ALÉM DA IMAGINAÇÃO

Por Leandro Bertoldo Silva (Padre Paraíso, MG)

Sempre apreciei os circos mambembes, esses viajantes de uma cidade à outra com as suas lonas rasgadas, os carros adaptados com alto-falantes a percorrer as ruas e a chamar o povo para o espetáculo.

Aprecio o fato de comprar o ingresso naqueles papeizinhos cortados à tesoura e, ao entrar e se acomodar nas arquibancadas de tábuas com o cuidado de se equilibrar para não cair entre os vãos, perceber, surpreso, a contorcionista ao ser a mesma moça que acabara de vender o saquinho de pipoca na entrada.

Gosto de ver os trailers parados nas mediações da lona com roupas estendidas em varais improvisados nas janelas e, entre um e outro, a mãe bailarina a amamentar o filho recém-nascido antes de entrar no picadeiro.

Enquanto muitos veem as atrações eu também as vejo, mas preencho-me muito mais na poesia por de trás das cortinas, naquele pai que irá tirar a maquiagem, desvestir o fraque de apresentador e ir ao banco pagar as contas no dia seguinte; nos ajudantes de palco sendo eles os trapezistas e também os operários de manutenção dos equipamentos; no filho que irá lavar todas as roupas dos artistas, inclusive a sua de palhaço.

Ah, os palhaços… Meus preferidos! Como tiram risadas de dentro das almas mais amarguradas… Um dia eu conheci o Alegria — o palhaço da luz. Após a sessão, enquanto o público saía, o vi com a mesma vassoura usada na aparição de há pouco a iniciar a varredura do chão. Fui até ele e o parabenizei. Ele agradeceu com um sorriso um pouco diferente do meu. Não era assim um sorriso alegre e largo como na cena de outrora. Era, eu diria, até um tanto triste. Uma criança chegou perto com o pai e Alegria a pegou no colo, brincou com ela e a deixou feliz dando-lhe, inclusive, conselhos. Ao despedir da criança e do pai olhou para mim, fez um aceno com a cabeça, espirrou água da flor de sua lapela que mais pareceu um choro silencioso, e continuou a vassourar.

Fui embora, mas o meu pensamento ficou naquele palhaço, o mesmo visto no dia seguinte no sinal fechado no centro da cidade ao fazer malabarismo e chamar as pessoas para o circo. Enquanto ele fazia o seu trabalho, eu fiquei ali a imaginar…

Tinham-lhe tantas vezes pedido conselhos… Era o redentor de todos os sofrimentos que assolavam as almas em conflito, a ponto de impedir suicídios. Alegria – o palhaço da luz –, como era conhecido, escolheu as ruas como o seu picadeiro e nelas transformava pessoas. Agonia mudava-se em sonhos e medos em esperanças. Contudo, algo curioso acontecia: Alegria era triste… O homem por trás do palhaço não conseguia fazer consigo o mesmo que fazia com os outros, pois não tinha tido a sorte de encontrar alguém que o apresentasse a si…

 

QUE TE TENTA AOS SETENTA, VÔ?

Por Paulo Cezar S. Ventura (Nova Lima, MG) 

Chegar aos setenta já é uma vitória na vida, no Brasil. Chegar aos setenta e se sentir de bem com a vida é uma vitória de um tamanho quase imensurável. Porque a vida não é fácil para quem vem de baixo, da periferia, do lugar de luta cotidiana. Não é fácil para quem tem que domar um leão por dia, e o leão só cresce. Chegar aos setenta e ainda ter tentações, sonhos e comichões pelo corpo é uma grande alegria.

Quais são tuas tentações, meu querido setentão?

Enquanto a chama não se apagar, as tentações serão muitas, não apenas as dos infernos, mas as celestiais também. A escolha nos cabe, sempre. Cabe-me, então, a escolha entre muitas. A questão é: quais destas tentações serão realizáveis? Aquela história de escolher entre os seus sonhos, ou correr atrás dos sonhos funciona também para os setentões? Sei que as pernas já não correm tanto, a cabeça funciona bem, no entanto.

Minha lista de tentações, a seguir, não estrará em ordem de prioridades. As escrevo como me vêm à cabeça. Atenderei as tentações que me parecerem mais viáveis a cada momento de minha vida. Com direitos a mudanças, dependendo das circunstâncias que se apresentarem ao longo dos caminhos. O que vale é que, depois dos setenta, posso me dar o direito de escolha, considerando que minhas faculdades mentais estão em pleno funcionamento. O que me lembra que seguir as tentações exigirá de mim a manutenção da saúde em estabilidade, sempre, para cumprimento daquilo que cada uma delas coloque como necessidade.

Minha morena ainda é uma exuberante tentação em todos os aspectos da afetividade humana. Sua companhia é uma alegria constante e precisa ser conservada. Uma pessoa alegre em minha companhia precisa continuar a gostar de minha companhia. Este é um ponto de extrema importância. A solidão sempre ronda nossos futuros, a necessidade de espantá-la com gestos firmes é premente. Isso conduz a uma outra necessidade importante: o da sustentabilidade material da vida a dois. Vivemos momentos de dificuldades financeiras e nosso capital de giro tem como suporte nossas competências. Por isso precisamos trabalhar na produção de capital a partir delas.

Trabalhar a produção de capital é o ponto nevrálgico para todas as escolhas a serem feitas. Uma outra tentação são as viagens. Estar em lugares diferentes do mundo é muito interessante. Mas, o mundo é tão grande! Daí, a tal de sustentabilidade tão necessária. Já pensei até em estar sempre em movimento, vivendo em um grande automóvel-casa, ou mesmo pequeno, com a possibilidade de novos rumos e novos conhecimentos a cada dia.

Essas anteriores são as tentações mais caras: uma vida a dois bem empolgante e alegre, e estar em movimento. Ou melhor dizendo, uma vida a dois empolgante e itinerante. A terceira tentação diz respeito à música. Sou amante do rock’n roll, do jazz, do blues e das boas músicas brasileiras e do mundo. Impossível viver sem música. Minha companheira alegre, empolgante e afetuosa é também compositora, cantora e violonista. Mais uma qualidade dela e mais uma razão para querê-la comigo nesta caminhada. A música de qualidade, no entanto, precisa ser ouvida nos palcos dos bons teatros. Onde entra mais uma vez a questão da sustentabilidade financeira.

Algo mais que me tenta, muitíssimo, é o cinema: filmes, séries, documentários, etc. Estou sempre assistindo a alguma coisa. Hoje temos acesso a plataformas de cinema nas telas do computador, o que facilita muito as possibilidades de aderir a esta tentação. Ainda bem.

As demais tentações cotidianas são mais tranquilas de se cair nelas. Porque gosto de esportes, da prática dos esportes variados. Gosto de me manter em forma por questões de saúde, óbvio, e para ter fôlego para as escolhas das tentações. No quesito esporte, pratico caminhadas, pedaladas e ginásticas de solo. Estou em forma.

Deixei por último a tentação à qual me entrego sem pestanejar: o amor aos livros, às leituras e à escrita. Adoro escrever, isso me mantém vivo e apto a cair em todas as tentações que eu queira. Porque as tentações acabam sendo um ponto de fuga, ou de repouso, em relação aos livros. E escrever livros e publicá-los me ajuda na tal de sustentabilidade financeira e social. As atividades relacionadas aos livros nos mantem unidos, nos traz amigos para nosso convívio, nos atrai convites para estar aqui e ali falando de livros, claro. É nosso suporte a outras tentações.

Mas, caros amigos e netos, a maior tentação da vida, e mais importante delas, não sei enquadrá-la em nível de dificuldade ou facilidade, é a vontade eterna de continuar a ser criança. Não aquela criança birrenta e chata. A criança divertida, alegre, inteligente, impertinente, que olha o mundo com seu olhar de criança e o interroga. Minha tentação favorita é essa: olhar o mundo com os olhos de criança, tentar entendê-lo e colocar esse olhar dentro de um livro. Que tentação boa.

 

O corpo dança e se lança

Absorve o brilho da magia

Que se recria

E se transforma em criança:

Todo dia.

https://poesiasparabeber.blogspot.com/

 

 

 

PODE MELHORAR, VOVÔ!

Por Paulo Cezar S. Ventura (Nova Lima, MG)

Pode? Será? Sempre temos uma esperança de que as coisas serão melhores no ano no qual entramos. Basta entrar com o pé direito como se fôssemos tomar um ônibus? Tem algo no horizonte que nos informa que coisas boas acontecerão? A humanidade tem sede de esperança. Essa mania de apostar no futuro é complicada. Apostamos no amanhã, mas como vivemos o hoje? Que estamos a fazer nesse minuto mesmo?

Minha retrospectiva do ano passado, dois mil e vinte e dois, não é nem maravilhosa, nem horrorosa. Duas contaminações pelo coronavírus, uma pneumonia, uma mudança de endereço cheia de despesas, uma desavença de família pelos cuidados de minha mãe, nenhuma viagem de lazer. Por outro lado, recebi a visita de minha filha alemã, lancei um livro que ainda é uma promessa de sucesso, comecei a participar de um grupo de vendas que avança, conheci novas pessoas interessantes, escrevi bastante, reencontrei antigos colegas que ainda residem na mesma cidade para onde me mudei, aprendi muito, entre outras coisas menores.

O que esperar, então, do novo ano que se inicia? Dá para colocar muita fé quando a idade começa a pesar? Em fevereiro completo setenta anos. Sete décadas, cara! Sete! Tenho alguns pontos a meu favor. Cartas na manga. As rugas crescem lentamente, ainda. Os indicadores de saúde, aqueles resultados dos exames sopa de letrinhas, estão muito bem. Ainda aguento caminhadas longas, faço ginástica de solo, danço de vez em quando e sou sexualmente ativo. Não posso me debruçar em queixas. Logo, não as faço. Acredito que pensar em coisas boas abre espaço para que elas aconteçam. E elas acontecem.

Então, seguem pontos de minhas perspectivas para dois mil e vinte e três:

·         Apesar dos setenta anos, estarei muito bem, ocasionalmente em bons momentos de felicidade. Bom humor sempre, como de hábito.

·         Deverei lançar ao menos mais três livros, eles já estão quase prontos.

·         Minha vida amorosa continuará muito bem. Meus amigos continuarão presentes em minha vida.

·         Apesar de pessoa idosa, continuarei trabalhando com boa vontade, alegria e prazer. Tenho propostas de palestras em alguns lugares, meus livros venderão bem, minhas histórias serão contadas e ouvidas. E continuarei produzindo novas histórias.

·         Meus clientes para mentoria e curadoria de saberes e conhecimentos aumentarão no ano, pois minha experiência nas questões que abordo aumentaram.

·         Minhas artroses nas juntas do corpo não irão aumentar. Consegui um bom equilíbrio no trato delas com ginástica e alimentação adequada.

·         Minha família não me provocará sobressaltos em demasia.

·         Continuarei degustando bons vinhos com alguns amigos especiais. Aquele uísque premiado que comprei no Natal será apreciado com parcimônia.

·         Meus filhos distantes se aproximarão de mim, finalmente (ainda guardo umas pontas de dúvida quanto a isso, mas, espero).

·         Minha conta bancária terá saldos positivos o ano todo. Lidar com dinheiro exige cuidados especiais. Vou me aprimorando neles. Ainda sou jovem para aprender sobre educação financeira.

·         Meus empreendimentos serão bem sucedidos, mais que no ano anterior. Seguir em frente, sempre. Recuar só para tomar impulso.

·         Terei tempo para algumas viagens de lazer e ócio. Meu corpo e minha mente merecem.

·         Gostaria muito de ter um carro novo. Será que é pedir muito, Iansã? Prometo usá-lo com sabedoria, pois o combustível anda muito caro.

Se eu me lembrar de mais algum desejo, vontade, ou apenas uma coceira no cérebro, aumentarei minha lista. Não quero abusar muito dos deuses, eles têm sido extremamente bondosos comigo. Minha gratidão a eles pelos cuidados à minha pessoa. Agradecerei mais ainda, e farei algumas oferendas contritas se metade de meus desejos forem satisfeitos.

SER FELIZ AOS SETENTA

Por Paulo Cezar S. Ventura (Nova Lima, MG)

Como ser feliz, agora que estou ficando velho? Existe ainda, a esta altura da vida, a possibilidade de ser feliz? Aquela felicidade que não consegui quando jovem, chegaria agora, quando passei dos sessenta? Então deixa eu lhe responder diretamente, letra no olho. O que felicidade e idade têm em comum é que a palavra “felicidade” engloba, incorpora, contém a palavra “idade”. E só. Isso pode significar que a felicidade pode acontecer em qualquer idade.

Mas, o que é a felicidade? Sou adepto das definições operacionais porque elas nos ajudam a entender o conceito em si, objeto da definição, e nos fornecem meios de mensurar aquilo que se define. Psicólogos das Universidades de Oxford e de Harvard criaram questionários para medir, por vários métodos e instrumentos, o nível de felicidade das pessoas. Eles acreditam que, para medir a felicidade, é necessário avaliar fatores físicos e psicológicos, renda, idade, preferências religiosas, políticas, estado civil, etc. Existiria, então, um padrão humano de pessoa feliz? É preciso investigar, claro.

Pode-se dizer, entre várias outras afirmações possíveis, que a felicidade é um momento durável de satisfação, onde o indivíduo se sente plenamente realizado, um momento onde não haja nenhum tipo de sofrimento.

Há duas afirmações interessantes nesse conceito. A felicidade é um momento durável, não sendo infinito, momento este sem nenhum registro de sofrimento. Há como medir este momento onde há ausência de sofrimento? O Dalai Lama, líder espiritual do budismo, coloca a busca da felicidade como nosso projeto de vida essencial. Segundo ele,

“O propósito de nossa existência é buscar a felicidade” (Dalai Lama).

Vejam só: a felicidade está presente naqueles momentos de ausência de sofrimentos, e que buscá-los deve ser nosso propósito de vida, nossa busca incessante. E como nos livrarmos do sofrimento? Recorremos novamente às palavras do Dalai Lama:

“O primeiro passo para nos livrarmos do sofrimento é investigar uma de suas causas principais: a resistência à mudança” (Dalai Lama).

Segundo essa afirmação, o primeiro passo para se livrar do sofrimento é aceitar as mudanças. Porque elas sempre vêm. E se as mudanças trazem sofrimento, então a saída é aceitar o sofrimento. Aceitar que ele existe. O que não significa se entregar ao sofrimento. A aceitação não é um ato masoquista. É entender o que acontece, é viver o presente. Não é fácil, lógico. O sofrimento existe com várias caras diferentes: a não compreensão e aceitação do passado é uma delas; a colocação dos desejos em patamares muito altos é outra; a inveja, a ansiedade, a raiva, são ainda outras caras do sofrimento. E as dores físicas, claro, proveniente de doenças.

Para bem viver o presente e eliminação das dores não físicas o autoconhecimento é peça fundamental. E ele vai além do conhecimento de onde venho e para onde vou. Mais importante que os pontos de partida e de chegada está a trajetória, os caminhos por onde seguimos e pelo total entendimento dos nossos passos. E os caminhos por onde podemos seguir nos levam a um outro conceito anterior ao de felicidade, mais facilmente mensurável, que é o conceito de bem-estar.

O bem-estar é um construto e possui cinco elementos mensuráveis importantes:

1.           Ter e procurar ter emoções positivas é o primeiro elemento mensurável do bem-estar;

2.            Engajar-se nos projetos e atividades em curso faz com que não se veja o tempo passar, tão importante é o projeto;

3.       Procurar sempre por relacionamentos positivos, começa em eliminar relacionamentos tóxicos com pessoas que apenas retiram sua energia, ao mesmo tempo em que sinta empatia pelas pessoas;

4.          Colocar sentido, significado e propósito nas coisas nas quais se empenha e se engaja;

5.         Realizar, terminar aquilo que se começou e alegrar-se com o resultado e com o sucesso do empreendimento.

Resumindo, é possível ser feliz em qualquer idade, inclusive na maturidade. A felicidade aparece em momentos em que se consegue aceitar o sofrimento e eliminá-los por meio de mudanças significativas na vida, mudanças buscadas através de projetos com propósitos bem definidos. Mesmo a felicidade não sendo facilmente mensurável, pode-se chegar ao bem-estar com projetos onde se coloca pleno de emoções positivas, engajamento no processo, relacionamentos com pessoas agregadoras, projetos que têm sentido em sua vida e que você os realize até o ponto final.

Ou seja, não há um passo a passo, mas é possível fazer escolhas que nos conduzam a uma vida saudável, com pouco sofrimento e onde os desejos não sejam colocados em patamares inatingíveis. Para os budistas a felicidade está na supressão do desejo e no viver o presente como proposta. Não é fácil, mas é possível.

Felicidade: ficção do futuro escrita hoje. (Paulo Cezar S. Ventura)

RI MELHOR QUEM CONHECE OS CLÁSSICOS

Por Dias Campos (São Paulo, SP)

            Da sua escola, Pedro Garrido sempre foi o mais franzino e o que maiores notas tirava. Esses dois predicados eram suficientes para que os mais truculentos e ineptos dele fizessem gato e sapato. Por isso, quando o ensino médio terminou, parecia que retiravam um gigantesco bloco de granito dos ombros.

            Essa sensação de liberdade, aliando-se ao seu refúgio, o estudo disciplinado, fizeram decolar a autoestima e a autoconfiança do rapaz, o que o levou a conquistar o primeiro lugar no vestibular para Letras da mais afamada universidade do seu Estado.

Devido à minguada constituição física e à meritória classificação, o seu maior temor era ser o alvo predileto dos veteranos. E ele bem que tremeu quando quiseram que dançasse sozinho sobre uma mesa... Mas como havia lindas calouras ao redor, Pedro Garrido foi rapidamente substituído.

Acudido por esse milagre, o que lhe cabia fazer era agradecer aos céus e seguir adiante, procurando não se fazer notar até a data da abolição dos escravos, data em que os bichos ficariam livres do jugo dos capatazes.

Com efeito, o primeiranista passou despercebido até ser contemplado com a alforria. E uma vez liberto, pôde entregar-se com todas as suas forças ao seu sonho juvenil – debruçar-se sobre os livros e se tornar professor de Literatura.

Como amasse escrever, e escrevesse muito além dos de sua idade, Pedro Garrido logo foi descoberto pelo grêmio estudantil, que o encarregou de uma Coluna no seu periódico.

Graças à criatividade, à originalidade e ao bom cunho português, seus contos e crônicas conquistaram estudantes e professores; e a tal ponto, que nomes como Homero, Virgílio, Ovídio e Dante deixaram os claustros acadêmicos e se vulgarizaram até entre os alunos das outras Faculdades, o que fez com que a procura por esses ícones redobrasse os afazeres de mais de uma bibliotecária.

Como os textos de Pedro Garrido eram cada vez mais lidos, apreciados e repassados para além dos muros da universidade, um dos seus contos, o que elegera Machado de Assis como personagem principal, acabou chegando às mãos de Carlos Sampaio, seu colega de classe no colégio e o líder das cavalgaduras que com ele praticavam bullying.

E se é verdade que esse autêntico representante do obscurantismo desdenhou do que leu, também é exato afirmar que ficou mordido de inveja ao identificar o autor com a sua saudosa vítima.

Alheio a essa urticação, Pedro Garrido prosseguiu com determinação e brilhantismo, formando-se Summa cum laude para regozijo de sua família, dos demais alunos e de todo o corpo docente. – O seu TCC foi sobre a influência dos Clássicos em Os Lusíadas.

Como corolário aos seus méritos, mal se iniciavam as férias e ele já recebia uma atraente proposta para lecionar Literatura em uma universidade particular.

Ora, como o seu sonho se tornava realidade; como precisasse bancar a Pós-graduação; e como a paciência de sua noiva não se estenderia para além do Mestrado, Pedro Garrido não titubeou em aceitar o emprego.

Não se poderia descrever a emoção de que foi tomado quando assinou aquele contrato!

Mas como o júbilo não se bastaria à total recuperação das energias, Pedro Garrido e sua futura esposa decidiram viajar. E depois de muito pesquisarem, escolheram um lindo chalé, em uma acolhedora cidadezinha montanhesa.

A viagem foi tranquila. E como chegassem ao centrinho, que, apinhado de turistas e todo iluminado, convidava os amantes a curtirem o frio, os apaixonados concordaram que um bom tinto e um fondue de queijo seriam indispensáveis.

Depois de caminharem um pouco, agarradinhos, toparam com um local muito aconchegante. E decidiram entrar.

Por sorte, havia uma única mesa disponível. E o maître os conduziu com toda solicitude.

Pedro Garrido não poderia sentir-se mais afortunado!... As férias apenas começavam; ao retornar, aguardava-o um bom emprego; sua escrita já caminhava para o terceiro capítulo do romance de estreia; e estava prestes a desfrutar de muitos jantares românticos. Realmente, os bons ventos sopravam fortes nas velas do seu destino, e não havia quem divisasse nuvens acinzentadas no horizonte.

A borrasca, contudo, pode sobrevir de inopino e dos pontos mais improváveis do oceano. Pois não é que na mesa ao lado sentava-se um casal, cujo varão era ninguém menos que o troglodita que atazanara Pedro Garrido durante o ensino médio? E se este não o reconheceu, visto que aquele lhe dava as costas, não se pode dizer o mesmo de Carlos Sampaio, tão logo girou a cabeça buscando o garçom.

Súbito, lembranças deliciosas ressurgiram, e uma vontade louca de retomar as velhas práticas tomou conta do antigo desafeto.

Entretanto, a adolescência ficara para trás. E como eram homens feitos, estavam acompanhados e em lugar público, aquele desejo teve que ser contido.

Só que à medida que o tempo passava, a vileza de Carlos Sampaio só fazia aumentar, o que já incomodava até a sua parceira, que percebia não ser mais o centro das atenções.

Indagado sobre o que acontecia, o ex-perseguidor resolveu contar tudo o que impusera ao seu vizinho. Mas ao contrário do que esperava, risadas compartilhadas, o que ouviu foram desaprovações, o que o deixou bastante contrariado.

As terrinas de sopa de cebola chegaram. E enquanto comentavam o quão deliciosas estavam (receita tradicional francesa), a mente de Carlos Sampaio dividia-se entre as respostas à namorada e as lembranças das torturas impostas a Pedro Garrido – e se continha para não gargalhar.

De repente, Carlos Sampaio não se aguentou e, “sem querer”, deixou a colher escapar da mão. Ao se abaixar para pegá-la, virou o rosto para a mesa do lado e, fingindo surpresa, interpretou o reencontro entre velhos colegas.

Pedro Garrido não se demorou a recordar do malfeitor. E um profundo mal-estar tomou conta do seu coração. Sequer teve tempo para pensar em como reagir, pois o ator levantou-se e foi abraçá-lo. Em seguida, todos se cumprimentaram – A namorada do brutamonte já lhe sentia a má-fé; e se portava com a polidez possível.

Ao contrário do farsante, que, efusivo, relembrava o convívio, gesticulava e ria com prazer, Pedro Garrido sorria forçado, respondia com monossílabos e mal o encarava.

E para que a comédia fosse ainda mais verossímil, Carlos Sampaio não se esqueceu de mencionar que seu irmão caçula cursava engenharia na mesma universidade em que Pedro Garrido se formou, e que, por força dessa coincidência e pelo prestígio alcançado pelo novo escritor, chegara às suas mãos um exemplar daquele conto protagonizado pelo Bruxo do Cosme Velho. E finalizava parabenizando-o muito, pois nunca lera texto tão criativo, original e aprisionador.

Esse elogio, digno de ser encenado nas mais célebres ribaltas, tirava o prumo de Pedro Garrido. Afinal, se Carlos Sampaio sempre foi o seu algoz, como se deparava, agora, com tanta mudança de caráter?

É fato, porém, que Pedro Garrido aprendera que as pessoas podem, sim, melhorar-se com os anos. Seria esse o primeiro caso concreto a experimentá-lo?

Também é correto afirmar que, na Faculdade, ele nunca desprezou um punhado de confetes. Aliás, a cada vez que lhe aplaudiam os textos, mais envaidecido, estimulado e confiante ficava.

Por força dessas matrizes, Pedro Garrido baixava a guarda, e cedia à apetitosa isca.

Mesmo que o peixe já tivesse sido fisgado, é de boa técnica, muitas vezes, que se deixe correr a linha... Foi quando Carlos Sampaio sugeriu juntarem as mesas.

A namorada do pseudo-admirador, no entanto, porque percebesse o seu ardil, bem que tentou desestimular a união, objetando que os pombinhos gostariam de continuar a sós – o outro semblante feminino aquiescia.

Mas diante da insistência do enganador, que fazia questão de colocar as conversas em dia, e da postura ambígua de Pedro Garrido, um balaio em que se chocavam a privacidade possível e ego passível de incenso, as mulheres não tiveram alternativas; em particular porque Carlos Sampaio, tomando a iniciativa, puxou sua mesa e a colou à outra.

Como os recém-chegados não tinham feito os pedidos, o falso amigo não se fez de rogado e recomendou a sopa de cebola. E porque ele e seu par afirmassem que estavam divinas, os noivos abriram mão do fondue e pediram mais duas terrinas.

 Para que o clima ficasse bastante descontraído, Carlos Sampaio, mesmo sem saber se bebiam álcool, tratou de pegar a sua garrafa e encheu de tinto as taças vazias. E como recebesse sorrisos em troca, deram-se ao brinde inicial.

A conversação, de início tímida, foi ganhando ritmo.

Tão logo chegaram as iguarias, Pedro Garrido fez questão de pedir mais uma garrafa do mesmo vinho. E as taças foram erguidas pela segunda vez.

O ambiente se tornava cada vez mais amistoso; e a tal ponto, que a acompanhante de Carlos Sampaio deixava da sua prevenção e se revelava uma ótima piadista.

E como quisesse que seu peixe pensasse que poderia continuar nadando livremente, o ardiloso pescador perguntava se ele já tinha publicado algum romance, pois se fosse tão bom quanto o conto que lera, compraria um exemplar assim que retornasse à capital.

Pedro Garrido sentiu-se lisonjeado. Aduziu, no entanto, que apesar de todos os feedbacks positivos que recebera até o momento – já ganhara vários prêmios literários –, não daria para afirmar, cem por cento, que seu romance seria um sucesso meteórico; mesmo que adorasse o que escrevia.

E se o ouvinte interpretava extremo interesse, de igual forma o convencia de que, mesmo inacabado, seu livro já o deixava com água na boca.

Dessa forma, o iludido assegurou que o avisaria quando o concluísse; e os namorados prometeram não faltar à noite de autógrafos.

Pedro Garrido perguntou ao “novo admirador” o que fazia da vida.

Carlos Sampaio respondeu que era sócio majoritário de uma grande lotérica no centro da cidade, batizada de Buraco da sorte. E, abusando da indelicadeza, afirmou que, ao contrário da dúvida que paira sobre o escritor iniciante, sua remuneração era certa, e seus lucros, inevitáveis. Afinal, fizesse sol ou chuva, ele ganharia com os bilhetes e as apostas, com as comissões que incidem sobre a venda de outros produtos e pelo recebimento de contas de telefone, gás, luz, etc. – Dita a localização, e Pedro Garrido se lembrou de que, vez por outra, passava por lá e fazia uma fezinha.

Como percebesse que essa cutucada bambeava levemente o humor do seu peixinho, Carlos Sampaio decidia-se por começar a recolher a linha. Foi quando passou a relembrar do bullying que praticara contra ele.

E a cada cena descrita – por sinal, com requintes de detalhes –, mais risadas dava e mais se comportava como se estivesse agradando.

Sua namorada, porém, despertou para a realidade no mesmo instante em que lhe ouviu a primeira recordação. E ficou sem saber o que fazer, tamanha a vergonha que a possuía.

A alma gêmea de Pedro Garrido – para quem nunca contara sobre o bullying –, e que no início até sorria, pois pareciam lembranças engraçadas revividas por velhos amigos, tocava-se de que tudo tinha sido verdade, quando, ao se virar, notou a profunda mudança na fisionomia.

Pedro Garrido empalideceu. Os lábios estavam cerrados; os olhos, fixos no covarde, já se umedeciam; e sua mão direita tremia sobre a mesa, depois que lhe caiu a colher.

Constatado o estrago, Carlos Sampaio não se furtou em dar mais uma paulada. E o fez afirmando que era tão certo continuar a ganhar dinheiro ao final de cada mês quanto era inevitável levar à sua boca mais uma colherada de sopa de cebola – e caprichou na gesticulação.

É desnecessário mencionar que não havia mais clima para continuarem o jantar.

Pedro Garrido e sua noiva levantaram-se em silêncio. E antes de irem em direção ao caixa, deixou claro que pagaria metade da conta. E se foram.

Carlos Sampaio ainda teve ânimo para pedir sobremesa. Mas não conseguiria apreciá-la como pretendia, pois teria que aguentar bem mais de uma reprimenda.

E se a lua cheia prosseguiria em sua vereda celeste convidando os jovens ao amor, naquela noite, pelo menos, dois dos muitos casais não lhe responderiam ao chamamento.

Pedro Garrido e sua paixão decidiram antecipar a volta para casa. Não valia a pena correrem o risco de reencontrarem Carlos Sampaio.

            Não obstante essa decisão, as férias ainda estavam no início. E sempre haveria um quarto à disposição deles na casa de praia do sogrão.

E para que não tivessem que passar horas explicando o retorno antecipado, resolveram pôr a culpa em um surto de carrapatos que tomara conta da cidade. E que ninguém se preocupasse, pois o dinheiro seria devolvido sem tardança.

            Por fim, como não queriam reavivar os dissabores por que passaram, prometeram não mais tocar nos assuntos bullying e Carlos Sampaio.

            Seguiram-se as semanas de descanso e os prazerosos bate-papos à beira-mar; sendo que as caipirinhas e as porções de camarões fritos degustados sob os guarda-sóis foram essenciais à recuperação física e mental dos noivos.

            Terminadas as férias, e de volta ao seu apartamento, Pedro Garrido lembrou-se de que deixara algumas pendências para serem resolvidas. Além da dispensa que estava às moscas, teria que trocar duas lâmpadas queimadas, consertar uma torneira que pingava e comprar veneno para acabar com as formiguinhas que adoravam passear sobre a pia da cozinha. Sendo assim, dirigiu-se, à tarde, ao centro da cidade, onde já era freguês de uma loja especializada.

            Mas se não se esquecera dessa loja, certo estabelecimento tinha-se apagado de sua memória...

E quando dele se aproximou, notou o desapontamento e as reclamações de algumas pessoas, que quiseram apostar e pagar as suas contas, mas deram com as portas de aço desenroladas.

Concatenando as ideias, Pedro Garrido recordou a conversa que tivera com Carlos Sampaio naquela fatídica noite... Tratava-se da Buraco da sorte.

E um frio antártico subiu-lhe pela espinha!...

            Essa gelidez, entretanto, logo passou, pois a ordem judicial, afixada no mesmo dia e pela manhã na porta da casa lotérica, demonstrava que as chances de revê-lo naquele dia seriam mínimas – era provável que estivesse implorando ajuda ao seu advogado.

Neste exato momento, as palavras ditas e encenadas por Carlos Sampaio naquele restaurante nas montanhas, equiparando a certeza de se ganhar dinheiro com a de se levar à boca uma colherada de sopa, e que, malgrado o seu esforço por esquecê-las, ainda lhe surgiam como vultos agourentos, perdiam para sempre o seu poder de humilhar.

Por força desse insight, uma ideia lhe vinha à mente. E ele puxou de uma caneta...

Em seguida, resolveu adiar as compras, e retornou às pressas para a sua residência.

Já defronte à tela do computador, começou a escrever um conto.

Sem dar nomes aos bois, Pedro Garrido iria recontar os acontecimentos por que passou, desde o bullying que sofreu quando jovem até o reencontro com o maior dos seus fantasmas. Por fim, e com o auxílio dos Clássicos, Carlos Sampaio receberia uma lição que por certo jamais esqueceria.

No dia seguinte, Pedro Garrido contatou o responsável pelo jornal do grêmio estudantil da sua Faculdade e perguntou se ainda teriam interesse em publicar mais um dos seus contos. A aceitação foi imediata. E ele o enviou por e-mail.

Passados poucos dias, não apenas o autor receberia o seu exemplar, mas, também, o caçula da família Sampaio, que ainda não se formara e que não deixara de admirá-lo.

E como previra Pedro Garrido, após ouvir do irmão sobre a incrível semelhança entre a ficção e o que acontecera à sua lotérica, Carlos Sampaio, muitíssimo desconfiado, agarrou o jornalzinho e foi àquele texto.

Depois de alguma leitura, o arrogante não tinha dúvidas sobre quem eram, de fato, os personagens principais. E até bateu palmas para Pedro Garrido pela coragem de se expor daquela maneira.

Mas se Carlos Sampaio se deliciava a cada período, seu bom humor mudaria assim que passasse a ler o final da história.

Pedro Garrido imaginou que o protagonista recebia um telefonema do seu funcionário avisando que a lotérica tinha sido fechada por ordem do juiz.

Ato contínuo, o vilão quase teve um enfarte, pois via secar a sua mina de ouro. – Por coincidência, foi isso mesmo que aconteceu a Carlos Sampaio.

Mas como não tinha chegado a sua hora, ele conseguiu recuperar as forças, e o raciocínio, e pediu mais detalhes ao empregado.

O pobre moço, então, achou melhor fotografar a ordem de lacração e enviá-la pelo celular.

Recebida a foto via WhatsApp, o patrão precisou ampliá-la, pois não queria perder nenhuma informação.

E depois de se inteirar sobre o conteúdo da decisão, notou, logo abaixo, em letra cursiva e à caneta azul, a frase Tra la spica e la man qual muro he messo.

Ele só não deu de ombros porque a fonte colocada entre parênteses chamava muito a atenção – Os Lusíadas, Canto Nono, Estância 78.

Não que essas inserções fossem mais importantes do que a desgraça que o abatia. Mas como só saberia o que fazer depois de consultar com o seu advogado, e porque a curiosidade era a sua marca registrada, a vítima da interdição estatal não se conteve e foi ao Google pesquisar.

O fato de ser um verso escrito por Petrarca e transcrito por Camões em nada mudaria a vida do desafortunado. Mas a sua tradução, esta, sim, faria com que Carlos Sampaio se arrependesse para sempre do gesto que um dia praticou – Da mão à boca se perde muitas vezes a sopa.

 

 

O FIM PODE SER LIVRAMENTO

Por  Liécifran Borges Martins (Cariacica, ES)


Nem tudo que acaba deve ser derrota.

As vezes é preciso encerrar ciclos.

Há ciclos curtos que mal começam,

e logo terminam.

 

Muitas vezes isso dói a alma.

Exatamente por não entender.

A vida é assim, pessoas vêm e vão.

Outras morrem outras nascem.

 

Um relacionamento não deu certo.

Foi livramento para você.

O casamento acabou, talvez

aquela pessoa não era para ser sua.

 

O fim não é uma derrota.

Nem mesmo uma tragédia.

O fim pode ser o começo,

de uma nova história.

 

É preciso do fim,

para se ter um começo.

É necessário o fim para evoluir.


E-BOY E SEUS MISTÉRIOS, CAPÍTULO 1: O PRIMEIRO DIA

 Por Renan Fillipi da Costa (Itajaí, SC)

 

Então Light se muda para uma escola nova, e agora parado na calçada o nosso herói, olha para a escola e absorve, ou pelo menos tenta absorver, a arquitetura moderna do prédio com suas vidraças azuis espelhadas e linhas retas e curvas aqui e ali: — Mais uma dia miserável na vida de Light! — Murmurou no nosso herói bem baixo, que quase ele mesmo não se ouviu. O que ele queria dizer na verdade era: — Um prédio moderno, com velhas fórmulas prontas e acabadas.

 Light passa pela entrada dos alunos, um guarda bem alinhado, com as mãos manda ele parar e descer da bicicleta e caminhar. O homem da lei aponta para o bicicletário e o que incomodou o estudante foi que o homem sequer abriu a boca. E ele pensou na vida antiga que tinha, um adestrador de cachorros que usava a o passeio público para adestrar os animais de estimação. Ele só usava gestos, Light pensou na palavra animal e pior animais, somos animais recebendo adestramento de um pessoa uniformizada.

O jovem estudante fez o rolê pela nova escola e logo percebeu as diversas tribos e ajuntamentos humanos, mas deixamos este corte para depois. Basta saber que por hora que Light perguntou para uma tiazinha que parecia ser uma zeladora da escola. O rapaz queria saber onde ficavam os banheiros da escola. A mulher parecia não entender o que ele dizia, e Light deu uma olhada mais profunda, uma estrangeira deduziu o óbvio. Então ele perguntou pelo toilette, a mulher apontou para o fundo do corredor. O estudante caminhou para o toilette lentamente, tentando ignorar os cartazes nas paredes, professores com cara de sono, gritos histéricos de crianças que inundavam e corriam pelos corredores, os altos funcionários que andavam em bando.

Light alcança e adentra o banheiro, e ele pensou, pronto agora é ficar seguro ali até o sinal soar. O  povo se aglomera no pátio e se enfileira, depois vem saudação a bandeira e o hino da pátria amada é entoado, os informes da direção da escola e depois tem a marcha em ordem unida, para as salas de aulas. Como aluno novato que é, bastaria seguir o fluxo e encontrar a sala de aula. Já era, assim se deu, e um alívio tomou conta de Light.

   Ao encontrar e adentrar na sala de aula é se seguir o fluxo e mandar direto para o fundão e ali ficar e passar despercebido. Só que o nosso herói juvenil não contava em se apaixonar, à primeira vista, por uma e-girl. Ela, linda e plena, ocupando uma cadeira no fundão da sala. A paixão à primeira vista pareceu pelos corredores e intervalos das aulas, mais uma história para a gente desenrolar depois.

E Light segue o fluxo e logo ele convive, com professores, os outros alunos, fez bons amigos, inimizades. E às vezes ele se dá mal nas provas por conta que tem que cuidar da irmã rubi de doze anos enquanto os pais saem para trabalhar durante a noite e ele ainda trabalha. Não é fácil a vida do nosso herói juvenil.

MINHA QUERIDA AGNES (AGNUS DEI)

Por Clarisse Cristal (Balneário Camboriú. SC)

 

‘’Nem todos os cavalos da rainha

Nem todos os homens do rei

Podem nos reunir de novo’’

 

            Valentina caminhava lentamente na semi-escuridão, carregava a pequena Agnes no colo com terno carinho. Àquela hora a velha babá de profissão sentiu toda a dor, que por décadas sentia calada, de forma absoluta, dentro do seu frágil ser. Sentiu, também, toda a enormidade do peso da idade, a lhe cair nas costas, que chegou sem aviso afinal de contas, como uma torrente. Agnes nunca fora pesada de carregar, aliás nenhuma das crianças fora, pelo menos das que ela cuidava, carregar a inocência delas era como carregar plumas. Cuidar de crianças bem pequenas foi a forma que Valentina encontrou, para aliviar as muitas pesadas culpas que ela carregava dentro de si. Valentina caminhava como se estivesse a caminho de um batalhão de fuzilamento, naquela hora extrema, pois ela sentia no íntimo a escuridão chegando.

            — Tina, aquele homem bonzinho de roupa engraçada, vai mesmo me trazer muitos presentes pra mim? Como ele prometeu!

            — Isso é com a tua mãe, meu anjo bom, só ela pode te responder!

            — Tina tu vai ler aquele livro pra mim, mais uma vez? Tu vai Tina? Tu vai?

            — Qual livro meu anjo? — Fez a pergunta já sabendo qual era a resposta.

            — Os filhos do sol, livro supimpa Tina!!!

            — Muito adulto menina minha, a tua mãe não gosta que eu leia para a senhorita, que a senhorita escute tais desatinos literários.                                                                                                             

              Valentina chega por fim ao quarto dormir da menina Agnes, as portas automáticas se abriram automaticamente. A velha senhora, de cabelos grisalhos, mesmo na semi-escuridão que se deslumbrou com o que viu, toda a magnificência do aposento da menina pequena, como se fosse a primeira vez que adentrava naquele sítio. Naquela noite fria de outono, o quarto enorme da pequena Agnes tinha o olor de rosas frescas colhidas no arrebol. Valentina esperava que as luzes acendessem automaticamente, assim que ela colocasse os pés no quarto de dormir da menina. Não acenderam, somente as luzes de segurança se fizeram presente. Valentina levou a criança até a cama, colocou a Agnes letárgica na cama e cobriu, ela ergueu a cabeça e sorriu para Valentina antes de cair completamente no sono.

             Valentina foi até a pequena biblioteca da menina e pegou o livro Os Filhos do Sol, de capa dura, de couro cru, desgastada pela ação prolongada do tempo, com páginas brancas e incrivelmente novas. Sem editora, sem nome do autor, nacionalidade e escrito em português europeu que mistura arcaísmos com modernismos. Um livro antigo, que Valentina nem sabia como foi parar na biblioteca da menina Agnes, pois era a própria babá da menina que era encarregada das compras dos livros para Agnes. Os títulos dos livros geralmente passavam pelo crivo da mãe da menina. Valentina perguntou para a mãe de Agnes sobre o livro, e ela respondeu de forma vaga: — São desígnios dos deuses e das deusas, minha querida Valentina! Se quiseres ler, para a pequena, leia ora essa. E não me aborreça mais com essas miudezas! — Valentina coloca o livro de volta na estante, dá uns poucos passos e vai até a janela, ela viu as luzes vermelhas lá embaixo e muita movimentação de ambulâncias e viaturas das forças de segurança, policiais civis e militares andando de um lugar para outro. Populares e jornalistas, ao redor da cena sendo contidos pelas forças de segurança.

             — Deus é sempre assim, quando ela volta para casa e resolve dar essas festas dos infernos! Deus será?

             — Falando sozinha Valentina?

            A velha senhora fecha os olhos e sorri, a quanto tempo não ouvia aquela voz doce, limpa e cheia de mistérios?

            — O livro é presente, afinal de contas? Claro que é, de quem mais poderia ser?

             Valentina continuava a olhar para baixo, não tinha coragem de encará-la. Mas tinha o cheiro forte de rosas frescas, o livro e o quarto à meia luz. Valentina viu ali um cenário bem montado esperando o momento certo para agir.

             — Quase isso meu anjo!

            — Kriseide eu não tive culpa alguma do que aconteceu naquele dia!

            — Sabe qual é problema de vocês? São incapazes de viver, com as suas próprias fraquezas e angústias! Ou seja, são incapazes de viverem consigo mesmos e com os seus erros! Os mais simples que sejam!

            Valentina fechou os olhos, mil vozes gritavam na mente da velha senhora, ela sentiu uma chuva de vidro dilacerar seu corpo por inteiro, brutal e rápida seu corpo ardia em chamas para depois ser projetado para trás. Ela deitada no chão, respirando sofregamente sentiu várias micros agulhas lhe triturar a carne a indo parar nos ossos. Para depois acordar sentada na poltrona de leitura, sem um arranhão sequer com o livros dos filhos do sol. Valentina estava com o livro nas mãos, ela olhou para a menina no berço. E logo imaginou que era somente o começo de um pesadelo sem fim não só para ela.