Revista literária virtual de divulgação de escritores, poetas e amantes das letras e artes. Editor: Paccelli José Maracci Zahler Todas as opiniões aqui expressas são de responsabilidade dos autores. Aceitam-se colaborações. Contato: cerrado.cultural@gmail.com
quarta-feira, 1 de março de 2023
ALÉM DA IMAGINAÇÃO
Por Leandro Bertoldo Silva (Padre Paraíso, MG)
Sempre
apreciei os circos mambembes, esses viajantes de uma cidade à outra com as suas
lonas rasgadas, os carros adaptados com alto-falantes a percorrer as ruas e a
chamar o povo para o espetáculo.
Aprecio
o fato de comprar o ingresso naqueles papeizinhos cortados à tesoura e, ao
entrar e se acomodar nas arquibancadas de tábuas com o cuidado de se equilibrar
para não cair entre os vãos, perceber, surpreso, a contorcionista ao ser a
mesma moça que acabara de vender o saquinho de pipoca na entrada.
Gosto
de ver os trailers parados nas mediações da lona com roupas estendidas em
varais improvisados nas janelas e, entre um e outro, a mãe bailarina a
amamentar o filho recém-nascido antes de entrar no picadeiro.
Enquanto
muitos veem as atrações eu também as vejo, mas preencho-me muito mais na poesia
por de trás das cortinas, naquele pai que irá tirar a maquiagem, desvestir o
fraque de apresentador e ir ao banco pagar as contas no dia seguinte; nos
ajudantes de palco sendo eles os trapezistas e também os operários de
manutenção dos equipamentos; no filho que irá lavar todas as roupas dos
artistas, inclusive a sua de palhaço.
Ah,
os palhaços… Meus preferidos! Como tiram risadas de dentro das almas mais
amarguradas… Um dia eu conheci o Alegria — o palhaço da luz. Após a sessão,
enquanto o público saía, o vi com a mesma vassoura usada na aparição de há
pouco a iniciar a varredura do chão. Fui até ele e o parabenizei. Ele agradeceu
com um sorriso um pouco diferente do meu. Não era assim um sorriso alegre e
largo como na cena de outrora. Era, eu diria, até um tanto triste. Uma criança
chegou perto com o pai e Alegria a pegou no colo, brincou com ela e a deixou
feliz dando-lhe, inclusive, conselhos. Ao despedir da criança e do pai olhou
para mim, fez um aceno com a cabeça, espirrou água da flor de sua lapela que
mais pareceu um choro silencioso, e continuou a vassourar.
Fui
embora, mas o meu pensamento ficou naquele palhaço, o mesmo visto no dia
seguinte no sinal fechado no centro da cidade ao fazer malabarismo e chamar as
pessoas para o circo. Enquanto ele fazia o seu trabalho, eu fiquei ali a
imaginar…
Tinham-lhe
tantas vezes pedido conselhos… Era o redentor de todos os sofrimentos que
assolavam as almas em conflito, a ponto de impedir suicídios. Alegria – o
palhaço da luz –, como era conhecido, escolheu as ruas como o seu picadeiro e
nelas transformava pessoas. Agonia mudava-se em sonhos e medos em esperanças.
Contudo, algo curioso acontecia: Alegria era triste… O homem por trás do
palhaço não conseguia fazer consigo o mesmo que fazia com os outros, pois não
tinha tido a sorte de encontrar alguém que o apresentasse a si…
QUE TE TENTA AOS SETENTA, VÔ?
Por Paulo Cezar S. Ventura (Nova Lima, MG)
Chegar aos setenta já é uma vitória na vida, no Brasil.
Chegar aos setenta e se sentir de bem com a vida é uma vitória de um tamanho
quase imensurável. Porque a vida não é fácil para quem vem de baixo, da
periferia, do lugar de luta cotidiana. Não é fácil para quem tem que domar um
leão por dia, e o leão só cresce. Chegar aos setenta e ainda ter tentações,
sonhos e comichões pelo corpo é uma grande alegria.
Quais
são tuas tentações, meu querido setentão?
Enquanto a chama não se apagar, as tentações serão muitas,
não apenas as dos infernos, mas as celestiais também. A escolha nos cabe,
sempre. Cabe-me, então, a escolha entre muitas. A questão é: quais destas
tentações serão realizáveis? Aquela história de escolher entre os seus sonhos,
ou correr atrás dos sonhos funciona também para os setentões? Sei que as pernas
já não correm tanto, a cabeça funciona bem, no entanto.
Minha lista de tentações, a seguir, não estrará em ordem de
prioridades. As escrevo como me vêm à cabeça. Atenderei as tentações que me
parecerem mais viáveis a cada momento de minha vida. Com direitos a mudanças,
dependendo das circunstâncias que se apresentarem ao longo dos caminhos. O que
vale é que, depois dos setenta, posso me dar o direito de escolha, considerando
que minhas faculdades mentais estão em pleno funcionamento. O que me lembra que
seguir as tentações exigirá de mim a manutenção da saúde em estabilidade,
sempre, para cumprimento daquilo que cada uma delas coloque como necessidade.
Minha morena ainda é uma exuberante tentação em todos os
aspectos da afetividade humana. Sua companhia é uma alegria constante e precisa
ser conservada. Uma pessoa alegre em minha companhia precisa continuar a gostar
de minha companhia. Este é um ponto de extrema importância. A solidão sempre
ronda nossos futuros, a necessidade de espantá-la com gestos firmes é premente.
Isso conduz a uma outra necessidade importante: o da sustentabilidade material
da vida a dois. Vivemos momentos de dificuldades financeiras e nosso capital de
giro tem como suporte nossas competências. Por isso precisamos trabalhar na
produção de capital a partir delas.
Trabalhar a produção de capital é o ponto nevrálgico para
todas as escolhas a serem feitas. Uma outra tentação são as viagens. Estar em
lugares diferentes do mundo é muito interessante. Mas, o mundo é tão grande!
Daí, a tal de sustentabilidade tão necessária. Já pensei até em estar sempre em
movimento, vivendo em um grande automóvel-casa, ou mesmo pequeno, com a
possibilidade de novos rumos e novos conhecimentos a cada dia.
Essas anteriores são as tentações mais caras: uma vida a
dois bem empolgante e alegre, e estar em movimento. Ou melhor dizendo, uma vida
a dois empolgante e itinerante. A terceira tentação diz respeito à música. Sou
amante do rock’n roll, do jazz, do blues e das boas músicas brasileiras e do
mundo. Impossível viver sem música. Minha companheira alegre, empolgante e
afetuosa é também compositora, cantora e violonista. Mais uma qualidade dela e
mais uma razão para querê-la comigo nesta caminhada. A música de qualidade, no
entanto, precisa ser ouvida nos palcos dos bons teatros. Onde entra mais uma
vez a questão da sustentabilidade financeira.
Algo mais que me tenta, muitíssimo, é o cinema: filmes,
séries, documentários, etc. Estou sempre assistindo a alguma coisa. Hoje temos
acesso a plataformas de cinema nas telas do computador, o que facilita muito as
possibilidades de aderir a esta tentação. Ainda bem.
As demais tentações cotidianas são mais tranquilas de se
cair nelas. Porque gosto de esportes, da prática dos esportes variados. Gosto
de me manter em forma por questões de saúde, óbvio, e para ter fôlego para as
escolhas das tentações. No quesito esporte, pratico caminhadas, pedaladas e
ginásticas de solo. Estou em forma.
Deixei por último a tentação à qual me entrego sem
pestanejar: o amor aos livros, às leituras e à escrita. Adoro escrever, isso me
mantém vivo e apto a cair em todas as tentações que eu queira. Porque as
tentações acabam sendo um ponto de fuga, ou de repouso, em relação aos livros.
E escrever livros e publicá-los me ajuda na tal de sustentabilidade financeira
e social. As atividades relacionadas aos livros nos mantem unidos, nos traz
amigos para nosso convívio, nos atrai convites para estar aqui e ali falando de
livros, claro. É nosso suporte a outras tentações.
Mas, caros amigos e netos, a maior tentação da vida, e mais
importante delas, não sei enquadrá-la em nível de dificuldade ou facilidade, é
a vontade eterna de continuar a ser criança. Não aquela criança birrenta e
chata. A criança divertida, alegre, inteligente, impertinente, que olha o mundo
com seu olhar de criança e o interroga. Minha tentação favorita é essa: olhar o
mundo com os olhos de criança, tentar entendê-lo e colocar esse olhar dentro de
um livro. Que tentação boa.
O corpo dança e se lança
Absorve o brilho da magia
Que se recria
E se transforma em criança:
Todo dia.
PODE MELHORAR, VOVÔ!
Por Paulo Cezar S. Ventura (Nova Lima, MG)
Pode? Será? Sempre temos uma esperança de que as coisas
serão melhores no ano no qual entramos. Basta entrar com o pé direito como se
fôssemos tomar um ônibus? Tem algo no horizonte que nos informa que coisas boas
acontecerão? A humanidade tem sede de esperança. Essa mania de apostar no
futuro é complicada. Apostamos no amanhã, mas como vivemos o hoje? Que estamos
a fazer nesse minuto mesmo?
Minha retrospectiva do ano passado, dois mil e vinte e dois,
não é nem maravilhosa, nem horrorosa. Duas contaminações pelo coronavírus, uma
pneumonia, uma mudança de endereço cheia de despesas, uma desavença de família
pelos cuidados de minha mãe, nenhuma viagem de lazer. Por outro lado, recebi a
visita de minha filha alemã, lancei um livro que ainda é uma promessa de sucesso,
comecei a participar de um grupo de vendas que avança, conheci novas pessoas
interessantes, escrevi bastante, reencontrei antigos colegas que ainda residem
na mesma cidade para onde me mudei, aprendi muito, entre outras coisas menores.
O que esperar, então, do novo ano que se inicia? Dá para
colocar muita fé quando a idade começa a pesar? Em fevereiro completo setenta
anos. Sete décadas, cara! Sete! Tenho alguns pontos a meu favor. Cartas na
manga. As rugas crescem lentamente, ainda. Os indicadores de saúde, aqueles
resultados dos exames sopa de letrinhas, estão muito bem. Ainda aguento
caminhadas longas, faço ginástica de solo, danço de vez em quando e sou
sexualmente ativo. Não posso me debruçar em queixas. Logo, não as faço.
Acredito que pensar em coisas boas abre espaço para que elas aconteçam. E elas
acontecem.
Então, seguem pontos de minhas perspectivas para dois mil e
vinte e três:
·
Apesar dos setenta anos, estarei muito bem,
ocasionalmente em bons momentos de felicidade. Bom humor sempre, como de
hábito.
·
Deverei lançar ao menos mais três livros, eles
já estão quase prontos.
·
Minha vida amorosa continuará muito bem. Meus
amigos continuarão presentes em minha vida.
·
Apesar de pessoa idosa, continuarei trabalhando
com boa vontade, alegria e prazer. Tenho propostas de palestras em alguns
lugares, meus livros venderão bem, minhas histórias serão contadas e ouvidas. E
continuarei produzindo novas histórias.
·
Meus clientes para mentoria e curadoria de
saberes e conhecimentos aumentarão no ano, pois minha experiência nas questões
que abordo aumentaram.
·
Minhas artroses nas juntas do corpo não irão
aumentar. Consegui um bom equilíbrio no trato delas com ginástica e alimentação
adequada.
·
Minha família não me provocará sobressaltos em
demasia.
·
Continuarei degustando bons vinhos com alguns
amigos especiais. Aquele uísque premiado que comprei no Natal será apreciado
com parcimônia.
·
Meus filhos distantes se aproximarão de mim,
finalmente (ainda guardo umas pontas de dúvida quanto a isso, mas, espero).
·
Minha conta bancária terá saldos positivos o ano
todo. Lidar com dinheiro exige cuidados especiais. Vou me aprimorando neles.
Ainda sou jovem para aprender sobre educação financeira.
·
Meus empreendimentos serão bem sucedidos, mais
que no ano anterior. Seguir em frente, sempre. Recuar só para tomar impulso.
·
Terei tempo para algumas viagens de lazer e
ócio. Meu corpo e minha mente merecem.
·
Gostaria muito de ter um carro novo. Será que é
pedir muito, Iansã? Prometo usá-lo com sabedoria, pois o combustível anda muito
caro.
Se eu me lembrar de mais algum desejo, vontade, ou apenas
uma coceira no cérebro, aumentarei minha lista. Não quero abusar muito dos
deuses, eles têm sido extremamente bondosos comigo. Minha gratidão a eles pelos
cuidados à minha pessoa. Agradecerei mais ainda, e farei algumas oferendas
contritas se metade de meus desejos forem satisfeitos.
SER FELIZ AOS SETENTA
Por Paulo Cezar S. Ventura (Nova Lima, MG)
Como ser feliz, agora que estou ficando velho? Existe ainda,
a esta altura da vida, a possibilidade de ser feliz? Aquela felicidade que não
consegui quando jovem, chegaria agora, quando passei dos sessenta? Então deixa
eu lhe responder diretamente, letra no olho. O que felicidade e idade têm em
comum é que a palavra “felicidade” engloba, incorpora, contém a palavra
“idade”. E só. Isso pode significar que a felicidade pode acontecer em
qualquer idade.
Mas, o que é a felicidade? Sou adepto das definições
operacionais porque elas nos ajudam a entender o conceito em si, objeto da
definição, e nos fornecem meios de mensurar aquilo que se define. Psicólogos das Universidades de Oxford e de
Harvard criaram questionários para medir, por vários métodos e instrumentos, o
nível de felicidade das pessoas. Eles acreditam que, para medir a felicidade, é
necessário avaliar fatores físicos e psicológicos, renda, idade, preferências
religiosas, políticas, estado civil, etc. Existiria, então, um padrão humano de
pessoa feliz? É preciso investigar, claro.
Pode-se dizer, entre várias outras afirmações possíveis, que
a felicidade
é um momento durável de satisfação, onde o indivíduo se sente plenamente
realizado, um momento onde não haja nenhum tipo de sofrimento.
Há duas afirmações interessantes nesse conceito. A felicidade
é um momento durável, não sendo infinito, momento este sem nenhum registro de
sofrimento. Há como medir este momento onde há ausência de sofrimento? O Dalai
Lama, líder espiritual do budismo, coloca a busca da felicidade como nosso
projeto de vida essencial. Segundo ele,
“O propósito de nossa existência é buscar a felicidade”
(Dalai Lama).
Vejam só: a felicidade está presente naqueles momentos de
ausência de sofrimentos, e que buscá-los deve ser nosso propósito de vida,
nossa busca incessante. E como nos livrarmos do sofrimento? Recorremos
novamente às palavras do Dalai Lama:
“O primeiro passo para nos livrarmos do
sofrimento é investigar uma de suas causas principais: a resistência à mudança”
(Dalai Lama).
Segundo essa afirmação, o primeiro passo para
se livrar do sofrimento é aceitar as mudanças. Porque elas sempre vêm. E se as
mudanças trazem sofrimento, então a saída é aceitar o sofrimento. Aceitar que
ele existe. O que não significa se entregar ao sofrimento. A aceitação não é um
ato masoquista. É entender o que acontece, é viver o presente. Não é fácil,
lógico. O sofrimento existe com várias caras diferentes: a não compreensão e
aceitação do passado é uma delas; a colocação dos desejos em patamares muito
altos é outra; a inveja, a ansiedade, a raiva, são ainda outras caras do
sofrimento. E as dores físicas, claro, proveniente de doenças.
Para bem viver o presente e eliminação das
dores não físicas o autoconhecimento é peça fundamental. E ele vai além do
conhecimento de onde venho e para onde vou. Mais importante que os pontos de
partida e de chegada está a trajetória, os caminhos por onde seguimos e pelo
total entendimento dos nossos passos. E os caminhos por onde podemos seguir nos
levam a um outro conceito anterior ao de felicidade, mais facilmente
mensurável, que é o conceito de bem-estar.
O bem-estar é um construto e possui cinco elementos
mensuráveis importantes:
1. Ter e procurar ter emoções positivas é o
primeiro elemento mensurável do bem-estar;
2. Engajar-se nos projetos e atividades em curso
faz com que não se veja o tempo passar, tão importante é o projeto;
3. Procurar sempre por relacionamentos positivos,
começa em eliminar relacionamentos tóxicos com pessoas que apenas retiram sua
energia, ao mesmo tempo em que sinta empatia pelas pessoas;
4. Colocar sentido, significado e propósito nas
coisas nas quais se empenha e se engaja;
5.
Realizar,
terminar aquilo que se começou e alegrar-se com o resultado e com o sucesso do
empreendimento.
Resumindo, é possível ser feliz em qualquer idade, inclusive
na maturidade. A felicidade aparece em momentos em que se consegue aceitar o
sofrimento e eliminá-los por meio de mudanças significativas na vida, mudanças
buscadas através de projetos com propósitos bem definidos. Mesmo a felicidade
não sendo facilmente mensurável, pode-se chegar ao bem-estar com projetos onde
se coloca pleno de emoções positivas, engajamento no processo, relacionamentos
com pessoas agregadoras, projetos que têm sentido em sua vida e que você os
realize até o ponto final.
Ou seja, não há um passo a passo, mas é possível fazer
escolhas que nos conduzam a uma vida saudável, com pouco sofrimento e onde os
desejos não sejam colocados em patamares inatingíveis. Para os budistas a
felicidade está na supressão do desejo e no viver o presente como proposta. Não
é fácil, mas é possível.
Felicidade: ficção do futuro escrita hoje. (Paulo Cezar S. Ventura)
RI MELHOR QUEM CONHECE OS CLÁSSICOS
Por Dias Campos (São Paulo, SP)
Da sua escola, Pedro Garrido sempre foi o mais franzino e
o que maiores notas tirava. Esses dois predicados eram suficientes para que os
mais truculentos e ineptos dele fizessem gato e sapato. Por isso, quando o
ensino médio terminou, parecia que retiravam um gigantesco bloco de granito dos
ombros.
Essa sensação de liberdade, aliando-se ao seu refúgio, o
estudo disciplinado, fizeram decolar a autoestima e a autoconfiança do rapaz, o
que o levou a conquistar o primeiro lugar no vestibular para Letras da mais
afamada universidade do seu Estado.
Devido à
minguada constituição física e à meritória classificação, o seu maior temor era
ser o alvo predileto dos veteranos. E ele bem que tremeu quando quiseram que
dançasse sozinho sobre uma mesa... Mas como havia lindas calouras ao redor,
Pedro Garrido foi rapidamente substituído.
Acudido por
esse milagre, o que lhe cabia fazer era agradecer aos céus e seguir adiante,
procurando não se fazer notar até a data da abolição dos escravos, data em que
os bichos ficariam livres do jugo dos capatazes.
Com efeito, o
primeiranista passou despercebido até ser contemplado com a alforria. E uma vez
liberto, pôde entregar-se com todas as suas forças ao seu sonho juvenil – debruçar-se
sobre os livros e se tornar professor de Literatura.
Como amasse
escrever, e escrevesse muito além dos de sua idade, Pedro Garrido logo foi
descoberto pelo grêmio estudantil, que o encarregou de uma Coluna no seu periódico.
Graças à
criatividade, à originalidade e ao bom cunho português, seus contos e crônicas
conquistaram estudantes e professores; e a tal ponto, que nomes como Homero, Virgílio,
Ovídio e Dante deixaram os claustros acadêmicos e se vulgarizaram até entre os alunos
das outras Faculdades, o que fez com que a procura por esses ícones redobrasse
os afazeres de mais de uma bibliotecária.
Como os
textos de Pedro Garrido eram cada vez mais lidos, apreciados e repassados para
além dos muros da universidade, um dos seus contos, o que elegera Machado de
Assis como personagem principal, acabou chegando às mãos de Carlos Sampaio, seu
colega de classe no colégio e o líder das cavalgaduras que com ele praticavam bullying.
E se é
verdade que esse autêntico representante do obscurantismo desdenhou do que leu,
também é exato afirmar que ficou mordido de inveja ao identificar o autor com a
sua saudosa vítima.
Alheio a essa
urticação, Pedro Garrido prosseguiu com determinação e brilhantismo,
formando-se Summa cum laude para regozijo
de sua família, dos demais alunos e de todo o corpo docente. – O seu TCC foi
sobre a influência dos Clássicos em Os
Lusíadas.
Como corolário
aos seus méritos, mal se iniciavam as férias e ele já recebia uma atraente proposta
para lecionar Literatura em uma universidade particular.
Ora, como o
seu sonho se tornava realidade; como precisasse bancar a Pós-graduação; e como a
paciência de sua noiva não se estenderia para além do Mestrado, Pedro Garrido não
titubeou em aceitar o emprego.
Não se
poderia descrever a emoção de que foi tomado quando assinou aquele contrato!
Mas como o
júbilo não se bastaria à total recuperação das energias, Pedro Garrido e sua
futura esposa decidiram viajar. E depois de muito pesquisarem, escolheram um lindo
chalé, em uma acolhedora cidadezinha montanhesa.
A viagem foi
tranquila. E como chegassem ao centrinho, que, apinhado de turistas e todo
iluminado, convidava os amantes a curtirem o frio, os apaixonados concordaram
que um bom tinto e um fondue de
queijo seriam indispensáveis.
Depois de
caminharem um pouco, agarradinhos, toparam com um local muito aconchegante. E
decidiram entrar.
Por sorte,
havia uma única mesa disponível. E o maître
os conduziu com toda solicitude.
Pedro
Garrido não poderia sentir-se mais afortunado!... As férias apenas começavam; ao
retornar, aguardava-o um bom emprego; sua escrita já caminhava para o terceiro
capítulo do romance de estreia; e estava prestes a desfrutar de muitos jantares
românticos. Realmente, os bons ventos sopravam fortes nas velas do seu destino,
e não havia quem divisasse nuvens acinzentadas no horizonte.
A borrasca,
contudo, pode sobrevir de inopino e dos pontos mais improváveis do oceano. Pois
não é que na mesa ao lado sentava-se um casal, cujo varão era ninguém menos que
o troglodita que atazanara Pedro Garrido durante o ensino médio? E se este não
o reconheceu, visto que aquele lhe dava as costas, não se pode dizer o mesmo de
Carlos Sampaio, tão logo girou a cabeça buscando o garçom.
Súbito,
lembranças deliciosas ressurgiram, e uma vontade louca de retomar as velhas
práticas tomou conta do antigo desafeto.
Entretanto, a
adolescência ficara para trás. E como eram homens feitos, estavam acompanhados
e em lugar público, aquele desejo teve que ser contido.
Só que à
medida que o tempo passava, a vileza de Carlos Sampaio só fazia aumentar, o que
já incomodava até a sua parceira, que percebia não ser mais o centro das
atenções.
Indagado sobre
o que acontecia, o ex-perseguidor resolveu contar tudo o que impusera ao seu
vizinho. Mas ao contrário do que esperava, risadas compartilhadas, o que ouviu
foram desaprovações, o que o deixou bastante contrariado.
As terrinas
de sopa de cebola chegaram. E enquanto comentavam o quão deliciosas estavam (receita
tradicional francesa), a mente de Carlos Sampaio dividia-se entre as respostas
à namorada e as lembranças das torturas impostas a Pedro Garrido – e se continha
para não gargalhar.
De repente,
Carlos Sampaio não se aguentou e, “sem querer”, deixou a colher escapar da mão.
Ao se abaixar para pegá-la, virou o rosto para a mesa do lado e, fingindo
surpresa, interpretou o reencontro entre velhos colegas.
Pedro
Garrido não se demorou a recordar do malfeitor. E um profundo mal-estar tomou
conta do seu coração. Sequer teve tempo para pensar em como reagir, pois o ator
levantou-se e foi abraçá-lo. Em seguida, todos se cumprimentaram – A namorada do
brutamonte já lhe sentia a má-fé; e se portava com a polidez possível.
Ao contrário
do farsante, que, efusivo, relembrava o convívio, gesticulava e ria com prazer,
Pedro Garrido sorria forçado, respondia com monossílabos e mal o encarava.
E para que a
comédia fosse ainda mais verossímil, Carlos Sampaio não se esqueceu de
mencionar que seu irmão caçula cursava engenharia na mesma universidade em que
Pedro Garrido se formou, e que, por força dessa coincidência e pelo prestígio alcançado
pelo novo escritor, chegara às suas mãos um exemplar daquele conto
protagonizado pelo Bruxo do Cosme Velho. E finalizava parabenizando-o muito,
pois nunca lera texto tão criativo, original e aprisionador.
Esse elogio,
digno de ser encenado nas mais célebres ribaltas, tirava o prumo de Pedro
Garrido. Afinal, se Carlos Sampaio sempre foi o seu algoz, como se deparava,
agora, com tanta mudança de caráter?
É fato, porém,
que Pedro Garrido aprendera que as pessoas podem, sim, melhorar-se com os anos.
Seria esse o primeiro caso concreto a experimentá-lo?
Também é correto
afirmar que, na Faculdade, ele nunca desprezou um punhado de confetes. Aliás, a
cada vez que lhe aplaudiam os textos, mais envaidecido, estimulado e confiante ficava.
Por força
dessas matrizes, Pedro Garrido baixava a guarda, e cedia à apetitosa isca.
Mesmo que o peixe
já tivesse sido fisgado, é de boa técnica, muitas vezes, que se deixe correr a
linha... Foi quando Carlos Sampaio sugeriu juntarem as mesas.
A namorada
do pseudo-admirador, no entanto, porque percebesse o seu ardil, bem que tentou desestimular
a união, objetando que os pombinhos gostariam de continuar a sós – o outro semblante
feminino aquiescia.
Mas diante
da insistência do enganador, que fazia questão de colocar as conversas em dia,
e da postura ambígua de Pedro Garrido, um balaio em que se chocavam a
privacidade possível e ego passível de incenso, as mulheres não tiveram alternativas;
em particular porque Carlos Sampaio, tomando a iniciativa, puxou sua mesa e a colou
à outra.
Como os
recém-chegados não tinham feito os pedidos, o falso amigo não se fez de rogado
e recomendou a sopa de cebola. E porque ele e seu par afirmassem que estavam divinas,
os noivos abriram mão do fondue e
pediram mais duas terrinas.
Para que o clima ficasse bastante descontraído,
Carlos Sampaio, mesmo sem saber se bebiam álcool, tratou de pegar a sua garrafa
e encheu de tinto as taças vazias. E como recebesse sorrisos em troca, deram-se
ao brinde inicial.
A
conversação, de início tímida, foi ganhando ritmo.
Tão logo chegaram
as iguarias, Pedro Garrido fez questão de pedir mais uma garrafa do mesmo vinho.
E as taças foram erguidas pela segunda vez.
O ambiente se
tornava cada vez mais amistoso; e a tal ponto, que a acompanhante de Carlos
Sampaio deixava da sua prevenção e se revelava uma ótima piadista.
E como
quisesse que seu peixe pensasse que poderia continuar nadando livremente, o ardiloso
pescador perguntava se ele já tinha publicado algum romance, pois se fosse tão
bom quanto o conto que lera, compraria um exemplar assim que retornasse à
capital.
Pedro
Garrido sentiu-se lisonjeado. Aduziu, no entanto, que apesar de todos os feedbacks positivos que recebera até o
momento – já ganhara vários prêmios literários –, não daria para afirmar, cem
por cento, que seu romance seria um sucesso meteórico; mesmo que adorasse o que
escrevia.
E se o
ouvinte interpretava extremo interesse, de igual forma o convencia de que,
mesmo inacabado, seu livro já o deixava com água na boca.
Dessa forma,
o iludido assegurou que o avisaria quando o concluísse; e os namorados prometeram
não faltar à noite de autógrafos.
Pedro
Garrido perguntou ao “novo admirador” o que fazia da vida.
Carlos
Sampaio respondeu que era sócio majoritário de uma grande lotérica no centro da
cidade, batizada de Buraco da sorte.
E, abusando da indelicadeza, afirmou que, ao contrário da dúvida que paira
sobre o escritor iniciante, sua remuneração era certa, e seus lucros, inevitáveis. Afinal, fizesse sol ou
chuva, ele ganharia com os bilhetes e as apostas, com as comissões que incidem
sobre a venda de outros produtos e pelo recebimento de contas de telefone, gás,
luz, etc. – Dita a localização, e Pedro Garrido se lembrou de que, vez por
outra, passava por lá e fazia uma fezinha.
Como percebesse
que essa cutucada bambeava levemente o humor do seu peixinho, Carlos Sampaio
decidia-se por começar a recolher a linha. Foi quando passou a relembrar do bullying que praticara contra ele.
E a cada
cena descrita – por sinal, com requintes de detalhes –, mais risadas dava e
mais se comportava como se estivesse agradando.
Sua namorada,
porém, despertou para a realidade no mesmo instante em que lhe ouviu a primeira
recordação. E ficou sem saber o que fazer, tamanha a vergonha que a possuía.
A alma gêmea
de Pedro Garrido – para quem nunca contara sobre o bullying –, e que no início até sorria, pois pareciam lembranças
engraçadas revividas por velhos amigos, tocava-se de que tudo tinha sido verdade,
quando, ao se virar, notou a profunda mudança na fisionomia.
Pedro
Garrido empalideceu. Os lábios estavam cerrados; os olhos, fixos no covarde, já
se umedeciam; e sua mão direita tremia sobre a mesa, depois que lhe caiu a
colher.
Constatado o
estrago, Carlos Sampaio não se furtou em dar mais uma paulada. E o fez
afirmando que era tão certo continuar a ganhar dinheiro ao final de cada mês
quanto era inevitável levar à sua boca mais uma colherada de sopa de cebola – e
caprichou na gesticulação.
É
desnecessário mencionar que não havia mais clima para continuarem o jantar.
Pedro
Garrido e sua noiva levantaram-se em silêncio. E antes de irem em direção ao
caixa, deixou claro que pagaria metade da conta. E se foram.
Carlos
Sampaio ainda teve ânimo para pedir sobremesa. Mas não conseguiria apreciá-la
como pretendia, pois teria que aguentar bem mais de uma reprimenda.
E se a lua
cheia prosseguiria em sua vereda celeste convidando os jovens ao amor, naquela
noite, pelo menos, dois dos muitos casais não lhe responderiam ao chamamento.
Pedro
Garrido e sua paixão decidiram antecipar a volta para casa. Não valia a pena
correrem o risco de reencontrarem Carlos Sampaio.
Não obstante essa decisão, as férias ainda estavam no
início. E sempre haveria um quarto à disposição deles na casa de praia do
sogrão.
E para que
não tivessem que passar horas explicando o retorno antecipado, resolveram pôr a
culpa em um surto de carrapatos que tomara conta da cidade. E que ninguém se
preocupasse, pois o dinheiro seria devolvido sem tardança.
Por fim, como não queriam reavivar os dissabores por que
passaram, prometeram não mais tocar nos assuntos bullying e Carlos Sampaio.
Seguiram-se as semanas de descanso e os prazerosos
bate-papos à beira-mar; sendo que as caipirinhas e as porções de camarões
fritos degustados sob os guarda-sóis foram essenciais à recuperação física e
mental dos noivos.
Terminadas as férias, e de volta ao seu apartamento,
Pedro Garrido lembrou-se de que deixara algumas pendências para serem
resolvidas. Além da dispensa que estava às moscas, teria que trocar duas lâmpadas
queimadas, consertar uma torneira que pingava e comprar veneno para acabar com
as formiguinhas que adoravam passear sobre a pia da cozinha. Sendo assim,
dirigiu-se, à tarde, ao centro da cidade, onde já era freguês de uma loja
especializada.
Mas se não se esquecera dessa loja, certo estabelecimento
tinha-se apagado de sua memória...
E quando dele
se aproximou, notou o desapontamento e as reclamações de algumas pessoas, que quiseram
apostar e pagar as suas contas, mas deram com as portas de aço desenroladas.
Concatenando
as ideias, Pedro Garrido recordou a conversa que tivera com Carlos Sampaio
naquela fatídica noite... Tratava-se da Buraco
da sorte.
E um frio
antártico subiu-lhe pela espinha!...
Essa gelidez, entretanto, logo passou, pois a ordem
judicial, afixada no mesmo dia e pela manhã na porta da casa lotérica, demonstrava
que as chances de revê-lo naquele dia seriam mínimas – era provável que
estivesse implorando ajuda ao seu advogado.
Neste exato
momento, as palavras ditas e encenadas por Carlos Sampaio naquele restaurante nas
montanhas, equiparando a certeza de se ganhar dinheiro com a de se levar à boca
uma colherada de sopa, e que, malgrado o seu esforço por esquecê-las, ainda lhe
surgiam como vultos agourentos, perdiam para sempre o seu poder de humilhar.
Por força
desse insight, uma ideia lhe vinha à
mente. E ele puxou de uma caneta...
Em seguida,
resolveu adiar as compras, e retornou às pressas para a sua residência.
Já defronte
à tela do computador, começou a escrever um conto.
Sem dar
nomes aos bois, Pedro Garrido iria recontar os acontecimentos por que passou,
desde o bullying que sofreu quando
jovem até o reencontro com o maior dos seus fantasmas. Por fim, e com o auxílio
dos Clássicos, Carlos Sampaio receberia uma lição que por certo jamais
esqueceria.
No dia
seguinte, Pedro Garrido contatou o responsável pelo jornal do grêmio estudantil
da sua Faculdade e perguntou se ainda teriam interesse em publicar mais um dos
seus contos. A aceitação foi imediata. E ele o enviou por e-mail.
Passados poucos
dias, não apenas o autor receberia o seu exemplar, mas, também, o caçula da
família Sampaio, que ainda não se formara e que não deixara de admirá-lo.
E como
previra Pedro Garrido, após ouvir do irmão sobre a incrível semelhança entre a
ficção e o que acontecera à sua lotérica, Carlos Sampaio, muitíssimo
desconfiado, agarrou o jornalzinho e foi àquele texto.
Depois de
alguma leitura, o arrogante não tinha dúvidas sobre quem eram, de fato, os
personagens principais. E até bateu palmas para Pedro Garrido pela coragem de se
expor daquela maneira.
Mas se
Carlos Sampaio se deliciava a cada período, seu bom humor mudaria assim que
passasse a ler o final da história.
Pedro
Garrido imaginou que o protagonista recebia um telefonema do seu funcionário
avisando que a lotérica tinha sido fechada por ordem do juiz.
Ato
contínuo, o vilão quase teve um enfarte, pois via secar a sua mina de ouro. –
Por coincidência, foi isso mesmo que aconteceu a Carlos Sampaio.
Mas como não
tinha chegado a sua hora, ele conseguiu recuperar as forças, e o raciocínio, e
pediu mais detalhes ao empregado.
O pobre moço,
então, achou melhor fotografar a ordem de lacração e enviá-la pelo celular.
Recebida a foto
via WhatsApp, o patrão precisou ampliá-la, pois não queria perder nenhuma
informação.
E depois de
se inteirar sobre o conteúdo da decisão, notou, logo abaixo, em letra cursiva e
à caneta azul, a frase Tra la spica e la
man qual muro he messo.
Ele só não
deu de ombros porque a fonte colocada entre parênteses chamava muito a atenção
– Os Lusíadas, Canto Nono, Estância
78.
Não que
essas inserções fossem mais importantes do que a desgraça que o abatia. Mas
como só saberia o que fazer depois de consultar com o seu advogado, e porque a
curiosidade era a sua marca registrada, a vítima da interdição estatal não se conteve
e foi ao Google pesquisar.
O fato de
ser um verso escrito por Petrarca e transcrito por Camões em nada mudaria a
vida do desafortunado. Mas a sua tradução, esta, sim, faria com que Carlos
Sampaio se arrependesse para sempre do gesto que um dia praticou – Da mão à
boca se perde muitas vezes a sopa.
O FIM PODE SER LIVRAMENTO
Por Liécifran Borges Martins (Cariacica, ES)
Nem
tudo que acaba deve ser derrota.
As
vezes é preciso encerrar ciclos.
Há
ciclos curtos que mal começam,
e
logo terminam.
Muitas
vezes isso dói a alma.
Exatamente
por não entender.
A
vida é assim, pessoas vêm e vão.
Outras
morrem outras nascem.
Um
relacionamento não deu certo.
Foi
livramento para você.
O
casamento acabou, talvez
aquela
pessoa não era para ser sua.
O
fim não é uma derrota.
Nem
mesmo uma tragédia.
O
fim pode ser o começo,
de
uma nova história.
É
preciso do fim,
para
se ter um começo.
É
necessário o fim para evoluir.
E-BOY E SEUS MISTÉRIOS, CAPÍTULO 1: O PRIMEIRO DIA
Por Renan Fillipi da Costa (Itajaí, SC)
Então Light se muda para uma escola nova, e agora
parado na calçada o nosso herói, olha para a escola e absorve, ou pelo menos
tenta absorver, a arquitetura moderna do prédio com suas vidraças azuis
espelhadas e linhas retas e curvas aqui e ali: — Mais uma dia miserável na
vida de Light! — Murmurou no nosso herói bem baixo, que quase ele mesmo não
se ouviu. O que ele queria dizer na verdade era: — Um prédio moderno, com
velhas fórmulas prontas e acabadas.
Light passa pela entrada dos alunos, um
guarda bem alinhado, com as mãos manda ele parar e descer da bicicleta e
caminhar. O homem da lei aponta para o bicicletário e o que incomodou o
estudante foi que o homem sequer abriu a boca. E ele pensou na vida antiga que
tinha, um adestrador de cachorros que usava a o passeio público para adestrar
os animais de estimação. Ele só usava gestos, Light pensou na palavra animal e
pior animais, somos animais recebendo adestramento de um pessoa uniformizada.
O jovem estudante fez o rolê pela nova escola e
logo percebeu as diversas tribos e ajuntamentos humanos, mas deixamos este
corte para depois. Basta saber que por hora que Light perguntou para uma
tiazinha que parecia ser uma zeladora da escola. O rapaz queria saber onde
ficavam os banheiros da escola. A mulher parecia não entender o que ele dizia,
e Light deu uma olhada mais profunda, uma estrangeira deduziu o óbvio. Então
ele perguntou pelo toilette, a mulher apontou para o fundo do corredor. O
estudante caminhou para o toilette lentamente, tentando ignorar os cartazes nas
paredes, professores com cara de sono, gritos histéricos de crianças que
inundavam e corriam pelos corredores, os altos funcionários que andavam em
bando.
Light alcança e adentra o banheiro, e ele pensou,
pronto agora é ficar seguro ali até o sinal soar. O povo se aglomera no
pátio e se enfileira, depois vem saudação a bandeira e o hino da pátria amada é
entoado, os informes da direção da escola e depois tem a marcha em ordem unida,
para as salas de aulas. Como aluno novato que é, bastaria seguir o fluxo e
encontrar a sala de aula. Já era, assim se deu, e um alívio tomou conta de
Light.
Ao encontrar e adentrar na sala de
aula é se seguir o fluxo e mandar direto para o fundão e ali ficar e passar
despercebido. Só que o nosso herói juvenil não contava em se apaixonar, à
primeira vista, por uma e-girl. Ela, linda e plena, ocupando uma cadeira no
fundão da sala. A paixão à primeira vista pareceu pelos corredores e intervalos
das aulas, mais uma história para a gente desenrolar depois.
E Light segue o fluxo e logo ele convive, com
professores, os outros alunos, fez bons amigos, inimizades. E às vezes ele se
dá mal nas provas por conta que tem que cuidar da irmã rubi de doze anos
enquanto os pais saem para trabalhar durante a noite e ele ainda trabalha. Não
é fácil a vida do nosso herói juvenil.
MINHA QUERIDA AGNES (AGNUS DEI)
Por Clarisse Cristal (Balneário Camboriú. SC)
‘’Nem todos os
cavalos da rainha
Nem todos os
homens do rei
Podem nos
reunir de novo’’
Valentina caminhava lentamente na semi-escuridão, carregava a pequena Agnes no
colo com terno carinho. Àquela hora a velha babá de profissão sentiu toda a
dor, que por décadas sentia calada, de forma absoluta, dentro do seu frágil
ser. Sentiu, também, toda a enormidade do peso da idade, a lhe cair nas costas,
que chegou sem aviso afinal de contas, como uma torrente. Agnes nunca fora
pesada de carregar, aliás nenhuma das crianças fora, pelo menos das que ela
cuidava, carregar a inocência delas era como carregar plumas. Cuidar de
crianças bem pequenas foi a forma que Valentina encontrou, para aliviar as
muitas pesadas culpas que ela carregava dentro de si. Valentina caminhava como
se estivesse a caminho de um batalhão de fuzilamento, naquela hora extrema,
pois ela sentia no íntimo a escuridão chegando.
— Tina, aquele homem bonzinho de roupa engraçada, vai mesmo me trazer muitos
presentes pra mim? Como ele prometeu!
— Isso é com a tua mãe, meu anjo bom, só ela pode te responder!
— Tina tu vai ler aquele livro pra mim, mais uma vez? Tu vai Tina? Tu vai?
— Qual livro meu anjo? — Fez a pergunta já sabendo qual era a resposta.
— Os filhos do sol, livro supimpa Tina!!!
— Muito adulto menina minha, a tua mãe não gosta que eu leia para a senhorita,
que a senhorita escute tais desatinos literários.
Valentina chega por fim ao quarto dormir da menina Agnes, as portas
automáticas se abriram automaticamente. A velha senhora, de cabelos grisalhos,
mesmo na semi-escuridão que se deslumbrou com o que viu, toda a magnificência
do aposento da menina pequena, como se fosse a primeira vez que adentrava
naquele sítio. Naquela noite fria de outono, o quarto enorme da pequena Agnes
tinha o olor de rosas frescas colhidas no arrebol. Valentina esperava que as
luzes acendessem automaticamente, assim que ela colocasse os pés no quarto de
dormir da menina. Não acenderam, somente as luzes de segurança se fizeram
presente. Valentina levou a criança até a cama, colocou a Agnes letárgica na
cama e cobriu, ela ergueu a cabeça e sorriu para Valentina antes de cair
completamente no sono.
Valentina foi até a pequena biblioteca da menina e pegou o livro Os
Filhos do Sol, de capa dura, de couro cru, desgastada pela ação prolongada do
tempo, com páginas brancas e incrivelmente novas. Sem editora, sem nome do
autor, nacionalidade e escrito em português europeu que mistura arcaísmos com
modernismos. Um livro antigo, que Valentina nem sabia como foi parar na
biblioteca da menina Agnes, pois era a própria babá da menina que era
encarregada das compras dos livros para Agnes. Os títulos dos livros geralmente
passavam pelo crivo da mãe da menina. Valentina perguntou para a mãe de Agnes
sobre o livro, e ela respondeu de forma vaga: — São desígnios dos deuses e
das deusas, minha querida Valentina! Se quiseres ler, para a pequena, leia ora
essa. E não me aborreça mais com essas miudezas! — Valentina coloca o livro
de volta na estante, dá uns poucos passos e vai até a janela, ela viu as luzes
vermelhas lá embaixo e muita movimentação de ambulâncias e viaturas das forças
de segurança, policiais civis e militares andando de um lugar para outro.
Populares e jornalistas, ao redor da cena sendo contidos pelas forças de
segurança.
— Deus é sempre assim, quando ela
volta para casa e resolve dar essas festas dos infernos! Deus será?
— Falando sozinha Valentina?
A velha senhora fecha os olhos e sorri, a quanto tempo não ouvia aquela voz
doce, limpa e cheia de mistérios?
— O livro é presente, afinal de contas? Claro que é, de quem mais poderia ser?
Valentina continuava a olhar para baixo, não tinha coragem de encará-la.
Mas tinha o cheiro forte de rosas frescas, o livro e o quarto à meia luz.
Valentina viu ali um cenário bem montado esperando o momento certo para agir.
— Quase isso meu anjo!
— Kriseide eu não tive culpa alguma do que aconteceu naquele dia!
— Sabe qual é problema de vocês? São incapazes de viver, com as suas próprias
fraquezas e angústias! Ou seja, são incapazes de viverem consigo mesmos e com
os seus erros! Os mais simples que sejam!
Valentina fechou os olhos, mil vozes gritavam na mente da velha senhora, ela
sentiu uma chuva de vidro dilacerar seu corpo por inteiro, brutal e rápida seu
corpo ardia em chamas para depois ser projetado para trás. Ela deitada no chão,
respirando sofregamente sentiu várias micros agulhas lhe triturar a carne a
indo parar nos ossos. Para depois acordar sentada na poltrona de leitura, sem
um arranhão sequer com o livros dos filhos do sol. Valentina estava com o livro
nas mãos, ela olhou para a menina no berço. E logo imaginou que era somente o
começo de um pesadelo sem fim não só para ela.