Por Dias Campos (São Paulo, SP)
Camargo Aranha tinha um modo peculiar de ganhar a vida e um meio sublime
de se livrar das “correntes da vida” que por vezes o prendiam. Apropriar-se dos
bens alheios por meio de golpes mirabolantes era o seu ganha-pão. Dedicar-se à
literatura, escrevendo e publicando contos fantásticos, a sua maneira de se desacorrentar.
Esta, aprendera-a com sua mãe no início da adolescência; aquele, seduziram-no
os falsos amigos, antes de largar a faculdade.
E se D. Ana sempre agradeceu a Deus pelos dons da criatividade e da
originalidade com que brindara seu filho, mais graças a Ele rendia pelo lar
constantemente provido; se bem que jamais suspeitasse do ofício a que ele se
dedicava.
Certa tarde, Camargo Aranha entrou em casa carrancudo. D. Ana logo
percebeu que algo estava errado, pois, além de notar o seu semblante, o horário
que chegava não era o de costume.
A bondosa senhora deixou que os minutos passassem na esperança de que seu
filho viesse conversar.
Mas como não saía do quarto, o jeito foi acender o fogo a fim de que o
perfume do bròdo o tirasse da
clausura.
Pois não demorou muito para que ele aparecesse, e com um aspecto mais
sereno.
D. Ana serviu ao filho um prato cheio. Depois sentou-se ao seu lado e
esperou que começasse a falar.
Camargo Aranha, que jamais resistira a esse jeito materno de persuasão,
contou que estava se deparando com muitos entraves à resolução de um negócio
que imaginara, sendo essa a razão por que entrou em casa de cara amarrada.
D. Ana, então, tratou de relembrar ao filho o velho e sábio conselho –
“Toda vez que se sentir acorrentado, usa do papel e do lápis para libertar-se”.
Assim, se chegou com problemas, que os pusesse de escanteio e se entregasse à
escrita. E à medida que fosse escrevendo, as correntes iriam se quebrando. Ao
final, ficaria completamente livre para avaliar melhor as decisões que precisaria
tomar.
Camargo Aranha sorriu; e pediu desculpas pelo esquecimento. E como
soubesse que um muito obrigado não seria suficiente à sua mãe, usou do repeteco
como meio de gratidão.
Terminada a refeição, o filho voltou para o quarto e sentou-se à
escrivaninha. Seria por meio da sua arte que ele desanuviaria os pensamentos e
acharia o caminho de que precisava.
Desta vez, porém, resolveu unir o útil ao agradável, e passou a escrever
sobre a manobra desonesta que pretendia. Tinha esperança de que as dificuldades
com que se debatia seriam todas superadas no desenvolver da história, o que
resultaria em um verdadeiro roteiro àquilo que almejava.
Com efeito, na medida em que o texto crescia, e ganhava vida própria, os
parágrafos faziam-se setas que indicavam os trajetos possíveis a serem
percorridos. Os períodos convertiam-se em itinerários que descreviam os
percursos prováveis a serem escolhidos. E o texto acabado transformou-se em um
mapa detalhado, que, se seguido à risca, levaria ao destino cobiçado no menor
tempo, com o menor custo e sob riscos aceitáveis.
É claro que esse foi o único dos contos que Camargo Aranha resolveu não
publicar. Vai que tivesse como leitor algum investigador que reconhecesse os
lugares descritos, que identificasse algum padrão de comportamento e que
ligasse todos os pontos?
A exceção ficou a cargo de sua mãe. Afinal, ela sempre foi a sua primeira
e mais fiel admiradora.
Em que pese D. Ana não gostar da temática escolhida – assalto a uma
transportadora de valores –, e muito menos do final escolhido ao personagem
principal, que escapava ileso, não deixou de aplaudir e de estimular o talento
do contista.
À noite, sozinho em seu quarto, Camargo Aranha leu e releu o texto. E
dele extraiu as passagens essenciais com que elaboraria um cronograma. Assim,
ficaria mais fácil memorizá-lo, bem como explicar o plano aos comparsas com
quem costumava agir.
E se sonhou com a sua execução, reproduzindo cada alternativa, decisão ou
movimento descritos naquele conto, não conseguiu terminá-lo da maneira como
concluíra, comemorando com a quadrilha, pois na hora exata em que iria agarrar
os sacos de dinheiro, o despertador soou o estridente alarme.
Camargo Aranha levantou-se assustado. Mas foi se acalmando assim que se
lembrou de que a reunião com seus cúmplices só aconteceria às dez horas.
Como sempre, D. Ana preparara o café e pusera a mesa.
Camargo Aranha lambeu os dedos com um pão na chapa feito na hora, sorveu
o café com leite quentinho e cremoso, travou um gostoso bate-papo com sua mãe,
e, por conta disso, adiou a leitura do jornal para quando retornasse.
Percebendo que seu filho acordara animado, D. Ana foi logo louvando a
terapia do papel e do lápis, santos remédios que libertam os homens dos
grilhões por eles forjados durante a existência!
Camargo Aranha sorriu, e concordou com um meneio de cabeça. Em seguida,
beijou-lhe a testa, consultou o relógio, e partiu avisando que não o esperasse
para o almoço.
E se ela aparentou concordar, ele fingiu acreditar.
Quando chegou ao local marcado – um bar insuspeito, no centro da cidade
–, os três criminosos já o aguardavam, desejosos de dinheiro e saciados de
cerveja.
Demonstrando certa contrariedade, Camargo Aranha perguntou se não era
muito cedo para beberem.
A resposta, porém, agradou aos seus ouvidos – comemoravam antecipadamente
mais um golpe de mestre.
O líder da quadrinha mostrou o cronograma que fizera, explicou o plano, e
distribuiu as tarefas, enfatizando que cada um deveria agir em estrita
obediência ao que idealizara.
Os ladrões tudo compreenderam.
Ao final da empreitada, repartiriam uma bolada de fazer inveja à
concorrência, e poderiam viver sossegados por um bom par de anos; desde que, é
claro, não dessem bandeira à polícia, ostentando luxo nos meses seguintes.
Como todos ficaram bastante
satisfeitos, e confiantes, Camargo Aranha recostou-se na cadeira, varreu o bar
com os olhos, e terminou por pousá-los no relógio. E como o horário
incentivava, desconsiderou a pergunta que fizera ao chegar e indagou quem lhe
serviria uma gelada.
O chefe do bando voltou para casa outro homem. Seu semblante nem de longe
lembrava a carranca do dia anterior. Estava bem-humorado, falante, e trouxera
de presente para sua mãe um lindo ramalhete de rosas brancas. – O mimo também
visava a desviar sua atenção quanto ao fato de ter bebido.
D. Ana preparara o seu prato predileto – lasanha à bolonhesa. Pena que
estivesse um pouco fria, visto que demorou para voltar.
Na hora do cafezinho, sempre recém-passado, D. Ana perguntou se poderia
mostrar à vizinha o conto que escrevera. – Havia, sim, uma vontadezinha de
fazer inveja.
Camargo Aranha chegou a engasgar. Mas depois que se recompôs, inventou
que estava em tratativas com uma Revista especializada. E quando o publicassem,
traria alguns exemplares cheirando a novos, de modo que sua mãe poderia
distribuí-los à vizinhança até com mais prazer. Isso foi suficiente para que ela
se contivesse.
Antes de dormirem, o filho de D. Ana ainda foi visitado pela inspiração.
Mas como a história revelava-se tremendamente autobiográfica, resolveu abortar
o texto com medo de que sua mãe também quisesse mostrá-lo aos vizinhos.
Na manhã seguinte, ele nem precisou do despertador para levantar-se. Era
a véspera do roubo. E como sempre acontecia, a preocupação fez as vezes da
campainha.
Camargo Aranha ensaiou partir sem tomar café. Mas como sua mãe o lembrou
de que saco vazio não para em pé, a antevisão dos muitos malotes de dinheiro
que deveria transportar fez com que mudasse de ideia.
Mesmo que a ação só acontecesse a uma e meia da madrugada, horário em que
a vigilância na sede da empresa parecia relaxar, de acordo com o relatado por
um funcionário que se vendera, Camargo Aranha fez questão de passar o dia todo
com seus amigos de rapinagem, pois o plano deveria ser estudado tantas vezes
quanto achasse necessário. E podemos afirmar que cada um dos quadrilheiros
sabia precisamente onde se posicionar, o que lhe cabia fazer, o seu momento de
agir, e o tempo máximo de sua participação.
No horário marcado, a ação teve início com precisão cirúrgica. Dois
carros para fuga a postos (1h30); invasão por uma porta lateral facilitada pelo
funcionário corrupto (1h31); rendição dos guardas sem um único disparo (1h37);
abertura do portão principal para entrada dos automóveis (1h40); arrombamento
do cofre com explosivos suficientes (1h43); ensacamento do dinheiro encontrado,
perfazendo cinco malotes lotados (1h46); retorno dos assaltantes aos carros
(1h49); e abertura do portão principal pelo quarto partícipe visando à fuga
(1h50).
E todo o plano aconteceu em cravados vinte minutos, um novo recorde para
a equipe de malfeitores.
Os bandidos pisaram fundo no acelerador e desapareceram.
O assalto foi notícia por quase uma semana, tempo esse em que Camargo
Aranha e seus parceiros ficaram como que invisíveis.
Mas as investigações prosseguiram. E levaram os agentes àquele
funcionário venal.
O subornado não aguentou a pressão e acabou revelando todos os nomes.
Camargo Aranha foi preso em um sábado chuvoso, justamente quando tomava
café da manhã com sua mãe.
D. Ana, que desfaleceu e precisou ser amparada por um dos policiais, foi
internada às pressas.
No hospital, já desperta, a pobre senhora tanto insistiu que ficou
sabendo que seu filho tinha sido preso por ter organizado e participado do
famoso roubo à transportadora de valores.
D. Ana chorou todas as lágrimas que podia... E só retornou para casa três
dias depois; bem mais magra, e envelhecida.
Seguiu-se o processo e a sentença foi proferida. E a Camargo Aranha foi
imposta a maior pena, porque mentor intelectual do crime.
E como a penitenciária para onde foi levado estava longe de ser um modelo
de reabilitação, Camargo Aranha, além de ser frequentemente humilhado pelos
presos com quem dividia a cela, era por vezes seviciado pelo carcereiro
encarregado do seu pavilhão, visto que teve a infelicidade de não cair em suas
graças logo no primeiro contato.
Mas haveria um momento de consolo. Seria o primeiro dia em que sua mãe
iria visitá-lo.
Ao se reverem, o presidiário desatou a chorar. E por entre soluços e
súplicas de perdão, confessou que não aguentaria passar por tanto sofrimento,
que não suportava ficar preso nem mais um dia, que preferia morrer a viver
acorrentado ao inferno.
D. Ana fitava o filho com ternura. Não falava, apenas sorria. E como o
cansaço do desiludido impusera-lhe uma pausa, sua mãe abriu a sacola que
trouxera e, com as mãos trêmulas, entregou a Camargo Aranha algumas folhas de
papel e um punhado de lápis, itens que prometia trazer a cada vez que fosse visitá-lo.
E o prisioneiro compreendia, com os olhos marejados e os lábios cerrados,
que os contos que escreveria seriam, mais do que nunca, as únicas maneiras por
que poderia se sentir livre, haja vista os longos anos que ainda teria para
cumprir.