Por Ridamar Batista
(Anápolis, GO)
Minha cidade não é uma cidade, é um clã ou
melhor uma tribo. Não temos língua pátria, temos um dialeto exclusivo e puro.
Somos apreciados pelo mundo a fora como seres "DiouUU" ou seja, de
outro planeta, porque entre nós pouca palavra basta e se for
apenas um pedaço, aí sim, é que se fala tudo.
Falamos de várias
maneiras, inclusive com as mãos e falamos muito alto, acho que o motivo, são os
morros que abafam nosso som. Em nosso linguajar podemos encontrar muitas
ramificações dialéticas, como por exemplo falar de trás para frente, falar a
língua do P ou falar por sinais e neste campo entram, pequenos toques, piscar
de olhos, trejeitos com a face, levantar a sobrancelha, cocar, lamber os
lábios, tocar suavemente ou mesmo beliscar o outro, isso depende da
circunstância.
Temos costumes
diferentes, e, ao mesmo tempo, iguais. Existe um algo em comum que supera todas
as expectativas. Cantamos, dançamos, fazemos festas homéricas ou simplesmente
conversamos, sendo que uma coisa e outra ou tudo junto, é sempre o mesmo ato de
ser feliz.
Por nossas
calçadas enfeitadas de pedras multicoloridas, passaram e passam pessoas de
todas as partes e de toda as condecorações, e, ninguém de nossa tribo levanta a
cabeça ou a abaixa por tal transeunte. Somos sempre mais importantes. Somos daqui.
Qualquer pessoa que
ousar pisar o nosso chão sem pertencer ao mesmo clã, é sempre e para sempre
chamado " gente de fora".
Somente o padre ( grande contribuidor para o aumento do clã) nunca fora chamado
de fora. Respeito? Talvez um quê de hipocrisia, melhor com ele...
O médico também é
pessoa colocada no pedestal. Para ele tudo e todos, sem jamais questionar um ato
ou fato.
O que mais me
encanta em minha cidade é o gosto comum pelos apelidos. Todo mundo tem um e nem
se pode dizer no tal Bullying. É mesmo quase cordial, quase afetivo ter um apelido, por mais esdrúxulo que pareça.
Fogueira, Ferrugem ou Fogoió, tudo se
refere a quem tiver nascido com os cabelos ruivos, e, não foram poucos. Numa
cidade como esta é de se admirar, porém,
ninguém busca razões, apenas apelida e
pronto. Sabiá, Periquito, Ganço ou qualquer outro pássaro que por ventura fizer
motivo, se torna por aqui em nome próprio. Ganbá, coruja, Jegue, Jumento ou
coisa parecida, todos estes apelidos são comuns.
" Peidou, cagou"... pobre moça, fora conhecida até
se mudar, por este triste apelido que lhe fora concedido, por um momento de
torpe diarreia em pleno cinema da cidade.
E para não falar dos tantos bobos que por aqui
habitam... À bobos, se incluem todos que
não fazem parte da maioria extremamente culta, poética ou boêmia, que formam a
massa. E estes conhecidos por " uma parte no canteiro" ou um mil reis
na nota", não me perguntem nunca o que, isso quer dizer. Só ouvi, nunca entendi.
Numa tal sintonia
intelectual vive esta gente que ao longo de uma vida dois amigos se falavam por
meio de Charadas. Eram compadres, amigos e eternos companheiros de pescaria,
cachaça e cigarros. Um dia voltando de uma desta tais pescaria um dos dois ao
chegar próximo da esquina de suas casas disse:
- Ultimo cigarro
da pescada.
Um foi para um lado e o outro para o oposto.
Lá pela meia noite, o compadre que ficara
calado, se levanta da cama e sai de casa. Bate a aldaba da casa de seu amigo e
quando este se levanta para atender o compadre lhe pergunta:
- Quantas?
Em charadas se faz
uma frase e se diz o número de sílabas, daí o outro tem que responder uma
palavra que coincide com o número de sílabas e o resultado da frase, mas
naquele momento não havia Charada. Era apenas uma despedida.
-Quantas?
O compadre que dissera a despedida"
Ultimo cigarro da pescada" ficou sem entender nada. Daí ou outro amigo lhe
explicou:
-Não consigo dormir.
Já tentei de tudo, mas você não me deixou o número das sílabas.
Risos,
explicações... Tudo resolvido, não era uma charada. Apenas uma simples
despedida.
Tudo acontece em
minha cidade.
Quando ela começou, vieram pessoas de alguns
lugares e ali foram se assentando, fazendo a vida e fazendo fortuna. Tudo virava
dinheiro. Os minerais eram de uma fartura incomensurável, os animais se
reproduziam aos milhares, os vegetais floriam em profusão e os homens eram
felizes e nunca mais dali se foram. Misturaram... misturaram. Até que formou o
clã. Beleza, força e coragem. Assim se fez o povo.
Tudo é festa, colorido e som. Todos são
músicos, artistas e poetas.
Tem até quem diz
que em minha cidade quando nasce um filho, joga-se na parede. Se pregar é
músico ou poeta e se cair é músico, poeta e boêmio.
As mulheres
possuem uma beleza tão grande que chega a hipnotizar estranhos. Usam roupas
coloridas, adornos pelo corpo e cabelos longos. Tranças longas, belas tiaras,
cordões de ouro, anéis e pulseiras, muitas delas feitas pessoalmente.
Dançam como ninfas
e cantam o som dos deuses. Possuem um
timbre de voz que faz as pedras se movimentarem e as águas do rio encrespar.
De cabelos longos, lisos, anelados ou totalmente
encarapinhados, são todas umas fadas. Dançam e cantam a luz da lua e enfeitiçam
homens e deuses. São belas. Negras, brancas ou amareladas, todas se pintam para
conquistar seus homens e estes ficam tão enfeitiçados que por elas choram a vida toda.
Tocam todos os
instrumentos musicais, homens ou mulheres e saem pelas ruas a fazer serenatas
ou cantatas, e ali compõem seus versos, suas músicas ao luar. Imitam o
cantar do rio, das cascatas e da mata que festeja os
equinócios e solstícios num eterno se revestir de cores, cheiros e sabores.
Cantam a cantiga dos pássaros, falam com os animais.
Amam o violino, a
flauta, a guitarra e o piano. A música faz parte da arte e da vida.
Os poetas abundam.
Em toda casa se faz poesia e a poesia se faz em cada coração. ]
Os amores são
quase eternos, e, quando não são, ficam
remorsos e empedernidos, vão se
transformando em música ou poesia. Assim é minha cidade, um pouco da ternura
dos índios, muito da sabedoria dos ciganos e algo do sensualismo dos europeus.
Um clã... Uma
tribo... Uma cidade diferente das outras. Quer saber onde está? no meio do
coração de quem a busca.
Adoram as cores e fazem dos coloridos de suas
saias longas e soltas o movimento de suas vidas. Geram seus filhos e amamentam
como se fossem beija-flores, usando apenas o mel de seus próprios corpos e a
doçura de suas próprias almas. Numa miscigenação profunda e profícua fizeram
uma etnia.
Acreditam em
fadas e duendes, fazem feitiços, simpatias e benzimentos. Curam com as plantas, com a água
e com o espírito. Acreditam em tudo e em nada, mas para não se fazerem diferentes,
acreditam.
Amam os cavalos
como um símbolo. São fiéis aos dias do ano como a cada passo do vento e por
isso compõem poemas. Somos todos, ali ou longe de lá, filhos do vento.
Sobre a autora:
Ridamar Batista é escritora, presidente
da Academia de Letras do Brasil, Seccional Anápolis, GO – ALBA e
delegada-adjunta da Federação Brasileira dos Acadêmicos das Ciências, Letras e
Artes.
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