereira Lopes, de ascendência inglesa, com
o Dr. José Joaquim Gomes Coelho, médico do hospital da Ordem de S. Francisco,
no Porto.
Nasceram-lhes nove filhos,
todos pereceram, vítimas da tuberculose. Por último apareceu o Guilherminho, –
Guilherme Gomes Coelho, – menininho que seria, mais tarde, famoso escritor,
usando o pseudónimo literário, de: JÚLIO DINIS.
O rapazinho nascera a 14 de
novembro de 1839. Doze anos depois de Dona Ana Constança se ter matrimoniado.
O parto deixou-a muito
debilitada, e recomendou, o médico, receando que viesse a contrair a
tuberculose, ausentar-se para a província, longe dos ares pestilentos da cidade.
Possuía Dona Ana, íntima amiga:
a Senhora Dona Maria Teodora, que morava em Grijó, Gaia, na “Quinta da
Fábrica", que prontamente se prontificou a recebê-la, assim como o
pequerrucho Guilherme.
Dona Maria Teodora, nascera em
1782, em S. Nicolau, Porto, como sua amiguinha, embora em épocas diferentes.
Dona Teodora era solteira, de
estatura meã, e senhora de vastos bens. Trajava à moda da cidade, de chapéu,
mesmo quando se deslocava á aldeia.
Receando conflitos fratricidas,
entre D. Miguel e D. Pedro, refugiou-se na sua quinta, fugindo das sarrafuscas
da cidade do Porto.
Era prima do Sr. Reitor, de
Grijó. O sacerdote, frequentemente a visitava, e ainda que Dona Teodora tivesse
procurador, orientava-a no governo do património.
Lia pouco a Senhora Dona Maria
Teodora, ou quase nada, e escrevia menos ainda. Confiava no procurador, que
segundo parecia, lapidava-lhe o património.
Como Dona Ana Constança viesse
a falecer, a 25 de novembro de 1844, o Guilherminho, ficou ao cuidado de Dona
Teodora.
Afeiçoou-se, de tal modo, ao
pequeno, assim como a criada, Maria Corveira, que ambas não o largavam, enchendo-o
de mimos
Dona Teodora passou a ser para
o Guilherminho, como se mãe fosse e o menino, que era amoroso, carinhosamente a
tratava por: tia.
Entretanto a criança cresceu e
foi matriculado na Escola Primária de Massarelos, Porto; depois o liceu,
concluindo o curso de medicina, em 1868, vindo a ser professor, na Escola
Médica.
Júlio Dinis, o Guilherminho,
sempre que podia, e lho permitiam, " voava" para a aprazível “Quinta
a Fábrica".
Saudades da tia Teodora? Sim;
mas também da amiguinha, inesquecível, companheira de brincadeira, de infância.
Em Grijó, sentia-se em casa e,
o local era-lhe recomendado para o tratamento do mal, que o corrompia.
Todavia, outro motivo, o levavam
a Grijó...
OS AMORES DE GUILHERMINHO E HENRIQUETA (PARTE 2)
OS
AMORES DE GUILHERMINHO E HENRIQUETA
OU
O GRANDE AMOR DE
JÚLIO DINIS
(Continuação)
Por Humberto Pinho da Silva (Porto, Portugal)
O Prior, era primo de Dona
Maria Teodora e tinha uma sobrinha, sua pupila, chamada Henriqueta.
A menina afeiçoou-se, desde
cachopa, pelo Guilherminho, seu companheiro de folguedo, e tanto adiante foi a
amizade, que nasceu um grande amor: uma grande paixão.
O Prior gostava do estudante
(Júlio Dinis,) que descansava na "Quinta da Fábrica", e via, com bons
olhos o namoro, assim como Dona Teodora, mas temiam a doença, que já lhe
vitimara os irmãos. O rapaz era franzino, e não se descortinava melhoras, nem
cura.
Já aos dezassete anos tivera o
primeiro aviso, mandaram-no para Ovar, para casa da tia, irmã do pai, ai
permaneceu quatro longos meses.
O casamento seria, portanto,
desastroso e teria, certamente, desfecho funesto.
A Henriquinha era graciosa,
bonita, bem-educada, bondosa e meiga. Possuía belos e abundantes cabelos
castanhos, que a tornava, se possível, mais encantadora.
Com tantas qualidades seria-lhe
fácil ser requestada pelos pimpões da localidade, e até da cidade vizinha, mas
a Henriquinha recordava-se do companheiro da meninice. Ganhara-lhe amor:
admirava-lhe não a formosura, que a não tinha, Mas: a inteligência, a cultura,
e o futuro promissor. Conhecia a doença do Guilherminho, mas a paixão
toldava-lhe, quase por completo, o perigo desse amor, e ansiosamente esperava
por milagre: a cura.
Depois... sentia-se amada, não
por mero amor, mas por copiosa paixão, que conhecia ser sincera, verdadeira e
pura.
A menina, desde tenra idade,
frequentava as festas, que se realizavam, na “Quinta da Fábrica “, e todas as
semanas acompanhava o Sr. Prior, para brincar com o Guilherminho.
O Reitor, por muito que
gostasse de Júlio Dinis, não podia aceitar o enlace. Tratou, então, de a casar
com seu protegido, um tal, Monteiro de Carvalho.
Quando soube do matrimónio,
Júlio Dinis, sentiu profundo desgosto, que o deixou tísico, de vez.
Se me perguntarem: A Henriqueta
foi feliz? Não saberei responder; mas creio que não, ainda que nunca o dissesse
ou demonstrasse. Portava-se com a dignidade de mulher casada. Todavia, continuava
a ver e a conversar, embora esporadicamente, com Júlio Dinis.
Mas, quem pode ser feliz, se
casou " forçado"? Via-se,ainda, com orgulho e vaidade, que certamente
a ensoberbecia, retratada em "Célia", em: " Uma Família
Inglesa", e de forma velada, em personagens, nos romances de Júlio Dinis (seu
querido, amiguinho, Guilherme.)
O escritor, por três vezes foi
à Ilha da Madeira, em busca de cura, que nunca encontrou.
Veio a falecer a 12 de setembro
de 1871, na Rua Costa Cabral, 284, Porto, com a idade de trinta e um anos,
mergulhado de dor e tristeza, por não ter casado com a “sua” querida
Henriquinha.
SORTILÉGIOS
Por Dias Campos (São Paulo, SP)
Em uma pizzada na casa de amigos, no
último sábado, o bate-papo migrou para a vida dos casais; mais precisamente sobre
as eventuais mudanças que um dos parceiros teria imposto ao outro nos primeiros
meses após o casamento.
Pode parecer clichê, amigo leitor,
mas constatamos que apenas os homens foram obrigados a modificar os seus
hábitos. Assim, a tampa do vaso sanitário passou a ser abaixada depois do uso;
a roupa suja não mais foi esquecida no chão do banheiro; e, sobretudo, a louça
das refeições ficou a cargo de ambos os cônjuges. – Você pode não acreditar,
mas só me enquadro nesta última situação.
Conversa vai, conversa vem, e acrescentei três manias que, por serem as
mais enraizadas, só poderiam ter sido modificadas por um poder além da imaginação,
e que nunca me foi revelado.
Nem se precisaria dizer que todos os olhos, interjeições e
questionamentos voltaram-se para minha mulher.
Ela caiu na risada. E fazendo-se de mística,
recusou-se a contar quais teriam sido os feitiços que me lançou tão logo
voltamos da lua de mel.
Então pediram para que eu contasse sobre minhas transformações.
É claro que me divertia com a reação de todos. E fui buscar em mais um
gole de tinto o tempo necessário para que a curiosidade aumentasse.
Pois coloquei a taça sobre a mesa, inspirei profundamente, e disse que sempre
achei um absurdo ver gente colocando pimenta na própria comida. Não conseguia
entender como alguém poderia gostar de sentir a boca pegando fogo. Da mesma
forma, tomar sopa não fazia o menor sentido. Afinal, trocar o prazer de morder
um suculento contrafilé pelo sacrifício de engolir legumes imersos em água fervente
era, para mim, coisa de maluco. Por fim, terminada a refeição, não tinha como aceitar
que pessoas preferissem substituir a deliciosa lembrança da última garfada,
seja a do prato principal, seja a da sobremesa, por uma xícara de café para lá
de quente, com ou sem açúcar. – Só um colega concordou comigo, e foi quanto à
repulsa pela sopa.
Seja como for, a única explicação
aceitável é a de que minha esposa teria conjurado sortilégios poderosíssimos,
pois desde aquele momento o meu paladar simplesmente mudou, e eu não consigo mais
comer bifes que não tenham sido temperados com pimenta; não deixo passar todo o
inverno sem apreciar a calórica sopa de cebolas à francesa; e me recuso a
levantar da mesa, acabada a refeição, sem sorver um cafezinho recém-passado e muito
bem adoçado!
Mesmo por entre palmas, assobios e insistentes pedidos para que revelasse
o seu segredo, minha mulher recusou-se peremptoriamente. E a justificativa foi
a de que eu poderia recair naquelas esquisitices de solteiro. – Mas falou
baixinho que depois enviaria a receita por WhatsApp.
E como continuei sem saber o que ela teria feito, o jeito foi abrirmos
mais uma garrafa de vinho, brindarmos aos mistérios femininos, disputarmos no
palitinho a última fatia de pizza, e escolhermos outra brincadeira, pois a
noite apenas começava.
Quem sabe um dia ela me conta?...
CURA
Por Liécifran Borges Martins (Cariacica, ES)
Cura minha alma.
Preciso de cura.
Meu coração quer
cura.
Cura minhas feridas.
Cura meu coração.
Cura minha alma.
Cura, cura meu
doce coração.
Cura, cura meu coração.
EU NÃO QUERO ME RELACIONAR ANTES
Por Liécifran Borges Martins (Cariacica, ES)
Eu não quero me relacionar,
antes de curar minhas feridas.
Nem mesmo se não estiver
muito bem na vida.
Isso é injusto comigo.
Isso é um castigo para
quem vai partilhar a vida comigo.
A vida há dois é difícil.
Mais não é impossível.
É preciso preparo.
Eu não quero me relacionar
antes de está estabilizada.
Bem empregada e bem de vida.
Isso seria um atraso nos
meus lindos e perfeitos sonhos.
Eu não quero me relacionar
antes de me curar.
Antes de estar curada.
Isso seria um castigo sem
fim para minha alma.
UM MARIDO DOS SONHOS
Por Liécifran Borges Martins (Cariacica, ES)
Um marido dos sonhos
eu quero para mim.
Que arruma a casa comigo.
Me ajude nas tarefas do lar.
Que limpa e arruma a
casa sem reclamar.
Que traga flores
sem eu pedir.
Que reza dia e noite
comigo.
Que seja intenso e
romântico sem medo.
Que ama a Deus
acima de mim.
Que compra vários
Rubens para mim.
Esse é o marido perfeito.
Marido com zeros defeitos.
Marido, marido ideal
para mim.
O CICLO DA VIDA E A ARTE DA NATUREZA
Por Leandro Bertoldo Silva (Padre Paraíso, MG)
A natureza é um manancial de
recursos para a vida. Ao nos aproximarmos dela cometemos um imenso paradoxo,
porque nos aproximamos do que nunca deveríamos ter nos afastado.
A modernidade é algo
maravilhoso pelas suas facilidades. Mas a vida é um ciclo e muitas vezes o
ultrapassado de antes passa a ser visto como o moderno de hoje.
Seja como for, na saúde, na
alimentação, nas utilidades do dia a dia, nas construções e uma infinidade de
necessidades humanas, a natureza está ao alcance das nossas mãos como um
presente eterno para quem se permite saber usá-la.
A propósito, nós somos
natureza e por isso deveríamos nos respeitar um pouco mais, sermos mais
colaboradores em um estado de comunhão perfeita, em que os recursos de um
sirvam às necessidades do outro e vice versa sem excessos. Tudo tem um tempo e
um saber, um momento perfeito de uso e entrega.
Em meu trabalho de
encadernador busco essa reaproximação com a natureza, seja a partir dos
processos, seja a partir das matérias-primas ao perceber onde e como
determinado material pode ser utilizado sem agredir o ciclo da vida ou, pelo
menos, agredir o menos possível.
Já como escritor, sou um
contador de histórias e pretendo, ao unir esses dois ofícios, escrever novas
páginas a partir dos ensinamentos passados e resgatar legados que já moram
dentro de nós.
A própria história da
encadernação nos mostra como isso é possível. Ela é um exemplo literalmente
vivo de como vários recursos estão disponíveis aos olhos de um observador mais
cuidadoso.
Não por acaso, a primeira
forma de papel conhecida é o papiro, uma espécie de planta que crescia nos
pântanos do delta do Nilo no antigo Egito. O caule era retirado com bastante
cuidado em forma de tiras, que eram estendidas em camadas sobrepostas. Pressionadas,
formavam-se folhas e as mesmas eram polidas com pedras ou conchas e podiam ser
enroladas. A escrita se fazia em apenas uma face da folha.
O mesmo acontecia com folhas
de palmeiras do Tibete. Escribas budistas escreviam nessas folhas, que eram
secadas e cortadas em tiras. A inscrição era feita com uma espécie de estilete.
As folhas eram perfuradas, unidas com fios e acondicionadas em pranchas de
madeira.
Muito se evoluiu. Dos papéis
enrolados, chamados de volumen, chegamos ao códice com páginas
individuais ligadas em apenas um lado, nascendo, assim, a lombada e
consequentemente os primeiros livros e cadernos tais quais os conhecemos até
hoje.
As capas eram variadas. Podiam
ser pranchas simples ou tecidos decorados. O melhor disso tudo, é admitir que
algo criado há milênios de anos, pode hoje ser altamente moderno.
E foi justamente na busca
dessa inspiração, principalmente da casca da palmeira, que usei para a criação
de algumas capas de cadernos copta. As cascas se desprendem da árvore
naturalmente e ao caírem ainda verdes são recolhidas, moldadas, cortadas e postas
para secar em prensas. Somente depois elas são trabalhadas formando um
resultado extremamente elegante de aspecto rústico e inovador. Passado e
presente juntos novamente.
Este é o prazer maior do
trabalho de encadernação: saber que as possibilidades são infinitas e os
recursos estão tão próximos de nós como sempre estiveram desde séculos
passados.
MEU CORPO, MEU PATRIMÔNIO
Por Paulo Cezar S Ventura (Nova Lima, MG)
Sabemos que o corpo cresce, encolhe, se fortalece, se
enfraquece, se enruga, e desaparece.
Na escola primária (nome
antigo do Ensino Fundamental I) aprendíamos que o corpo humano tem três partes:
cabeça, tronco e membros. Por mais didática que seja essa divisão, espero que
as crianças de hoje aprendam de forma diferente, pois o corpo não tem partes, é
uno: corpo humano.
Enquanto vivos estamos, esta
entidade à qual podemos dar o nome de sujeito, ser humano, ou outro, conforme
informações culturais e espirituais de cada povo, usamos esse corpo como agente
de conexão com o universo.
Entre o corpo e o universo,
coisas, artefatos, objetos,
energia, técnica, tecnologia, ciência, cultura, outros corpos.
Corpo-sujeito, corpo-artefato.
Depois de nossa morte, esse
corpo se degenera e o que permanece é fruto de especulação desde que o homem
existe e não temos, até hoje, uma resposta categórica do legado de nossa
existência.
Cada povo, cada cultura, cada
comunidade tem suas teorias e crenças. Mas o que sabemos mesmo é que, desde que
nascemos, esse corpo se modifica: cresce, encolhe, se fortalece, se enfraquece,
se enruga, e desaparece.
Então, o que temos, à primeira
vista, é nosso corpo. Nosso corpo, feio ou bonito, é nosso maior patrimônio. É
ele que nos conduz por esta vida lapidada, ao longo dela, por nossos
pensamentos, aprendizados e atitudes. Por isso, todo cuidado e atenção com ele
é pouco.
Os profissionais que
trabalham, estudam e pesquisam o envelhecimento são maioria, talvez unânime, em
afirmar que se o corpo para a mente também declina. Darei um exemplo, de pessoa
de meus relacionamentos, que corrobora a informação.
Jordelina era uma atriz, muito
ativa, que foi envelhecendo junto com os colegas de seu grupo de teatro. Apesar
da idade, eles ensaiavam e atuavam em teatros, escolas, hospitais e até em
presídios. Jordelina foi ficando surda e mesmo assim não perdia as cenas nem
seus momentos de nelas entrar.
Com o tempo o grupo foi
diminuindo porque vários dos atores e atrizes foram saindo de cena, até que a
instituição financiadora desistiu e extinguiu o grupo. Jordelina entrou em
depressão e, beirando os noventa anos, quietou-se em casa. Perdeu a motivação.
A morte do marido e a pandemia
de covid-19 a paralisaram de vez. Foi obrigada a ficar quieta em casa e sem a
presença constante de filhos e netos. A artrose tomou conta de suas
articulações e ela caminha muito pouco e devagar, com a ajuda de um andador. A
cabeça, evidentemente, também parou no tempo. Não reconhece as pessoas, suas
intermináveis histórias deixaram de ser contadas.
O que aconteceu com ela
confirma as previsões, confirma uma frase que ela mesma, Jordelina, sempre
dizia a suas amigas de mesma idade:
“Velho
que não anda, desanda.”
(Jordelina)
Diante do que venho
presenciando em todos esses anos de convivência com Jordelina, comecei a
estudar um pouco mais a relação entre corpo são e mente saudável. Sempre fui
adepto e praticante de atividade física e de alguns esportes em particular.
Joguei futebol durante mais de quarenta anos, pratiquei remo em canoa e
individual, durante alguns anos, corrida de rua e, claro, pedalei desde bem
moço. Minha maior aventura na bicicleta foi pedalar de Londres a Paris em sete
dias.
Viver
é como andar de bicicleta,
se você para se desequilibra.
(Paulo C. S. Ventura)
Diante das evidências
científicas e dos relatos dos profissionais do envelhecimento, continuo com
minhas caminhadas, pequenas corridas, musculação. Já que pernas fortes e
músculos rijos são requisitos para uma longevidade plena de memórias, pratico
todos os dias, seguindo o lema: “força na panturrilha” e “quanto mais
serotonina, menos Neosaldina.”
Além disso, as caminhadas são
ótimas para a prática da meditação ativa, em que a gente se conscientiza das
dores do corpo e da alma e trabalha para eliminá-las. Tudo acontece nos
movimentos, mas a gente mesmo tem que ser a força motriz do movimento.
A sabedoria está em saber o
que se faz com a dura realidade: abrigar-se de temporais, modificar
o curso das coisas, lidar bem com os maus resultados e com o inesperado. E
a chave é saber olhar adiante, como o enxadrista que pensa no movimento imediato
em função daqueles que se seguirão.
Tempo
que se eterniza no movimento,
que se sincroniza,
e se desmancha nesse corpo que dança.
(Paulo C. S. Ventura)
Paulo Cezar S Ventura
Graduado (UFMG) e Mestre (USP)
em Física, e Doutor em Ciências da Comunicação e da Informação, pela Université
de Bougogne, em Dijon, França. Exerceu a profissão de professor, no CEFET-MG,
onde dirigiu o LACTEA – Laboratório Aberto de Ciência, Tecnologia, Educação e
Arte. Hoje se dedica à literatura e se identifica como poeta, cronista,
contista e editor da Rolimã Editora Ltda. Autor de diversos livros. Participa
do Movimento Vidas Idosas Importam e é membro da Academia Novalimense de
Letras. pcventura@gmail.com - @paulocezarsventura
CRÔNICA DO DIA: ABOMINABLE ANNO DOMINI
Por Clarisse Cristal (Balneário Camboriú, SC)
‘’ Tenho diversos sonhos, tantas metas
Esqueço-me, dando voz a um poeta
Letras, palavras se fazem insuficientes
Reflito, tudo isto se esvai do meu ser
Permito-me sonhar e amar com ousadia. ’’
Fabiane Braga Lima.
Eu não sei como, mas desconfio das idas e vindas da minha
mãe ao salão de beleza, foi lá que ela ficou sabendo de Xinxiam. Não! Não é uma
província perdida nos rincões da China ou outro país asiático qualquer. E sim é
uma pequena loja de decoração, perdida aqui perto de casa mesmo, perto para os
padrões dos grandes centros urbanos da vida.
Então lá fomos nós, pegar a estrada, visitar o oriente ao
oriente do oriente do extremo oriente em um lugarejo esquecido por Deus. Depois
de anunciar a nova aventura de final de semana, a minha progenitora, feliz da
vida, foi fazer as malas e o meu pai o planilheiro de fé, mostrando quem manda,
foi fazer os cálculos e mais cálculos para ver quanto vai custar a aventura.
E eu? Pois bem, uma chama ardeu dentro de mim, uma luz negra
e álgida, pois algo dentro de mim dizia que algo iria acontecer, para além das
breguices de ir ao mercadejo local, para comprar imitações baratas de pinturas
e porcelanas das dinastias Qin, Han, Sui e Tang. Peças extraídas diretamente da
produção em massa, para a cultura de massa.
E do início dessa aventura de final de semana, não poderia
ser diferente, a começar com o clichê do meu pai reclamar do excesso de
bagagens e de gastos e do mutismo sorridente da minha mãe. E dando sequência ao
ganhar a estrada congestionada e para não cair em detalhes indigestos e
sonolentos de quase três horas rodando no caos do trafego terrestre.
E ao chegar no destino final, e ver a lojinha acanhada
condizia com a cidade acanhada, onde estava localizada e, lá estava os clichês
dos clichês, da pracinha, ao lado da igreja rodeada de pequenas lojas,
consultórios e serviços afins. E uma olhada mais de perto, com a sua fachada
vermelha com fontes misturavam a escrita oriental e ocidental, um alerta gritou
dentro de mim.
E gritou mais alto, quando entramos na lojinha, que em meio
à miscelânea de prateleiras de bambu, uma bancada de vidro, paredes decoradas
com pinturas orientais, tigres, garças, dragões, mulheres em trajes orientais.
Eu encontrei o que tanto procurava, atrás e acima do balcão, ladeada de duas
espadas Chinesas pretas decorativas, uma bandeira da tríade chinesa. E um
senhor de idade avançada, ladeado por um jovem orientais, estavam trajados com
roupas ocidentais.
Passado o meu susto inicial, logo constatei que não era
isto, pois era mais um clichê, uma obviedade das obviedades de mais um dia
comum, no mundo em que vivemos. Enquanto o meu pai se adiantava indo ao
encontro e de encontro com o patriarca e o possível dono da loja, saudando em
mandarim e o os orientais fechando a cara. E eu dei conta que tinha perdido a
minha mãe de vista. E a procurei com os olhos, pois o meu alarme interno ainda
estava disparado em alerta total
A encontrei olhando para o chão, apurei o olhar e vi uma
mulher abaixada, estava arrumando uns itens, no compartimento estanque. Era uma
funcionária da loja, calculei, ela usava trajes chineses típicos e ignorava a
minha mãe por completo. E foi quando ela se levantou e encarou a minha mãe, que
por fim encontrei o que procurava. Para além das vestes de seda, a cor de
ébano, cabelos cacheados e olhos castanhos rasgados e a empáfia de quem ocupa
um cargo que estava abaixo do que merecia.
E tive a plena certeza quando a jovem e belíssima mulher
olhou para mim e pude a ver as sombras nos olhos dela. Não era dor, frustração,
nem vergonha ou amarguras e em uma leitura fria era tudo misturado. E devolvi o
meu olhar para a dama vestida de seda e nós entendemos, era o início de uma
amizade sincera e fortuita.
Fragmento do livro, Do diário de uma louca, de
Clarisse Cristal, poetisa, contista, novelista e bibliotecária de Balneário
Camboriú, Santa Catarina.
SENTIMENTOS OCULTOS: MINHA ALMA AQUIETA-SE
Por Fabiane Braga Lima (Rio Claro, SP)
O teu cheiro me impregna, mexe com o meu corpo, tenho
sentimentos vastos, ocultos e profanos. Você atiça, todos os meus desejos
libidinosos mais ocultos. E, todo este amor me enlouquece, sou devorada por
esta paixão tão insensata, abuso-lhe.
Preciso sentir o seu cheiro, o gosto dos seus beijos, saciar
as vontades do meu corpo, que chama ousadamente pelo seu, trêmula sinto seu
corpo! Encaixo-me, fico entrelaçada junto a você! Nesse momento, tão nosso,
você me possui em silêncio absoluto, entre gemidos de amor e gritos omitidos.
Entristeço-me, não lhe acho, não sinto seus beijos, sua essência, sua voz que me embriaga, que me leva ao amor mais puro, e aos muitos momentos pecaminosos, não lhe ouço. Minha alma aquieta-se, eternizando nosso amor em cada verso, em cada poema...!
Fabiane Braga Lima, poetisa, cronista, contista e novelista em Rio Claro, São Paulo.
Contato: debragafabiane1@gmail.com
SONHOS E REALIDADE
Por Clarisse da Costa (Biguaçu, SC)
Eu poderia estar pisando
Numa poça d'água
Se não fosse tão tarde.
A chuva que cai esta noite
Me traz tantas recordações.
Eu consigo me ver
Com os meus barquinhos de papel
E os meus pés pisando
No barro vermelho
Em frente à minha casa.
De alguma forma estranha
Eu tinha liberdade
Mesmo que limitada.
Os tempos eram outros.
Dá para acreditar que
O céu era mais azul?
Falando assim
Até parece que alguém
Andou dando um retoque na cor
Como se o céu fosse
A tela de um pintor famoso.
Mas é que,
As perspectivas daquele período
Eram outras.
E no entanto,
O preconceito sempre me seguia.
Eu me perdia entre as incertezas
Diante do espelho
E os sonhos que brotavam em mim.
A gente sonhava
Sem ter a certeza de alguma coisa.
É como se a gente sonhasse
Apenas por sonhar.
Vai que por acaso acontecesse.
Desculpa.
Esqueci que o acaso não existe.
Mas também não dá para dizer
Que o destino tem data
Marcada para acontecer.
O calendário é um mero figurante!
Clarisse da Costa é poetisa, contista, cronista e designer gráfico em
Biguaçu, Santa Catarina.
Contato: clarissedacosta81@gmail.com
ENCARCERADOS (IN A PERPETUAL DREAMS)
Por Fabiane Braga Lima (Rio Claro, SP) e Samuel da Costa (Itajaí, SC)
Escrevo, mas não p’ra satisfazer
O meu ego
Estudo as almas,
Então escrevo pra aliviar
Carrego em minh’alma
Com dores e gemidos
Gritos eloquentes,
São vozes que não se calam.
***
Eu em descompasso
Com o tempo presente
Componho não para mim
E sim para os outros
Escrevo negras linhas
Em hialinas páginas em branco
***
Há quem pense
Que enlouqueci, mas não
Cansa-me de todo este fardo
No qual carrego
As madrugadas são amenas,
A lua me acalma
Descarrego todos os gritos
Contido por dentro.
***
Prima-dona das belas-letras
Eu componho a minha verve
Na tela que é vívida
No corpo incorpóreo nu
Postado no além dos astros mortos
Minha ebúrnea maestrina imortal
Poetisa inquieta
Que repousa e se banha
Absoluta em límpidas
Águas tranquilas
De um Rio Claro
***
Escrevo fugaz,
Poemas de amores e paixões
Pode serem inconscientes,
Ou apenas sonhos
Mas preciso gritar em versos!
Descarregar!
***
Compunha
Livres versos atemporais,
Prima-dona minha
Que os cósmicos ventos solares
Espraiam ad aeternum
Os teus ardentes
E eufônicos estribilhos
***
Doí a carne,
Atravesso os mundos paralelos
Fortifico-me,
Clamo pelos encarcerados
Ajoelhou, oro e dou voz
A estranha insanidade.
Fragmento do livro: Duetos poéticos Sul-Sudeste.
Fabiane Braga Lima, novelista, poetisa e contista em Rio Claro,
São Paulo.
Contato: debragafabiane1@gmail.com
Samuel da Costa, escritor, novelista, poeta e contista em
Itajaí, Santa Catarina.
Contato: samueldeitajai@yahoo.com.br
MINHA MÃE É PRETA 2
Por Clarisse da Costa (Biguaçu, SC)
Da minha cor
Eu tiro a força da minha mãe
Que na sua esperança
Por dias melhores
Viu seu filho morto
Na cruz da opressão;
Na minha mãe
Memórias e traços da nossa história
Escritas na pele
De quem só conheceu a dor;
Minha mãe é preta,
Princesa das favelas
Dos cantos das periferias
Dos sonhos da nossa negritude.
Diante da submissão
E do olhar perverso
Entoa o canto dos orixás;
Com os olhos voltados
Para o filho excluído
Julgado e condenado;
Açoitado na terra da desigualdade;
Guerreira e rainha do mar
Algoz da liberdade!
Clarisse da Costa é poetisa, contista, cronista e
designer gráfico em Biguaçu, Santa Catarina.
Contato: clarissedacosta81@gmail.com
FELIZ ANIVERSÁRIO, FILHO!
Por Walldyr Philio (São Paulo, SP)
Foi no dia 09 de maio que ele nasceu. Para falar a verdade, a sua inexistência já estava programada pela sua mãe, uma vez que ela não queria mais filho algum, ficando somente com a menina que veio antes dele. Porém, seu pai arquitetou um plano e colocou em ação, furou com agulha todas as camisinhas que ficavam em um pote ao lado da cama em cima de uma mesinha de cabeceira, sendo assim, toda vez que precisava usar uma delas para seu ato sexual elas estouravam deixando fluir o seu material genético para dentro do corpo da sua esposa engravidando-a com o passar do tempo.
Nasceu grande com exatos 4,850kg e medindo 56 cm de cumprimento. Era um bebê gordo, lindo, cabeludo, forte e grande entre os demais que ali havia chegado antes dele. Chegou aos berros com um choro forte e gutural como os gritos de um guerreiro espartano no estopim das batalhas. Seu choro preenchia o quarto como se quisesse a todo o custo anunciar a sua chegada ao mundo.
Seu coração estava mexido em um turbilhão de sentimentos confusos e indistinguíveis, todos fundidos em uma única mistura de alegria e tristeza pelo sofrimento da sua mãe na hora de dar-lhe a luz sem que ele nada pudesse fazer para amenizar a dor cruciante que a mesma sentia... Tristeza por estar desempregado e saber que seu filho tão pequeno e indefeso precisaria dele para sobreviver no mundo louco a qual acabara de chegar e isso o deixou assustado deveras. Porém, havia uma alegria tímida, escondida atrás das preocupações, atrás do medo, do fracasso, atrás das incertezas e dúvidas que permeavam sua mente, era a alegria inexplicável de ser pai, uma alegria que o completava como ser humano, que o colocava em pé de igualdade a todos os pais do mundo e isso irradiava de sua alma enchendo-o de orgulho e fazendo um sorriso tímido brotar em seu rosto amedrontado.
Havia um nó agigantado em minha garganta que não se desmanchava por mais que tentasse, suprimindo suas emoções como as muralhas de uma represa, impedindo-o de chorar. Estava envolto em um emaranhado de sentimentos confusos, intransponíveis que deixavam seus olhos marejados de lágrimas quentes, grossas que ofuscavam sua visão, aquecendo a sua alma como uma caldeira a vapor que encharcava seu corpo com um suor frio lhe proporcionando um tremor desmedido e convulsionado que se apoderou do seu corpo como uma entidade do mundo desconhecido, controlando a firmeza dos seus músculos que se fragilizavam ao ponto de o deixar amolecido com uma esquisita sensação de prostração, tudo nele tremia, até a sua voz, e nada havia que pudesse fazer para assumir o controle e parar com aquela dança inquieta que agitava a sua alma.
- Você está bem pai? Quis saber a médica que habilmente fazia o parto, demonstrando preocupação com o seu estado emocional bagunçado. Quer sentar-se um pouco? Tem certeza de que está bem? Ainda inqueria ela enquanto rasgava a vagina da mãe da criança com um bisturi tão afiado e brilhantemente polido que teve a sensação de que até o ar seria possível cortar com ele!
Era difícil chorar! Não conseguia direcionar o seu choro a uma única razão, uma vez que não conseguia decidir se chorava por vê-lo nascer, ou por sua mãe que sofria as dores descomunal e horríveis para dar-lhe um nascimento humanizado através do parto normal em vez de optar por uma cesariana. Seu menino saía aos poucos, sua cabeça com tufos de cabelos negros e empastados com uma massa esbranquiçada saiu depois que a sua mãe empurrou com uma força quase sobrenatural e praticamente esmiuçar a mão do pai da criança em fragmentos pequenos e crocantes como uma bolacha cream cracker.
- Pai, seu bebê é muito grande, vou precisar quebrar a clavícula dele para ele sair com maior facilidade. Disse-lhe a obstetra como se isso fosse à coisa mais natural do mundo.
Seus olhos estavam perdidos no abstrato da realidade vazia. O tempo havia parado e ele estava totalmente catatônico diante do pavor que o abatia.
Quis entender o incompreensível! Sentiu vontade de orar e falar com Deus em uma audiência de urgência mais as palavras havia lhe abandonado e ele estava emudecido, esquecido no mundo da inexistência! Seu corpo estava gelado como se a sua alma estivesse fugida deixando-o à mercê da inanição e pela primeira vez o pavor foi apagando a luz dos seus olhos e entorpecendo os seus sentidos. Estava prestes a desmaiar!
- Fica tranquilo pai, isso é necessário fazer em bebês fortes e grandes como ele, daqui a 20 dias no máximo o osso estará totalmente calcificado e ele não sentirá dor alguma durante esse processo. Disse-lhe ela tentando-o confortar com o esclarecimento da situação!
Era um dia de sábado e no dia seguinte seria o tão aguardado dia das mães, uma data repleta de sentimentos onde os filhos mais rebeldes, distantes, frios e revoltados se sensibilizavam e aderiram ao clima imposto pela sociedade que torturavam as mentes débil dos filhos incutindo-lhes o dever obrigatório e sagrado de comprar um simples presente que representasse seus sentimentos para com a sua genitora. O comércio explodia de alegria ao ver como suas vendas antes empacadas com produtos empoeirados nas prateleiras das lojas sendo adquiridos com preços variados dos mais baratos aos mais exorbitantes. Filhos reuniam suas finanças para alegrar o dia das mães como um fiel escravo do dever. Mesmo quem não conseguia presentear a sua mãe no mínimo dava-lhes um abraço com a felicitação de "feliz dia das mães". As escolas ensinavam as crianças a fazerem cartazes com folhas de papel sulfite, cartolinas, colagem com recortes de revistas, peças, danças e algumas poesias malfeitas que as crianças recitavam com a timidez vergonhosa de um pequeno aspirante a artista.
Ele nasceu um dia antes dessa
efervescência social.
Seu pai estava lá assistindo ao parto. Aliás, sempre esteve ao seu lado, mesmo quando ele estava na barriga da sua mãe, lá estava seu pai cantando para ele, beijando a barriga grande da sua mãe de pele esticada besuntada com óleo de amêndoa para proporcionar elasticidade natural e diminuir com isso o aparecimento excessivo de estrias em sua pele branca!
Ele estava lá em todas as consultas de pré-natal e até na ultrassonografia também estava lá, sim, estava do lado de fora da clínica porque não foi permitido entrar na sala para assistir ao procedimento uma vez que carregava em meu colo a sua irmã que estava prestes a completar os seus dois anos de existência. Ficou ali na calçada da clínica emburrado, mal-humorado por ter perdido a chance de vê-lo através das imagens malfeitas, borradas em preto e branco como um quadro abstrato..., mas, ele estava logo ali, perto o suficiente para seu bebê o sentir e saber que tinha um parceiro, um pai e um amigo para ampará-lo em toda a sua vida.
Ele o viu nascer. Estava ali sentindo em seu peito de pai o peso dos assomos de sentimentos confusos das emoções do momento, segurando o seu recém-nascido em seu colo enquanto o mesmo preenchia a sala com seu choro alto, imponente a despeito do seu acalento desajeitado. Beijou de leve a sua cabeça e nessa hora as lágrimas represadas encontrou passagem livre pelas órbitas oculares cansadas molhando seu rosto enquanto conversava com ele.
- Oi meu amor, o seu pai está aqui filho! Disse, crivado de emoções como se estivesse sendo entendido! Eu nunca vou te abandonar, nunca vou te deixar sozinho nessa vida meu parceiro. Desculpa por te trazer para esse mundo!
Estava amolecido pelo choro que rebentara do seu peito, arrancando-lhes as forças dos seus braços. Ele segurava o peso da responsabilidade em seus braços débeis. Segurava o futuro incerto que precisava de sua ajuda para ser construído, lapidado, educado e moldado para se tornar um homem de bem no meio de uma sociedade corrompida. Ali estava a esperança frágil em seu regaço que precisava crescer forte. A esperança que pouco a pouco colocava sentido à sua vida se tornando a razão da sua existência medíocre!
Ele não sabia ao certo o que estava dizendo, talvez estivesse fragilizado em um devaneio de torpor de um pai preocupado que temia que seu pequeno rebento padecesse os revezes da necessidade de uma vida cruel, pobre e miserável como ele teve. Estava desempregado e temia na alma que seus filhos passassem por situações difíceis na vida como ele passou!
Lá fora na calçada de entrada do hospital, vendedores ambulantes vendiam arranjos de flores lindas e mimosas, caixas de chocolates e outras quinquilharias para que os maridos comprassem e presenteassem as suas esposas e mãe dos seus filhos homenageando-as com um muito obrigado pela família que ela os deu! Ele, porém, não comprou nada para ela. Só tinha em seu bolso o dinheiro da condução para voltar para casa, dinheiro esse doado pelo seu irmão que na época trabalhava como ajudante de pedreiro. A sua situação financeira era difícil quando seu filho nasceu. Sentia-se um lixo de homem e sua autoestima de pai estavam tão baixos quanto os sedimentos que descansam silente nas profundezas das fossas das Marianas. Deixou-o seu pequeno na incubadora, se despediu da sua mãe e voltou para casa para cuidar da sua irmã que havia deixado aos cuidados da sua cunhada, e no trajeto para casa, enquanto pensava sobre a sua triste situação fui tomado por um arroubo de choro que arrebentou o seu peito mais uma vez, era um choro miúdo, dolorido, recheado com uma tristeza de desespero que até então desconhecia, uma tristeza de impotência que o fragilizava, zombando da sua capacidade de arrimo de família.
Ainda se lembrava com vividez dos fatos dessa história que no calendário do tempo havia transcorridos seus 15 anos. Isso mesmo, seu bebê chorão e gorducho que nascera no dia acima mencionado havia se tornado um belo adolescente com um físico invejável de músculos delineados que modelavam seu corpo se comparado com os garotos da sua idade e assim, chegou para ele a fase da autossuficiência que o fez se sentir insuperável e invencível, demostrando ser o detentor da certeza, a pré-adolescência. Herdou as características do seu velho pai em sentimentos, mais o orgulho egoísta e presunçoso veio como brinde acompanhado seu modo de vida. Conquistou amigos que o influenciava mais que os conselhos do seu velho pai, figura essa que foi sendo guardada pouco a pouco na gaveta de arquivos secretos da sua vida, abandonando-o ao esquecimento. Seu pai já não era tão importante quanto antes, havia deixado de ser seu herói há muito tempo e hoje assumira em sua vida o papel de bandido. E isso se agravou no momento em que seu pai chamou a sua atenção por ter quebrado o vidro da porta de entrada da academia onde fazia musculação.
- Grande coisa, acha que vou morrer de fome porque você vai descontar o conserto da porta da minha pensão? Indagou-o de forma insolente revelando uma revolta guardada no porão da mágoa que há muito tempo fermentava os seus sentimentos, produzindo mofos de desprezo e indiferença por seu pai.
Alguma coisa havia mudado em seu coração, já não enxergava seu pai como uma parte integrante da sua alma e sim como parasita que lhe sugava o oxigênio psicodélico da esperança utópica da sua vida juvenil!
- Não preciso da sua esmola miserável de pensão para viver, se é isso o que você está achando, está completamente engando, pode ficar tranquilo que eu tenho uma mãe para cuidar de mim, não preciso de você, aliás, você nunca cuidou de mim mesmo, nunca se importou comigo e agora quer dar uma de pai só porque quebrei a merda de uma porta de vidro? Vociferava ele de forma autoritária andando de um lado para o outro exasperando a sua raiva contida e ensaiada para aquele momento de espetáculo.
A separação foi a pior coisa que havia acontecido na vida do seu pai, não pelo fato da desconstrução do casamento em si, uma vez que esse já havia terminado há muito tempo, não lhe sobrou mais nada, nem um resquício de respeito espalhados nas tramas do tecido do tempo havia para que pudesse ser coletados e criar com eles uma peça abstrata que simbolizasse a beleza incompreensível dos anos vividos a dois. Tudo ruiu, só restou uma única peça marmórea de beleza artística e valor inestimável que estava sendo corroído pela ação da maresia da passagem do tempo, seu filho, seu tesouro!
Ele tentou a todo o custo reconquistar o coração orgulhoso e magoado do seu filho rebelde, queria se reaproximar mais era impelido com ferocidade e empurrado ao ócio do desprezo e indiferença. Olhava as mensagens que seu pai lhes enviava depois de dias passados e não lhe respondia coisa alguma demostrando desprezo frio, ferrenho, temperado com ódio que nascia pouco em sua mente e coração confusos.
- Filho, quem separou foi o marido e a mulher, pai e mãe não se separam nunca, eu ainda sou o seu pai e te amo muito, sinto a sua falta e estou morrendo de saudades de você, por favor, vamos nos encontrar, quero comemorar o seu aniversário com você, vamos conversar um pouco filho.
Disse-lhe por mensagem certa
vez, depois de dias sendo ignorado.
- Seu filho não quer falar com você, faça um favor de cuidar da sua nova família e deixe o meu filho em paz, deixe que dele eu cuido, não preciso de você para isso, aliás, ele mandou te dizer que pai tem aos montes nas esquinas da vida, mais que mãe ele só tem uma. Você é tão ruim que nunca soube manter seu filho ao seu lado. Vê se não fica importunando o menino.
Disse-lhe a mãe do garoto respondendo-lhe pelo aparelho celular do seu filho comprando-lhe as dores. As lagrimas arrebentaram o seu peito como água de chuva em enxurrada. Foi tomado por uma tristeza que o abatera ao ponto de se sentir prostrado, sem animo, sem forças, sem vontade alguma para nada.
Não conseguia dormir direito, ficava a maior parte da noite acordado e quando pegava no sono acordava de tempo em tempos como se o seu sono de descanso fosse fragmentado pelo pesadelo do abandono incompreensível. Ele queria o seu filho de volta, queria ampará-lo em seus braços, beijá-lo como fazia, queria assistir filmes e animes como fazia antes, queria irritá-lo bagunçando seus cabelos como sempre fazia; substituir o almoço por hambúrguer do Mc Donald’s com refrigerante em dias frios e comer pizza juntos assistindo aos jogos do seu time. Ele sentia falta do seu menino, era como se faltasse um pedaço do seu coração para viver e a falta desse pedaço estava matando-o pouco a pouco.
- Deixe-me vê-lo. Implorou a sua ex esposa engolindo seu orgulho e se humilhando para ela como um mendigo de rua que pede encarecidamente uma esmola qualquer para continuar sobrevindo em seu mundo de miséria e insignificância. Havia dor em sua alma enrolada com os embrulhos dos momentos tristes, uma sucessão de fatos ruins que se acumulavam dia após dia como uma cadeia maldita de azar que o seguia a aonde quer que fosse, como se estivesse arrastando uma corrente grossa, longa e pesada amarrada a seus pés, dificultando o passo da sua caminhada.
Estava cansado e isso era visível em sua fisionomia! Sua barba grande revelava o pouco cuidado que estava tendo, cabelos antes penteados e com o corte em dias, estavam sempre bagunçados, grande e sem forma definida.
Estava se entregando ao abandono de forma gradativa, sem perceber, sem se importar.
Saiu do trabalho mais cedo nesse dia. Havia mandado uma mensagem no celular do seu filho dias antes pedindo para ficarem juntos. Era o tão aguardado momento do aniversário do seu rapazinho! Depositou em sua conta um valor para as despesas da viagem de trem, ônibus ou um taxi qualquer para ele vir e comemorarem juntos essa data tão importante. Não houve resposta do seu filho em momento algum, assim, como das outras vezes o que recebeu foi o desprezo frio e incisivo, mas a esperança ainda gritava animo em seu coração. Não tinha dinheiro suficiente para fazer uma festa como sempre fez, mais encomendou na padaria dois lindos bolos pequenos de festa, um com recheio e cobertura de chocolate e o outro com recheio de morango e cobertura de chocolate branco, comprou um refrigerante Coca-Cola, limpou a casa o mais rápido que pôde, tomou banho, colocou uma roupa casual e aguardou enquanto olhava ansioso o seu celular a todo o instante à medida que os minutos e horas transcorriam e nada! Ele não veio, não justificou a sua ausência com uma desculpa qualquer! Simplesmente ignorou o carinho e amor do seu pai, como se ignora algo que não tem importância alguma, algo sem valor, algo descartável que não acrescenta ou diminui em nada na sua vida.
Ele quis dizer de forma bem categórica através da sua atitude de que não precisava mais do seu pai para viver. Que a sua estrada havia se dividido em bifurcações que os levariam a lugares diferentes e distantes dali para frente. Mas, um pai não sabe viver sem um filho! E a não convivência com seus filhos gera um buraco de abismo vazio em seu coração que se torna impossível de ser preenchido! É como se a sua alma abandonasse o seu corpo e este agora fosse obrigado a se adaptar e viver vegetando no mundo da impossibilidade existencial.
Ele sentiu tão profundo em seu âmago a dor do abandono que chorou tudo o que há dias estavam trancafiados em seu interior. Seu corpo foi abraçado pelo frio da rejeição ao ponto de arrancar-lhe soluços de sua alma seca solavancando seu corpo! Ele queria entender o porquê valia tão pouco assim na vida do seu filho se o amor, carinho, cuidados e fetos que nutria por ele era tão intenso quanto o da sua mãe! Por que pai não tem valor? Porque é tão fácil se livrar de um pai? Porque o pai tem que viver com o resto do que sobra da vida? Restos de carinho, de amor, de afeto, de zelo, restos de tudo...
Pai sempre fica em segundo plano na vida dos filhos, por quê? Ele chorava porque não conseguia encontrar respostas para as suas questões que abarrotavam a sua mente doída, chorava porque estava perdendo o seu maior tesouro, o seu bem mais valioso estava indo-se embora como água que escorre por entre os dedos e ele já não podia fazer mais nada para segurá-lo.
Ele chorava porque estava perdendo mais uma vez, porque sempre perdeu na vida! E na sua dor de abandono questionou a Deus o motivo de tudo aquilo, sofrimento e abandono, na verdade em seu amargurar ele culpou aos céus pela sua frustração! Não pensou em orar. Não queria falar com ninguém, nem com Deus! Só queria chorar e esvaziar o peso que esmagava a sua dignidadede homem.
Levantou-se do sofá com o corpo pesado e não percebeu que estava febril, estava letárgico que andava pela casa mecanicamente como um fantasma que levita suavemente sem tocar o plano físico. Olhou com os olhos marejados de lagrimas as imagens de um clipe da música que tocava no YouTube e viu com espanto a sua história representada nela. Era a música “Quizás” do cantor Enrique Iglesias. Lembrou-se com maior tristeza do seu velho pai também. Queria voltar no tempo e consertar o seu passado quebrado, desfigurado, escrevendo nova história nas páginas rasgadas e amassadas do tempo... Queria abraçar seu pai e se retratar como homem, como filho, como pai, mas o abismo que separa os vivos dos mortos não pode ser cruzado, não existem pontes que se permita fazer isso e mais uma vez sentiu a necessidade de chorar. As lagrimas não paravam de brotar das suas órbitas avermelhadas. Olhou mais uma vez os bolos posto á mesa ao lado do refrigerante sem presentes, sem velas, sem aplausos, sem tumultos... Uma festa vazia, tão solitária quanto o seu coração enquanto arrastava seus passos débeis, lentos e pesados até a sua cama. Deitou-se encolhido como um bebê no conforto do útero materno enrolando seu corpo com uma manta e adormeceu o sono dos infelizes, do infortúnio, do desamparo e solidão.
Acordou ardendo em febre, sua cabeça estava tão pesada quanto à montanha dos Apalaches. Trocou sua roupa encharcada de suor! Olhou mais uma vez suas mensagens de WhatsApp na esperança de encontrar alguma coisa do seu filho, mas só enxergou o abandono, a decepção e concluiu com angústia que sua relação estava desfeita e que não haveria mais conserto para o que se partiu. Ele precisava seguir de alguma maneira, precisava se perdoar e recomeçar. Tomou uma decisão e começou a colocar em prática de imediato.
Saiu de casa mesmo desprovido de ânimo e saúde até o shopping da cidade para comprar outro aparelho celular, comprou também um novo chip, passou na imobiliária e depois de ouvir as considerações de um corretor, deixou sua casa aos cuidados do mesmo para que efetuasse a venda. Buscou na internet uma chácara em um local afastado do interior de outro estado e correndo o risco de levar um golpe do destino fechou negócio de compra deixando seu advogado encarregado dos trâmites legais para esse fim. Contratou os serviços de uma empresa de mudanças e agendou o dia da sua partida. Iria embora sem dizer nada a ninguém, sem se despedir, sem adeus! Não havia mais razão alguma para ficar, não era mais necessário na vida do seu filho, não tinha mais família que se importasse com ele, não tinha mais serventia para alguém, como um produto que expirou o seu prazo de validade! Sendo assim, não havia mais o que fazer a não ser tentar sobreviver em outro local longe de tudo e todos.
Dizem que aquilo o que os
olhos não veem, o coração não sente!
A sua mudança foi na frente enquanto ele ficou para resolver algumas questões que ficaram. Foi até o bairro onde o filho morava com a mãe dele e sua avó e o viu sentado no quadro da bicicleta conversando com alguns amigos na praça em frente à igreja matriz. Estava lindo como sempre foi, havia adquirido músculos que deixaram seu corpo tão belo como a escultura de mármore de “David” talhada habilmente pelas mãos de Michelangelo. Seu sorriso era vasto enfeitando seu rosto imberbe e embelezando o ambiente ao seu redor. Seus cabelos estavam bem cortados e penteados com graciosidade, a camiseta estava jogada no seu ombro e o celular preso no elástico da bermuda azul de tecido mole que usava deixando á mostra um par de pernas fortes como as colunas do templo de Atenas. Ele estava bem, seu pai, não!
Seu coração estava acelerado e um sangue aquecido percorria as suas artérias fazendo-o ligar o ar-condicionado do carro, colocou a sua playlist para tocar enquanto colocava seu óculo de sol para não demonstrar seus olhos vermelhos pelas lagrimas que chorara durante esse tempo. Olhou mais uma vez o seu filho querendo correr ao seu encontro e se jogar em seus braços.
Queria beijá-lo, sentir seu calor de parceiro, de filho, de amigo. Queria ser completado com o amor do seu filho que tanto lhe fazia falta. Queria voltar a ser seu pai, não um pai na legalidade impositiva da lei, mais um pai que seu coração pedia para ser, um pai que sempre foi. Queria tantas coisas mais não podia mais nada, não era mais aceito e a dor da rejeição havia inflamado a sua alma arrancando-lhe toda a coragem que restou. Ligou o seu carro e partiu devagar ouvindo o hino “Lembranças” da banda “Altos Louvores”. Partiu sozinho rumo ao seu claustro final, rumo ao seu recomeço de solidão final.
Partiu sem a sua alma, sem a sua completude. Olhou mais uma vez o seu filho e abençoou a sua vida.
- Fica bem filhão. Que o Deus em sua infinita bondade te cubra de benção e que seu caminho seja prospero e feliz. Eu te amo mais que tudo meu amor, meu pequeno guerreiro. Feliz aniversário meu parceirinho! Dizia baixinho como se estivesse com medo de que o vento roubasse o som da sua voz e levasse suas palavras ao ouvido do seu filho! Lembrou-se do seu aparelho de celular antigo que estava no porta-luvas do carro, abriu, pegou e ligou o mesmo. Havia uma mensagem no Whatsapp do seu filho que dizia.
- Oi pai, obrigado mais não precisa se preocupar comigo. A minha mãe fez uma festa de aniversário para mim na casa da tia Eva, mesmo assim, obrigado. Encostou o carro na frente de uma loja de roupas infantil, debruçou a cabeça no volante do carro e chorou a sua despedida solitária de abandono.
Partiu sozinho sem se
despedir, sem dizer adeus!