quarta-feira, 1 de novembro de 2023

Podcast: Real Casa de Lucena e Academia Lucentina

Por Paccelli José Maracci Zahler (Brasília, DF)

A ARTE POÉTICA DE VALÉRIA CRISTINA GURGEL (NOVA LIMA, MG)

 




MEMÓRIAS PÓSTUMAS DE BRÁS CUBAS (EM HAICAI)

 Por Leandro Bertoldo Silva (Padre Paraíso, MG)

Capítulos I a VI

EÇA ESTÁ NA BERRA

Por Humberto Pinho da Silva (Porto, Portugal)

  

Anda a cidade de Baião em alvoroço, porque parte da população encontra-se indignada., pelo facto de quererem levar, para Lisboa, os restos mortais de Eça de Queiroz.

Criou-se até movimento para defender a causa. O porta-voz, o ex-autarca António Fonseca, considera a saída do escritor do cemitério de Stª Cruz do Douro – que fica junto à serra que Eça imortalizou, – prejudica o Concelho, além de ser afronta à Fundação Eça de Queiroz, que o trouxe de Lisboa, do cemitério de S. José, em 1989.

Parte dos descendentes de Eça estão, também, contra a transladação.

Entre eles, António Eça de Queiroz, que em 07/07/21, escreveu in: " O Comércio de Baião": é " Uma farsa política negociada entre "amigos", pois o ridículo " processo" (...) é além duma parolada de pretensiosos, um insulto à memória das pessoas que há mais de três décadas tudo fizeram para que Eça descansasse em paz junto de sua filha mais velha, no Cemitério de Santa Cruz do Douro. Com o acordo das netas, ainda vivas".

Após a morte de Eça, em 1900, na casa de Neuilly, sua mulher regressou a Portugal, indo viver para Penamacor, com uma irmã.

Consultou o pai de Eça para que lhe indicasse onde desejava que o filho fosse sepultado. Respondeu-lhe: Aveiro; mas a viúva resolvesse como achasse melhor. Esta, decidiu colocá-lo no jazigo da família, em Lisboa.

O desinteresse dos progenitores do escritor é notório ao longo da vida de Eça. Não estiveram presentes no: batismo, no casamento, nem no funeral!

Desinteresse inexplicável. O pai era juiz, a mãe pertencia a respeitável família de Viana do Castelo, filha do Tenente-Coronel José António Pereira de Eça.

Campo Matos, diz no: “Suplemento do Dicionário de Eça de Queiroz”que uma: “ Testemunha de um familiar que conviveu de perto com ela, (a mãe) obtido em 1974 por Severino Costa:

“Ela ficou furiosa de ter caído nessa falta e tomou uma raiva ao namorado que não quis casar (…) A Mãe à hora da morte obrigou-a a fazer a promessa de casar”

Eça, como se sabe, nasceu na Povoa do Varzim, a 25 de novembro de 1845, em casa da irmã mais velha da mãe. Confirmado por Ramalho Ortigão, o pai., e a própria mãe.

Porém, Manuela de Azevedo, em: " À Sombra de Eça e Camilo" narra que nasceu em Vila do Conde no solar da família Pizarro Monteiro, em segredo, mas nunca foi confirmado.

Após o nascimento foi entregue aos cuidados de uma ama, seguindo, decorrido tempo (5 anos?) para Verdemilho – Aveiro, para ser criado pelos avós paternos; permanecendo ai, até completar dez anos.

Matricularam-no, em seguida, como interno, no Colégio da Lapa, que pertencia ao pai de Ramalho, indo depois para a Universidade de Coimbra.

Apesar dos pais casarem quatro anos depois do nascimento de Eça, e já terem mais três filhos legítimos (Eça teve 6 irmãos,) nunca reconheceram oficialmente, o primogénito. Todavia Campos Matos, menciona em: “Imagens do Portugal Queirosiano” – que recém-formado, Eça residiu em casa dos pais, que ficava no quarto andar, nº 26 do Rossio (Lisboa,) e se hospedava lá quando vinha à Capital.

Só quando o escritor necessitava dos documentos para realizar o casamento, é que, a pedido do Eça – para a noiva não saber que era filho de mãe incógnita, – o reconheceram oficialmente, mas não quiseram estar presentes na cerimónia, realizada em fevereiro de 1886, na Capela da Quinta de Santo Ovidio, propriedade da mãe da noiva.

Atitude estranhíssima. Eça era diplomata, figura conhecidíssima no meio literário português, e ia casar com a filha da Condessa de Resende, família abastada, da mais alta nobreza.

Estranho é, também, que após 124 anos da sua morte, o queiram levar para Lisboa.

O que, certamente Eça desejaria, é que o País, em vez de lhe darem a honra de Panteão, não tivessem perseguido politicamente a família, chegando a ameaçar a viúva de lhe cortarem a pensão, a que tinha direito, se ela e os filhos, não apoiassem a República! Atitude que os obrigou a expatriarem-se para Londres, segunda me contou Dona Emília, neta do escritor, durante a conversa que tive em sua casa.

SORTE OU BRUXARIA?

Por Dias Campos (São Paulo, SP)

 

            Sabe aqueles dias em que a sorte parece bater à porta? Pois seu Osório sentiria dessa sensação à medida que lesse a revista Ilustração Brasileira.

            Estamos na capital do império, no primeiro dia de janeiro de 1877. Os secos e molhados do seu Osório vão de mal a pior, e a única coisa que ainda o diverte é ler as crônicas do seu autor preferido, Manassés, pseudônimo de Machado de Assis, até então irrevelado.

            A certa altura, o comerciante lê sobre as galerias recém-encontradas sob o Morro do Castelo.

            Prossegue o cronista relembrando a antiga lenda de que lá haveria um “tesouro dos contos arábicos” abandonado pelos jesuítas quando foram obrigados a deixar o Rio de Janeiro por ordem do Marquês de Pombal. Essa história, ouvia-a desde criança, e cresceu com a convicção de que fosse verdadeira. Daí que aguardava os jornais divulgarem os artefatos que seriam encontrados; se bem que ficasse preocupado com o povo que acorreria ao local.

            Ao final, Manassés questionava o fato de os jornais não mais publicarem notícias sobre as escavações, e mencionava a discussão que acontecia sobre a quem pertenceria o tesouro que fosse desenterrado, se ao Estado ou aos concessionários encarregados da demolição. E como discordasse dessas opções, afirmava que tudo era devido à arqueologia, cabendo ao Museu Nacional recebê-lo e preservá-lo.

            O silêncio dos jornais não causou estranheza a seu Osório. Afinal, nada como calar a imprensa para que essa notícia caísse no esquecimento, o que afastaria a pretensão do povo de se tornar mais um concorrente à partilha.

            - Eia! – animou-se o comerciante – Nem ao governo, nem aos apadrinhados, nem à posteridade. Será, sim, de quem chegar primeiro!

O tempo corria contra seu Osório, uma vez que bem sabia serem muitos os leitores de Manassés, o que, a seu juízo, ampliaria o leque de concorrentes à caça ao tesouro.

Mas o negociante tinha uma carta na manga. Certa vez, quando se aproximava a hora de fechar, um rapaz surgiu esbaforido em seu armazém. Cobria-se apenas de ceroulas e implorava acolhida, pois estava sendo perseguido por um homem mal-intencionado.

Seu Osório, que bem se lembrava dos seus arroubos na juventude, deduziu que a intenção do perseguidor nada tinha de má, pois quando o marido flagra a esposa em adultério, por certo que o sangue sobe-lhe à cabeça. Mas como o rapaz prometia retribuir a guarida tão logo alcançasse sua casa em segurança, o “compreensivo” comerciante deixou-o ficar.

No dia seguinte, o candidato a Don Juan cumpriu o que prometera. Retornou ao armazém, devolveu a casaca com que se esquivara, e ofereceu uma soma modesta como paga, pois, na condição de mero amanuense lotado no Ministério da Guerra, seus vencimentos não lhe permitiam dispor de muito mais.

Seu Osório recusou a quantia sorrindo. Mas não deixou de garantir-se quanto a um futuro favor, caso viesse a precisar.

Pois o momento chegara.

Foi àquele Ministério, encontrou o jovem devedor, e pediu que conseguisse uma autorização que lhe franqueasse a entrada, à noite, nas galerias do Morro do Castelo.

Achando melhor não se inteirar sobre os motivos do pedido, o funcionário público disse que tinha um amigo que trabalhava no órgão ministerial a que todas as concessionárias estavam vinculadas. E como ele também lhe devia um favor, se seu Osório pudesse esperar um ou dois dias, cria que conseguiria a melhor das falsificações. E a mandaria entregar.

O tempo de espera não agradava ao negociante. Mas como afluíam aos secos e molhados mais credores do que fregueses, alternativa não teve senão a de aceitar a oferta.

Foram os dois dias mais vagarosos por que já passou seu Osório... Mas o mancebo agradecido soube honrar as calças e os surrados bigodes. E na manhã do terceiro dia, um moleque batia à porta do armazém.

De posse da autorização falsa, e já tendo decorado a “justificativa oficial” à sua visitação às altas horas, caso algum responsável o quisesse barrar, o comerciante partiu a cavalo rumo à Ladeira do Castelo.

A só apresentação do selo imperial foi suficiente para que ingressasse.

Munido de lampião, de alguns apetrechos para escavação, e da certeza de que a sorte realmente o tivesse acenado, seu Osório desceu aos subterrâneos feito garoto travesso a poucos metros da goiabeira proibida e carregada – ora ávido pelos frutos saborosos, ora pronto para chispar ante o menor perigo.

Andando com prudência, alcançou uma bifurcação. Agora era o momento de refletir. Sabia que teria pela frente muitas horas para procurar. No entanto, se nada encontrasse, não estava disposto a retornar nas noites subsequentes, pois correria o risco de que o embuste fosse descoberto, e de ser preso. Sendo assim, resolveu apelar para sua estrela. E tomou de uma pataca, e se concentrou para o cara e coroa. Só não lançou a moeda ao ar porque viu o símbolo dos jesuítas adornando a entrada do túnel direito. Ora, como se sentia envolvido pela mesma sensação que o fartou quando leu aquela crônica animadora, o futuro barão decidia-se pela rota “indicada”.

Depois de alguns minutos caminhando, seu Osório estacou, pois percebeu uma portinhola de ferro incrustada na parede à sua esquerda. Se seguisse adiante, talvez nada mais encontrasse além de breu. Assim, aproximou-se e iluminou o achado. Apurando a vista, distinguiu outro símbolo dos jesuítas gravado em baixo relevo no tijolo logo acima. E novamente era visitado por aquela estimulante sensação... Pois era mover o ferrolho, e se apoderar do conteúdo. E quem sabe não voltaria para casa carregando um crucifixo de ouro maciço?!

O ferrolho rangeu ao ser movido. Quanto ao conteúdo... O que havia era um papelucho enrolado e enlaçado por fita vermelha, ambos com aparência de novos. Seu Osório desatou o laço e começou a ler: “Caríssimo. Se aqui chegaste em nome da arqueologia, sê bem-vindo e prossegue. De certo as glórias aguardam-te ao final. Mas se aqui vieste por causa da minha crônica, a quem caberiam as glórias senão a mim que tive todo esse trabalho? Neste caso, dá meia volta, bate as sandálias da cupidez, e cancela a assinatura da revista. – Todo seu. Manassés”

E toda vez que aquela “sensação de sorte” insiste em acariciar seu Osório, ele persigna-se, separa um vintém às almas do purgatório, e desconjura o Bruxo do Cosme Velho.

(Conto premiado com Menção Honrosa no XXIV Concurso de Contos "Alípio Correia")

AS ÁGUAS QUE NÃO POLUO

Por Liécifran Borges Martins (Cariacica, ES)


 As águas que não jogo lixo são

as águas que matam a minha sede.

O rio que não contamino é

o rio que me banha ao ar livre.

 

O mar que não jogo minhas latas

É o mar que me socorre

do calor do sol.

Me trás paz em meio ao sol.

 

Vamos preservar:

O meio ambiente e as

águas do mar.

Sem poluir e contaminar.

 

Vamos ter peixes.

Vamos pescar os peixes.

Vamos cuidar da natureza.

Vamos parar de poluir.

 

As águas que não poluo.

São as águas que me fazem renascer.

No meio do mar quero as águas

contemplar ao ar livre.

 

 

 

PONTO FINAL

Por Liécifran Borges Martins (Cariacica, ES)


Retire as vírgulas de onde

não existe um fim.

E coloque um ponto final ali.

 

Nossa história não tem

mais como continuar assim.

Por isso em vez das virgulas usei os pontos.

 

Ponto final é essencial.

Existem ciclos que precisam de pontos.

Outros das vírgulas.

 

É assim que vamos seguir a vida.

Colocando pontos ou vírgulas.

Escrevendo sempre uma história.

 

Ponto final é o fim.

Vírgulas é uma pequena pausa.

Ponto final, adeus e tchau.

 

REVOLTAS DA VIDA

Por Liécifran Borges Martins (Cariacica, ES)


Meu coração fica a

questionar os porquês da vida.

Entro no meu quarto, choro e

sangro a minha alma.

 

Por que estou assim?

Por que isso dói em mim?

Por que estou sentindo isso?

Por que a vida fez isso?

 

Revoltada estou com o

próprio espelho.

Meu coração sangrou .

Meu coração está em sangue.

 

Ferida agora estou.

Magoada fui pelo meu amor.

Destruída e com dor me deixou.

Meu amor me deixou com dor.

 

Revoltada estou.

A vida é uma surpresa.

Cheia de surpresa é a vida.

A vida é uma surpresa.

 

CUIDADOS PATERNOS

Por Liécifran Borges Martins (Cariacica, ES)


Filha, eu sou o seu pai.

Quero o melhor para você.

Esse cara não merece você.

Me ouve minha filha.

 

Seus olhos escorrerão,

lágrimas sem fim.

Não namore com ele.

Nem mesmo casa com ele.

 

Esse cara na sua vida,

não merece entrar.

Ele é ogro e bruto.

E você toda sensível.

 

Ele é ignorante.

E você uma bela flor.

Quero cuidar de você.

Ouça seu velho pai.

 

Sou seu pai e seu amor.

Cuidar de você eu vou.

Ouve minha voz,

meu amor.

PALHAÇO INFELIZ - CORPO SEM ALMA

Por Waldir de Melo Filho (Walldyr Philho) (São Paulo, SP)

A notícia da sua soltura não veio com retumbo de alegria como o esperado por todos que estavam ali. Não havia o que comemorar. Para ele, não havia razão alguma para festejos. Pelo contrário, abatera-se em tristeza que fora impossível controlar as lágrimas que vertiam dos seus olhos cansados e sem expressões. Olhos afundados no poço negro do preconceito, mergulhado na lama da discriminação durante tantos anos que se acostumara e até passara a não se sentir parte integrante da sociedade. Para ele, sua mísera vida não passava de um erro de Deus! Sentia-se indesejado, inútil; como se a sua simples existência incomodasse e até mesmo agredisse as ranhuras do tecido da existência temporal. Era uma aberração, um filho que Deus havia esquecido e não fazia questão de querê-lo agregado a sua imagem e semelhança. Desabou a chorar um choro seco, sem lágrimas, como um grito gutural de coruja ferida que perde a entonação do seu canto, transformando seu piado em um gemido dolorido que exasperava a completude íntima da sua alma abatida em um piado de agouro.

Ficara naquele lugar por sete anos.  Fora preso por agredir a pauladas seu cliente, seu amante que contratara os seus serviços sexuais e não pagara o preço combinado.

Agrediu sim, falava em alto e bom som a todos os que perguntavam curiosos o motivo da sua entrada no complexo de cadeia de Pinheiros em São Paulo. Porém, havia mais. O crime não era só esse. Além de agredir o infeliz, roubara-lhe o celular e todo o dinheiro contido na carteira. Mas esse crime ele não gostava de lembrar e tampouco contava a alguém. O roubo mexera com sua dignidade muito mais que a sujeira da prostituição. Sua consciência não o acusava diante do ato praticado, era prostituto há muitos anos e a prática constante se encarregou de cauterizar a sua razão acerca do ato. Porém, o roubo foi diferente, sempre se orgulhara de nunca haver feito o que fez. Mas a necessidade faz o ladrão, é o que diz o ditado popular para justificar e atenuar o peso do crime.

Estava com fome! Não tinha nada para enganar seu estômago e induzi-lo a viver.  A fome o devorava um pouco por dia, levando a beleza que acreditava possuir. Sua pele tornava-se acinzentada, perdia a elasticidade, a hidratação natural, o brilho, tornando-a amarelada. Parecia possuir os estágios agressivos do diabetes, pele ressecada e nem um creme hidratante possuía para ajudar a acalmar as cinzas que se manifestavam ao menor toque.

Seus cabelos crespos, cheios, sem corte. Sobrancelhas que mais pareciam duas taturanas grudadas na fonte, zombavam dos seus olhos castanho-claros que se igualavam ao olhar fúnebre de um peixe morto.

Não tinha mais dinheiro para o aluguel e essa foi à razão que o fez morar na rua. Fora despejado com o pouco que possuía.
Arrumou umas tábuas, plásticos e duas peças de pallets que fez de cama e construiu um barraco debaixo de um viaduto. Havia outros moradores ocupando o mesmo espaço e por ser quem era, fora enxotado à beira do precipício, ao lado do córrego, onde o mau cheiro fazia-se ser sentido à distância, embrulhando o estômago de ratazanas que passavam por ali às pressas por não querer se contaminar com o asco que impregnava a tudo o que tocava. Foi ali que fez sua morada, ao lado de ratos, baratas, dejetos humanos... Ao lado da desgraça! Tornara-se vizinho da famigeração, da degeneração, da desgraça e absurdo. Nem os mendigos o queriam próximo. Eram mendigos sim, mas possuíam sua honra, seu orgulho. Eram drogados, mas não eram gays. Pelo menos eles assim pensavam. Mas na busca incansável por prazer, batiam à porta do infeliz e deitavam-se em cima das lascas de tábuas do pallets cobertas por papelão que servia de colchão para amenizar a dureza e diminuir os vincos de sulcos deixados nas costas de quem se atrevia a deitar-se sobre ela.

Deitavam-se ali com ele para consumar o amor esquecido, rejeitado, amor enojado, fétido... Ninguém em sua sã consciência se atrevia a transar com morador de rua, drogados... Com exceção de alguns desvirtuados que possuíam, assim como ele, desvio de caráter! Eram homens ricos na sua maioria, homens casados que os procuravam nas sarjetas durante as noites frias em busca de um prazer macabro, grudento, suado, sujo e malcheiroso que
alimentasse a sua fantasia doente. Fora esses, que podiam facilmente classificá-los como uma espécie à parte, nenhuma outra criatura viva que dispusesse de razão, se atreveria a baixar as suas 
vergonhas e se entregar a tal ato. Mesmo estando em situação de desonra igual ao do personagem, estes se sentiam seres superiores, melhores que o infeliz que transava com homens imundos, feios, bêbados, por um pão achado no lixo, por um sanduiche qualquer doado pelo atendente da lanchonete "Clima Dourado"! Sua situação era a mais periclitante entre os humanos e por isso, não podia se dar ao luxo de escolher a dedo os seus clientes.

A noite fria, solitária e triste fazia as lágrimas banharem seu rosto disforme. Olhara sua imagem no fundo de uma lata de leite condensado e o que viu refletido do outro lado abalara seu coração amargurado. Sempre fora um rapaz lindo, bem cuidado, vaidoso, desejado. Andava sempre com o cabelo cortado no melhor estilo do momento, suas roupas eram simples, mas bem cuidadas, passadas a ferro, sapatos e tênis limpos. Porém, a ilusão havia cegado seu entendimento sobre a vida e a sua razão, desprezou os conselhos de quem o amava verdadeiramente, seus pais, e dera ouvidos a quem o queria destruir. Achou que podia domar a vida na força bruta, que a guiaria como uma escrava submissa e a obrigaria a submeter-se às suas vontades... Mas, a vida é indomável, é ela quem domina, é regente agressiva e implacável dos infelizes humanos, é uma predadora insaciável e não perdoa quem se atreve a desafiá-la em um campo de batalha, ela respeita o guerreiro vencedor, mas zomba com desprezo dos fracassados. Ela pode ser sim vencida, mas nunca se entrega sem uma boa e renhida luta, ela procura esgotar a força, coragem e determinação de qualquer guerreiro ousado que ousar se opor aos seus desígnios. Ali estava ele e um monstro! Os dois lados de uma criação, a divina e a sua. Fora enganado por seu amigo que todas as noites lhe dava um comprimido dizendo que era vitamina e colágeno para dar mais elasticidade à pele, para deixá-lo mais lindo para os clientes com sua pele macia, linda e sedosa, quando na verdade ele tomava todos os dias sem se dar conta, de uma dose cavalar de estrogênio e outros tipos de medicamentos para bloquear a testosterona. Sem perceber, seus peitos começaram a avolumarem-se, seus quadris tornaram-se mais redondos, menos embrutecido e seu bumbum começou a se tornar mais avantajado, coxas redondas e sua voz começou a afinar.  Começou a depilar suas pernas além das suas partes íntimas e quando colocava uma roupa feminina sentia-se bem com o que via no espelho. Seus cabelos alongaram-se e estavam sempre bem penteados, cuidados com cortes bem definidos na dimensão abaixo dos ombros. Começou a se maquiar, a principio como uma brincadeira e tomou gosto pela prática. Seus olhos estavam sempre bem pintados, como Cleópatra do Egito, lábios carnudos e vermelhos, cílios bem delineados, barba bem feita para não deixar em evidência a aparição dos pelos faciais... Sempre teve um jeito mais sensível que seus irmãos, sempre sofrera bullying nas escolas recebendo apelidos de mulherzinha, viadinho, bambi e outros que denegriam a sua imagem; por isso, lutava constantemente para reprimir seus sentimentos que o agrediam de dentro para fora, como um lobo ensandecido arranhando com suas garras fortes a jaula da sua prisão, querendo se libertar. Queria provar ao mundo inteiro que não era aquilo que diziam ao seu respeito. Porém, o choque com a sua realidade atual com as visões do seu passado foi como uma pancada de um trator em seu peito flácido! Não era mais homem, também, não era uma mulher! Era outro ser, fora do contexto da criação divina. Embora fosse um ser humano em razão e alma, aquele corpo não! Deus não havia feito aquilo! Aquilo era a sua própria criação e não ficou nada bonito, havia imperfeição, um vazio inexplicável, uma busca constante sobre o que se perdeu, um arrependimento arrasador que o esmagava como o peso do mundo em sua consciência sofrida, ignorada! "Não sou eu", dizia baixinho como se estivesse tentando se convencer do óbvio! Havia se transformado na criatura monstruosa que sempre evitou. A criatura horrenda de Victor Frankenstein agora fazia parte da sua realidade.

Sua vida miserável em nada se assemelhava ao conforto do passado. Saíra de casa aos dezesseis anos quando iludido pela vida fácil e glamorosa da prostituição se enveredara em busca de aventura nas paragens da vida. Não se importara com o choro do seu pai ao descobrir sua homossexualidade. Sua mãe no auge do desespero e tristeza lhe esbofeteou a face, praguejando o dia do seu nascimento.

Fora morar com seu amigo em um quarto e cozinha na Avenida Angélica, região central da capital paulista, para viver seu sonho dourado de liberdade. Só que esqueceu que o excesso de liberdade abre as portas para a libertinagem e essa por sua vez destranca os ferrolhos que mantém o perigo aprisionado. Foi daí em diante que sua história de tristeza e infelicidade começou.

Sua mente traiçoeira o levava a passear atrás das cortinas do tempo, levando-o ao passado onde outrora era feliz e não sabia. Arrependido, lembrava-se dos tempos áureos quando, com arrogância, pisava e desprezava o que possuía, sentindo-se o ser mais infeliz da Terra. Porém, esse ser era possuidor de uma família que o amava, de um lar repleto de alegria... Era certo que havia seus momentos turbulentos de brigas e confusões, mas também havia paz, respeito e amor entre os moradores daquele recinto sagrado. Mas, embora houvesse tudo de bom em sua vida, ainda assim se sentia um miserável total, um imprestável e indesejado e lembrando o quanto fora injusto com a vida, pôs-se a chorar compulsivamente a sua ingratidão.

Ele estava diferente! Ainda continuava lindo! Seus cabelos louros castanhos cacheados com franjas sobre a sua fronte e olhos verde-claros, nariz afilado e rosto quadrado o deixava parecido com um anjo. Sim, um anjo, talvez um desses seres angelicais rebeldes que os filmes e romances os descreve para nós, com poderes imensos de nos deixar apaixonados por eles, de querer ser iguais a eles. Mas ainda assim, um anjo! Ele estava bem-vestido, com uma calça jeans escura, camisa social azul-claro e uma gravata preta que ostentava em seu fino tecido de seda, um broche dourado. Estava tenso, esguio, com a postura ereta, barba rala por fazer e um fino bigode que o deixava muito mais encantador do que costumava ser. Não esboçara nenhum sorriso. Permanecera todo o tempo com o semblante sério, sisudo e seu olhar rasgava a alma quando fitava demoradamente, como se estivesse estudando ações, sensações, sentimentos e gestos do acusado. Agora ele estava ali com o juiz que o condenaria pelas atrocidades cometidas. Sua voz perdera a doçura, não o encanto, ainda continha o poder de nos enfeitiçar quando falava. Voz grave, suave, clara, com sotaque indistinto, porém, lindo. Palavras bem articuladas, vocabulário indefinido, com palavras cultas esquecidas nos dicionários e gramáticas da vida. Era gentil, de uma educação e polidez de espírito tão grande que o gentleman aos seus pés não passaria de um mero aprendiz! 

Ele era perfeito em sua essência como criatura humana. A mais bela e perfeita, talvez! As lembranças daquela tarde de outono onde estivera em seus braços ainda estavam vivas e latentes, o tempo não conseguira apagar! Estavam vivas com cheiro, cores, sensações e tudo que um corpo cozinhando em desejo poderia oferecer. Usava uma fragrância de um perfume amadeirado que desnorteou os seus sentidos. Um perfume que mais tarde veio a saber o nome e que passou a usar também como se quisesse manter um elo de ligação eterna com aquele momento. Biografia, o perfume do encanto! Era assim que ele o chamava.

As aulas de educação física eram uma tortura a ser enfrentada todas as semanas. Sempre fora um jovem calmo e controlado e nunca em sua vida deixara-se ser controlado pela insanidade dos seus desejos. Mesmo assim, os bullyings e apelidos maldosos o machucavam e doíam muito mais quando vinham de seus supostos amigos, quando os sorrisos maliciosos de canto de boca expressavam o que sentiam ao seu respeito. Mas não o Gabriel, ele nunca participou dessas brincadeiras, nunca se envolveu em nada que o machucasse, manchasse a reputação ou agredisse o caráter do infeliz. Era o mais desejado e popular de toda a escola, era respeitado, venerado e tinha um exército de meninos e meninas aos seus pés, bajulando, desejando e se aproveitando da sua fama juvenil angelical para se autofavorecerem. Ele o olhava diferente. Havia piedade em seu olhar verde-claro. Sua pele branca assumia uma tonalidade avermelhada, principalmente nas bochechas, onde a cor se acentuava com mais intensidade. Havia uma faísca que crispava o corpo de ambos quando os olhares se cruzavam e foi em um dia desses depois das aulas de educação física que tudo aconteceu.

Sempre deixava o vestiário se esvaziar para evitar as brincadeiras de mau gosto dos outros rapazes. Só depois tomava seu banho às pressas para eliminar o suor e mal se secava, vestia suas roupas ainda com o corpo molhado e saía daquele lugar como se estivesse fugindo de uma sentença, como se estivesse fugindo da cova onde era enterrado um pouco por vez, em uma sessão infinda de maus-tratos e torturas da sua alma que o fazia chorar e até desejar a morte fatal e iminente, a morte piedosa. Mas a morte é masoquista, se apraz no sofrimento, bebe e refastela com a dor e desgraça alheia. Aquele foi o dia perfeito que ela escolhera para bebericar em goles pequenos a vergonha, a dor e sofrimento da sua vítima. Todos o chacoteavam enquanto ele, sentado em um banco, esperava o acesso ao chuveiro.

- Está pensando em que, bicha? Está a fim de ver pinto, não é?

Indagava maldosamente um dos meninos.

            - Veja o meu aqui, vem aqui fazer um carinho nele. Dizia o outro exibindo e balançando seu membro em provocação.

- Ele está fingindo que não está vendo, mas por dentro está desejando, esperando a gente sair para se masturbar pensando em nós! Foi a fala de outro que gargalhava.

- Toda bicha merece morrer! Vociferava o outro demonstrando indignação e raiva obsessiva.

- Olha aí, a mulherzinha sabe chorar! Falou o outro sem se importar com o sofrimento dele.

- Ela está chorando de raiva e frustração por não conseguir o que quer. Tantos pintos à vista e nenhum a sua disposição. Disse outro que torceu a toalha semimolhada e usando como um chicote, a fez estalar em suas costas desnuda, fazendo se contorcer de dor como uma cobra em agonia.

Foi o Gabriel que veio em seu auxílio. Voou como um titã em cima do agressor e lhe esmurrou ferozmente com a destreza de Heitor quando defendia a honra do seu irmão Páris ameaçado por Menelau, em uma guerra de força, coragem e perícia, onde o seu melhor guerreiro, Aquiles, investia debaixo da ordem do seu senhor contra o indefeso Páris.

A marca da chicoteada em suas costas deixara uma marca vermelha em relevo, mostrando a ferocidade das ações desumanas contra ele.

Todos se contiveram e alguns vieram pedir-lhe desculpas, o que no auge da raiva cega só o deixava ainda mais furioso. Foi daquele dia em diante que o desejo de se matar se instaurou em seu coração. Mas ali estava seu anjo da guarda Gabriel que veio em seu socorro. Perdera a vontade de viver, literalmente. Faltou ás aulas dias sucessivos. Saía toda tarde para ir à escola, porém, não adentrava por seus portões, ficava perambulando pelas ruas e voltava no horário de costume para que seus pais não desconfiassem que faltava às aulas. Mas o anjo veio em seu socorro. Foi na virada do crepúsculo de um sábado qualquer que o Gabriel bateu palmas em sua porta procurando por ele. Foi a sua mãe quem o atendeu. Ele se identificou como um amigo, o que deixou sua ingênua mãe feliz, pois sabia ela que seu filho estava cada dia mais arredio e que não tinha amigos, e aquela novidade o deixara extremamente feliz, dando permissão para que o mesmo entrasse em sua casa e que fosse ao quarto do seu filho onde ele se refugiava e se isolava de tudo e todos.

A surpresa do Gabriel na porta do seu quarto ainda estampava seu rosto no momento da sua lembrança. Estava tímido, sem saber o que dizer. Ficou parado na porta do seu quarto sem saber o que fazer, e ele, percebendo o desconcerto do visitante, pediu para que entrasse. Entrou, sentou-se na beirada da cama do seu mais novo e suposto amigo e quando tentava de forma acanhada interagir, fora interrompido por dona Ana, que trazia uma bandeja com sucos de maracujá e bolos de chocolate.

- Suas costas ainda estão doendo? Perguntou ele, todo solícito depois que dona Ana saiu.

- Não, não sinto mais dor nas costas. Respondeu.

- Então, por que não foi mais para as aulas? Está todo mundo preocupado com sua ausência. Justificou o visitante com a cabeça baixa.

- Todos quem? Pelo que me lembro todos sentem aversão por mim e não preocupação.

- Não é bem assim, tem gente de bom coração lá e eu conversei com os garotos e eles prometeram parar com as brincadeiras de mau gosto contra você.

- Muito obrigado, mas eu não pretendo voltar à escola nunca mais.

- E o que você vai fazer? Vai jogar sua vida fora por causa de um bando de idiotas?

- Isso mesmo, eu já planejei tudo em minha cabeça, só estou procurando um jeito de escrever uma carta para meus pais e explicar para eles o motivo de fazer o que quero!

Aquelas palavras bateram forte no peito do anjo quanto à marreta de Hefesto quando forjava em sua bigorna as armas dos deuses, e doeu fundo demais, a ponto de marejar de lágrimas seus olhos claros. Entendera perfeitamente o significado daquelas palavras, sabia o tamanho do estrago que fizeram em sua alma e estava temeroso pelo final trágico que aguardava aquele ser sofrido para dar um desfecho naquela situação.

- Você não está falando sério, está? Perguntou como se quisesse enganar a si mesmo da veracidade dura e cruel que o encarava, sabendo da verdadeira resposta.

            - Estou sim, vou acabar de vez com isso. Disse resoluto, enquanto as lágrimas saltavam dos seus olhos.

O anjo se levantou e abraçou-lhe tão forte e caloroso que lhe exprimia a respiração, aquecendo seu corpo do caos do abandono. Ambos choravam.

- Faz isso não, eu te peço. Sou eu quem está te pedindo pelo amor de Deus. Eu prometo que ninguém nunca mais fará mal a você de novo. Enquanto eu estiver vivo, ninguém irá te ferir,
garanto. Prometa-me que não fará isso!

Como não se render diante de um pedido de um anjo? Como não se render diante de um apoio, força e presença daquele mais puro ser?

Não lembrava se foi proposital ou involuntário, mas seus corpos queimavam estalando no calor que emanava do interior do desejo. Estavam excitados! Uma corrente elétrica percorria sua espinha dorsal deixando-o trêmulo, com as pernas amolecidas, garganta seca e o coração disparado. Estava envolvido no feitiço do seu perfume amadeirado, estava entregue àquele sentimento novo, estranho e devastador. Sua cabeça amolecida caíra amparada no ombro do seu amigo anjo, enquanto ele discretamente lhe afagava os cabelos negros.

- Me prometa que não cometerá essa loucura, por favor, me promete?

Estava inerte, as forças haviam desaparecido do seu corpo, haviam abandonado deixando a mercê daquele feitiço e inebriado pelo momento, sentindo seus membros viris se roçarem de forma sutil, com os sentidos perdidos no devaneio do momento, prometeu-lhe desfazer-se desse plano mirabolante. Não poderia negar sua alma e vontade ao seu salvador, seu guarda-costas, seu amigo, seu desejo secreto, seu herói.

Um beijo leve, suave e molhado com calor fora sentido no lado direito do seu pescoço, fazendo-o cambalear ao ponto de ser fortemente amparado pelos braços do seu protetor. Perdera momentaneamente os sentidos, mas ouvira perfeitamente a frase que ele disse:

- Bom menino, bom menino. Disse, enquanto acariciava seu rosto aquecido, fazendo sulcos de energia que rasgavam a pele da sua bochecha por cima da sua barba rala de adolescente, indo em direção aos seus lábios rosados, trêmulos, secos, sorvendo em um beijo leve, tímido e vertiginoso.

- Eu não sou gay. Disse, protestando, sem força para sair das chamas que o envolviam.

- Eu sei disso e também não sou. Justificou, como se quisesse se esconder da sensação do errado que o encarava com ares de reprovação a ambos.

- Tem certeza de que quer fazer isso? Perguntou, com o coração prestes a entrar em colapso, com medo de ser outra vez vítima da sua fraqueza, com medo do rechaçamento de outrora, com medo de ser o que a muito custo tentava manter aprisionado dentro de si.

- Não tenho certeza de mais nada, alguma coisa em você me faz perder a razão. Não consigo discernir o certo do errado, sou dominado pelo meu instinto que cega tudo ao meu redor e não consigo enxergar a diferença do sacro e profano. Só sei que fico pensando em você, que fico, que fico...

Parou bruscamente seu monólogo, alcançando seus lábios e se entregando a um beijo bruto, agressivo, apressado, faminto, urgente, como se necessitasse se fundir àquele corpo em busca de complemento.

Sua mãe havia saído. Estavam sozinhos e sem pensar nas consequências advindas com o ato, entregaram-se à loucura daquele momento.

Lembrava com detalhes daquele corpo jovem, perfeito, obra-prima do divino. Lembrava da textura, calor, do cheiro que impregnava em sua pele. Lembrava de tudo. Consumara o ato, entregara-se ao laico que assinou a carta de posse dos seus sentimentos, vontades, desejos e futuro. Um profano maligno que o aprisionou como escravo na sarjeta da senzala, longe do olhar da coerência. Fora o primeiro homem a possui-lo, foi quem o deixou apaixonado, perdido dentro da névoa da incompreensão. E foi como vassalo que disse sim de forma categórica ao seu aprisionamento eterno. A sua sentença de perdição! Ao seu segredo que o
considerava sacro diante da vontade do seu senhor. Queria satisfazê-lo, suprir suas vontades, desejos, independentemente do dia e da hora, sentia-se bem com sua submissão!

Não havia mais desejo em seu olhar angelical. Alguma coisa dentro dele havia mudado, como uma porta fechada que encerra dentro de si um passado tenebroso, vergonhoso e assustador. Uma porta que trancava dentro de si as irresponsabilidades de um adolescente que brincava com a inconsequência da vida, uma criança que não sabe ao certo o que quer. Não estava mais ali o anjo cordial, amoroso! Estava agora o arcanjo que desembainha a espada para agir com a força do celestial e sua caneta fez isso. Como delegado da cidade assinou com seu poder o inquérito da sua condenação.

As ruas não eram bonitas como ele imaginara dentro de sua cela, ainda lembrava perfeitamente a onde ficavam os pontos de ônibus que o levariam até a sua casa. Mas não tinha mais casa, não tinha amigos, não tinha amparo onde pudesse ficar. Não tinha emprego ou alguém para ajudá-lo. Não tinha ninguém, era um desvalido, invisível na sociedade, um infecto que todos evitavam. Não tinha um cobertor, um prato de comida para saciar a sua fome, que o devorava internamente como uma serpente-dragão em seu interior. Seu peito flácido, sinônimo do esquisito, doía pela falta do abandono, não havia alegria, festa, e, a saudade da prisão gritava para que voltasse para dentro dos seus muros que o protegeram durante sete anos, para dentro dos seus muros frios, fétidos e escuros que o proviam de comida, de uma cama dura, de um cobertor. Os muros que o permitiam que trocasse seu corpo por um creme dental para limpar seus dentes amarelados pelo uso indiscriminado de tabaco. Que fazia vistas grossas nas vezes em  que trocou seu corpo modificado por um rolo de papel higiênico, por uma carteira de cigarros, por um prato de comida, por roupa barata, sabonete, shampoo e até maquiagem. Os muros que não o consolaram quando descobriu que era soropositivo. Os muros que não intervinham quando lavava as roupas do dono do barraco em troca de proteção, quando faxinava o barraco em troca de uma noite de amor bandido. Os muros que o ignoravam, mas que o deixavam viver. Os muros que o escondiam da sociedade que zombava da sua condição, que o discriminava, que fechava as portas da sobrevivência, que fazia pouco caso da sua existência, tratando-o com menos valor que o refugo humano.

Não tinha para onde ir. Estava literalmente jogado nos braços frios do descaso!

Lembrou-se do seu velho pai ainda vivo, doente pelo diabetes.

Lembrou-se da sua mãe já falecida na amargura do seu desgosto. Dos seus dois irmãos que o desconheciam...e chorou. Chorou tudo o que fez, seu arrependimento, sua tristeza, solidão, amargura. Bateu de volta no portão da prisão pedindo guarida, acolhida! Aquele mundo não lhe pertencia, não o queria de volta, não era mais dele. Batia com força pedindo que o aceitasse de volta. Em suas mãos uma sacola de mercado com os mimos que ganhara dos seus donos, amantes, senhores, cafetões. Vestia uma calça que ganhara do agente que o procurava de vez em quando para saciar seus desejos fremis. Não tinha maquiagem, calçava uma sandália havaiana gasta, uma camiseta branca puída e um coque no final da cabeça que prendia seus cabelos desgrenhados. Não se sentia como um ser humano sentia-se diferente, como um ser alienígena em um mundo que não era seu. Seu mundo estava ali atrás,
trancado por pesados portões de ferro maciços e muros brutos, desnudos de gentileza, pinturas que o embelezasse. Muros pichados com palavrões desconexos em letras agarrunchadas que poucos entendiam. Pedia com lágrimas em seus olhos afundados em suas órbitas que o deixasse entrar, mas foi expulso por ameaças e gritos dos soldados sentinelas que miravam seus rifles de cima do muro em suas guaritas. Tinha que sair dali, porém não tinha para onde ir, seu passado o condenou! Sabia que as ruas não o queriam. Precisava viver ou morrer e a segunda opção sorria satisfeita para ele como uma mãe amorosa que abre os braços para alcançar o filho a quem ama. Adormeceu sentado nas escadarias 
da igreja da Praça da Sé, fora em busca de auxílio de Deus, mas Ele não estava lá, nem o deixaram entrar em sua casa para conferir, foi expulso da casa do único ser que poderia lhe acolher. Não estava sujo e nem fétido, mas seu cheiro de transformado causava repulsa até nos homens santos da casa de Deus.

Alguém com um carro ofereceu sopa com pão à noite para os moradores de rua que faziam fila para pegar a benevolência alheia. Entrou na fila e alguém lhe entregou um pão francês e um marmitex de sopa quente, sem sequer olhar em seus olhos, era uma caridade mecânica que vestia as roupas da benevolência, uma caridade forçada que mais se assemelhava a uma obrigação, a um dever que não lhe deu uma colher, teve que bebericar em pequenos goles, enquanto assoprava para esfriar o caldo leguminoso. Ao seu lado um cachorro magricelo que se coçava a todo o tempo encarava-lhe com olhar pidão, um cachorro que não tinha nojo dele, um animal sarnento, sujo, fétido, ferido e doente que o via como ser humano. Dividiu sua comida com o cão, que a devorou alegre e faminto.

Acordou e percebeu que sua sacola de pertences havia sumido, fora roubado. O cão não estava ao seu lado, havia partido também, havia abandonado como todos fizeram e mais uma vez chorou. Porém, em seu bolso dianteiro uma pequena sacola amarrava um batom, um pote compacto de pó e um toco de lápis de olho já gasto. A ideia surgiu em sua mente confusa, pintou-se olhando o espelho d’água da fonte imunda da praça, ficando mais feio e grotesco do que era! Ficara na transição do palhaço e espantalho! Soltou os cabelos crespos para imitar as perucas dos palhaços e ficou irreconhecível. Foi para o farol pedir esmolas e o primeiro carro que baixou o vidro para esmolar-lhe com umas moedas de baixo valor foi ele! Mais uma vez seu anjo aparecia. Estava acompanhado de uma linda criança sentada em uma cadeirinha no banco de trás, uma criança linda e perfeita como ele. Entregou-lhe as moedas e quando ele agradeceu, seu anjo o reconheceu e gritou o seu nome:

- Paulo, é você? A pergunta saiu com assombro.

- Não sei qual Paulo procura senhor, mas não sou eu. Respondeu.

- É você sim Paulo, é você sim! Disse categórico, confiante.

- Vamos conversar, eu posso te ajudar. Insistiu, parando o carro mais à frente e voltando com o filho no colo.

- Lamento senhor, mas não sou a pessoa que procura, espero que o encontre. Disse enquanto as lágrimas rolavam dos seus olhos, mantendo a sua cabeça baixa.

- Se você não é o Paulo, então quem é você, pode me falar, por favor?  Quis saber.

- Sou simplesmente um corpo sem alma e nada mais.

Respondeu e saiu correndo por entre os carros, sendo atropelado por um deles. Ouvira pela última vez alguém gritar seu nome desconhecido, esquecido, enquanto a luz dos seus olhos apagava-se. E assim morreu. Morreu desamparado, sozinho ao lado do seu anjo que não o protegeu como prometera. Ao lado do seu anjo que se esquecera de cumprir suas promessas, de fazer o seu papel de protetor, de guardião. O seu anjo que o usou e jogou fora. Morreu com as moedas em sua mão direita para pagar ao barqueiro Caronte, valor mais que suficiente para fazer a travessia do rio Estige, rumo ao inferno, descanso final dos infelizes.

Walldyr Philho

Poeta/Escritor 



 


O POETA NUNCA ESTARÁ SOZINHO!

Por Marcelo de Oliveira Souza, IWA (Salvador, BA)

 

Uma abelha sozinha a voar

Longe do seu cantinho, seu lar

Pousa devagarinho

Néctar sugar,

Nesse pergaminho

Sigo meu caminho

A abraçar.

Ninguém sozinho

Está sozinho,

Nesse mundo em desalinho,

Tendo a arte de rimar...

Pessoas passam de fininho

Ninguém vai notar,

Seio rachado lá no ninho

Cada um em seu lugar.

A união não se faz reinar

Quando junto estás sozinho

Procurando onde está,

Deslizo o dedinho

Para as letras não atrapalhar,

No fim do dia ainda sozinho

Posto isso tudinho

Para depois da oração

Irmos nos deitar.

 


LUEN: NA COMPLETA ESCURIDÃO

Por Samuel da Costa (Itajaí, SC)  

 

Tudo é arte, ciclos e fases,           

Seja um bom ouvinte e ouça: Tudo é amor!             

Fabiane Braga Lima     

 

        Alika, não sabia o que dizer, nem o que fazer, paralisada ela passou a prestar atenção, na figura abissal, que emanava poder, na frente a uma distância segura dela. Luen era uma figura distante e misteriosa, até então, sempre envolta nas altas esferas do poder sócio, político e econômico. Se de um lado, a primeira secretária, da câmara alta, trabalhava com a porta aberta, sozinha e em completo silêncio, do outro, por questões óbvias, fechava a porta, quando recebia, figuras proeminentes e importantes, famosas e anônimas. Não raro com seguranças no lado de fora. Alika, raramente ouvia a voz, da superiora e quando ouvia era em línguas estrangeiras, quando estava ao telefone ou em vídeos chamadas. 

          — Alika, passe a agenda do dia! — Falou impávida a primeira secretária da câmara alta.                  

         — Senhora? Eu? — Respondeu a segunda recepcionista do gabinete do secretariado da câmara alta.

       — Estás vendo mais alguém por aqui? — Disse Luen, olhando com os olhos castanhos e rasgados. Luen em marchar foi até a mesa de Evelyn, ela pegou uma agenda encadernada de couro, se voltou para Alika e jogou a agenda, ela pegou o objeto no ar com mestria — Vamos trabalhar, é vida que segue anjo negro — Sentenciou Luen bem alto, com se tentasse se convencer.           

       Luen se virou e partiu para o gabinete do primeiro secretariado, a porta se abriu automaticamente e não se fechou, levou alguns segundos até Alika se recompor, se levantar e praticamente correr atrás da chefe. Alika, estava entusiasmada, pois nunca tinha entrado no gabinete da primeira secretária antes, pois a função de passar a agenda do dia para Luen, era de Evelyn.          Geralmente, era agende pública, eventos e entregas de outorgas, títulos honoríficos e questões burocráticas afins. Luen recebia a agente do dia, via mensagens eletrônicas, geralmente despachos menores que ficavam para Evelyn repassar assim que chegasse no gabinete. As questões mais reservadas, ficava ao encargo do chefe de gabinete do primeiro secretariado. Mas, por questões protocolares, a agenda do dia, deveria ser repassada oralmente por assessores para o ocupante do primeiro secretariado da câmara alta. Que apesar do nome pomposo, primeiro secretariado da câmara alta, tem a função de relações públicas e o dia a dia da pequena burocracia da câmara alta, do que questões administrativas e políticas mais elevadas.                  

         Ao adentrar no gabinete do primeiro secretariado, Alika viu Yuri, o chefe de gabinete de Luen, ele estava ao lado da mesa de Luen, ele bem alinhado com o seu terno azul escuro feito sobre medida, gravata vermelha, sapatos lustrosos e com um tablet na mão. Luen sentada, ouvia o chefe de gabinete, repassar a agenda do dia para Luen, eram assuntos relevantes vindos da câmara baixa e da presidência da república e de diversas embaixadas e variados consulados. Yuri olhou para Alika, com seus olhos verdes frios, ele não transparecendo qualquer incômodo ao notar a presença do corpo estranho, quebrando os muitos protocolos da câmara alta.               

        — Camarada Yuri, te apresento a minha nova primeira secretária, olha só, a primeira secretária da primeira da primeira secretária! — Falou Luen, enquanto lia e assinava os despachos.       

        — Acordou de bom humor hoje camarada Luen? — Disse gélido, o chefe de gabinete.

        — Ataque soviético, camarada, ataque soviético! — Respondeu Luen, em russo, sem parar de trabalhar! E depois de alguns minutos Luen prosseguiu — Só? Algo fora da agenda Viktor, o que temos para hoje?       

        — Viktor? Estás mesmo de bom humor camarada primeira secretária, tem sim, quando a camarada Luen, irá devolver os livros da minha amada mãe? — Respondeu Yuri, também em russo e com bom humor atípico para um descendente dos Montes Urais.                   

        — Não fazem mais camaradas comunistas, como antigamente, quando Valentina devolver as matrioskas, que dei para ela, eu devolverei os livros que ela me presenteou. — Falou Luen em russo.           

         Ambos riram alto, Yuri levou a mão até a mesa de Luen, pegou os papéis assinados e partiu, andou em direção a gabinete anexo ao de Luen, estava abrindo a porta, quando voltou e disse em russo: — Quando partires sentirei saudades minha boa amiga. — Passou pela porta e foi tragado pela escuridão.

            — A primeira secretária fala russo? — Perguntou Alika e se arrependendo depois.          

            — A agenda? O que temos para hoje? — Perguntou a primeira secretária mecanicamente.

           Alika abriu a agenda e passou a agenda pública, da primeira secretária e da câmara alta, afastamentos por licenças médicas, promoções, férias, licenças prêmios, eventos cancelados, confirmados e despachos burocráticas vindos dos departamentos de manutenção e do serviço de segurança. Luen assinou um por um, de forma lenta e sonolenta.                      

       — Agora somos nós duas! — Disse Luen de forma mecânica, como se fosse uma outra pessoa.                      

Alika não soube e nem tinha como saber, mas as câmeras de vigilância foram desativadas, assim como os aparelhos de escuta, secretamente instaladas no gabinete de Luen. As vigilâncias oficiais e secretas ficaram às cegas, naquele exato momento.                  

         O que ficou evidente para Alika, foi parar de escutar o tique taque do relógio suíço cuco, do século XVIII e perceber a semiescuridão, tomar conta do gabinete. Alika sentiu gélidas mãos a percorrer-lhe o corpo inteiro, assim como melodiosos sussurros sedutores, em uma língua estranha para ela. Alika fechou os olhos negros e abriu em uma piscadela, notando que não era Luen na frente dela, os olhos amarelos em chamas, um sorriso ebúrneo, uma pele alva de albina e vestes brancas. A estranha mulher flutuou de forma lenta para perto de Alika, enquanto ela estava paralisada. A mulher afro-albina, exalava os olores de matinais flores frescas, misturado com cheiro de sangue coagulado e carne putrefata. A mulher ergueu um punhal egípcio cruz ansata de ouro, e em um golpe rápido, a lâmina afiada cortou a carótida de Alika, ela sentiu o jorrar sangue quente a percorrer o seu próprio corpo e um grito estridente de horror, que não saiu da mente de Alika.                 

        — Alika... Alika...? — Disse Luen, estando os dedos na frente de Alika! Ela ofereceu um cigarro mentolado a descendente de norte-africanos! Tonta, a então segunda secretária de Luen, a confusa Alika, aceitou a oferta de Luen e, notou uma garrafa de uísque escocês, uma marca artesanal e importada, na mesa e dois copos. Luen, sorrindo, sacou um isqueiro de prata Cartier antigo. Em meio à confusão mental, Alika calculou que eram presentes de autoridades estrangeiras.

         — Assustada meu venerado anjo negro? Hoje é dia de quebrar os protocolos, minha querida! — Disse Luen trazendo para si a outra que estava na frente dela.


Fragmento do livro Sono Paradoxal, de Samuel da Costa, poeta, contista e novelista em Itajaí, Santa Catarina.    

Contato: samueldeitajai@yahoo.com.br