terça-feira, 1 de novembro de 2022

DOLORES

Por Paccelli José Maracci Zahler (Brasília, DF)

 

Nossa surdez sobre a beleza,

Marfim claro em um sorriso doce

Rotação ininterrupta como um relógio,

como o dia...

Uma realização perfeita

em rosa, vermelho e branco,

Saudades, tremores, febres...

Emoção tiranizando a alma...

Coração, palpitação, amor,

Marcas em minha vida,

Razão da minha dor.

O COLORIR DE UMA FLOR

Por Leandro Bertoldo Silva (Padre Paraíso, MG)

 

Levantou-se cedo. Enquanto a água fervia para o café, se arrumou e verificou se estava tudo certo com o material da escola. Era o seu primeiro dia de aula e não tinha a menor ideia do que encontraria, principalmente após a recomendação da diretora dias antes: “Não vá puxar muito dos alunos, professor. Eles não estão acostumados. Além dos mais, estamos no interior…”.

 

O fato de ter vindo da capital nunca fora para Isidoro preceito de ser diferente. E daí estar no interior? Muito estranho. Mas lá foi Isidoro com uma diferença, sim, ao menos estrutural. Ele não tinha uma pasta ou bolsa, como os outros professores; ao contrário, ele tinha uma mala repleta de livros e carregava às costas um violão. E foi assim que adentrou pela primeira vez aquele portão escuro como o novo professor de Português.

 

Embora e escola estivesse toda pintada e com panos esticados em formato de grandes triângulos em tons diferentes, a falta de cor era evidente, não uma cor física, mas uma cor de alma, de falta de sorrisos reforçada pelo cinza do piso o qual gritava aos seus olhos. Sempre pensou: “As escolas nunca deveriam ser cinza, nem mesmo onde pisamos.” No entanto, estava ele ali em meio a uma a esperar pacientemente o seu momento de conhecer os alunos.

 

Feitas as apresentações, os alunos foram para as suas salas desanimados e desbotados, enquanto os professores, em desmaio de cores a reclamarem do fim das férias, foram pegar os seus pincéis. Isidoro não precisava deles, a não ser para pintar o chão, onde um rolo seria mais adequado.

 

Nem pinceis e nem rolo. Adivinhou-se na entrada de cada turma o que Isidoro trazia de novidade. No lugar do “bom-dia, vamos sentar nos seus lugares”, o novato professor sentava-se em cima das carteiras junto aos alunos, ou no chão os convidando a fazerem o mesmo, sacando o violão e contando-lhes histórias.

 

Os dias foram passando e o professor seguiu a sua tentativa de colorir a escola. Entendia agora o porquê em tempos meninos, ainda no jardim da infância, quando seus pais perguntavam o que ele havia feito, ele respondia: “Eu só coloro”. Essa sempre foi a sua missão, ainda mais do que ensinar as próprias letras.

 

Porém, o empreendimento era árduo. Não contava com os outros professores e muitos alunos não compreendiam nem o vermelho, nem o azul ou qualquer outra cor de suas palavras. Sentia-se na superfície, não havia profundidades. Lembrou-se da sentença da diretora ao recomendá-lo cautelas. Estaria ela com a razão?

 

Isidoro foi para casa. Pensativo. Queria tanto colorir se não a escola, ao menos o coração daquelas crianças e jovens! Em sua biblioteca buscava nos livros a cor perfeita a salvar do desbotamento contagiante aqueles que se acinzentavam.  De repente seus olhos pousaram em um pequeno livro de capa preta, sem atrativos e muito sem graça em meio a tantos outros volumosos. No título lia-se: “O coração escuta pela boca”, de Silvana de Menezes. Tratava-se da biografia romanceada de Freud. Será?… Nunca acreditou em julgar um livro pela capa. Pegou-o e o guardou em sua mala. No dia seguinte o apresentaria para os alunos na berma de um pensamento: “as pessoas são como os livros; algumas serão tocadas, lidas e descobertas enquanto outras permanecerão fechadas”.

 

Tal pensamento se refletiu na realidade quando, em meio a vários alunos e alunas, Isidoro viu brilhar um amarelo diferente, um ponto de luz nos olhos de uma menina. Nenhum livro havia conseguido tal feito. E fora justamente aquele de capa preta a ganhar variedades de belezas como um caleidoscópio a fazer nascer alguns anos mais tarde uma profissão.

 

A menina, miúda ainda de idade, cresceu com o passar dos anos, os mesmos anos que fizeram Isidoro não estar mais naquela escola, pois o tempo não havia colorido os seus despropósitos.

 

Sentado junto à janela a olhar uma flor prestes a abrir em seu jardim, ouve um toque de mensagem em seu telefone:

 

“Oi, professor, tudo bem? Hoje é o lançamento do meu trabalho, do meu projeto como psicóloga e eu postei um vídeo explicando o motivo de ter escolhido a psicologia. Obviamente você fez parte disso, fez parte lá das raízes até as folhas e as flores dessa árvore linda que eu construí. E não tem como falar desse projeto sem me lembrar de você. Foi por causa do livro que você passou, “O coração escuta pela boca”, que esse amor nasceu em meu coração. Estou te mandando essa mensagem para te agradecer. Essa vitória não é só minha, essa vitória é nossa. Muito obrigada mesmo por ter feito parte disso”.

 

Ao escutar a mensagem e com os olhos marejados, viu que a flor, em um colorido intenso e cintilante, acabara de se abrir.

 

*A mensagem descrita acima é real e dedico essa história à Fabiene Lemos, antes uma aluna, hoje uma amiga.


O PINTOR DA RIA

 

Por Humberto Pinho da Silva (Porto, Portugal)

 

 

Conheci-o no matutino: “ O Primeiro de Janeiro”. Mais tarde, tive oportunidade e o prazer, de o visitar, na sua casa, no Porto, onde apreciei magníficos quadros, e assisti, encantado, às derradeiras pinceladas de aguarela, que representava interessante e curioso rincão da Ria de Aveiro

Daniel Constant, era pintor, mas era, igualmente: jornalista notável e cronista excepcional.

Ganhou celebridade e tornou-se conhecido, por ter usado técnica peculiar e inimitável, que lhe permitia fazer aguarelas magníficas.

Seus lírios, apesar de serem apenas aguadas, disformes e esfumadas, tinham vida, e beleza invulgar, que os tornavam inconfundíveis.

Aprendera a técnica com artistas japoneses, que lhe permitia obter a humidificação do papel, durante o tempo necessário para ultimar a aguarela.

No pincel, apenas existia a tinta, tal qual saia da bisnaga; a água estava no papel, que ficava de molho a noite inteira, mergulhado numa solução, cuja formula nunca me revelou.

Numa tarde quente de Maio, teve a amabilidade de me receber, na sua bela residência. Na ocasião, interroguei-o: -” Por que não expõe no estrangeiro?!; em Paris, por exemplo, como fizeram, e ainda fazem, os artistas de nomeada?!”

Encarou-me de frente, sorrindo, e respondeu-me deste jeito: - “ Se fosse mais jovem, talvez; agora: não! Os quadros vendem-se facilmente e por bom preço, mesmo sem sair da minha cidade…”

Nasceu o artista, em Matosinhos, no ano de 1907; mas desde os seis anos, conviveu com a Ria, por ter vivido em S. Jacinto. Dai a paixão pela Ria e pelos barcos moliceiros.

Em 11 de Junho de 1992, foi homenageado pela Câmara Municipal de Ovar. Informaram-no que seria atribuído, o seu nome, a rua da cidade.

Daniel Constant, viveu no Porto, na Rua do Bolhão, na companhia da esposa, a Senhora D. Adelina Conceição Ludovico Constant.

Como a mulher era algarvia, passava o tempo de férias, junto do Promontório de Sagres, onde possuía casa.

Com ele iam as sobrinhas. - O aguarelista gostava de se divertir com as crianças: contava-lhes histórias e jogavam jogos tradicionais.

Diante do mar azul e imenso: pintava, pescava e passeava, com a mulher. Deste modo decorriam, de jeito simples, as férias algarvias.

Como jornalista do periódico: “ O Primeiro de Janeiro”, foi encarregado, durante anos, da secção: “ Turismo & Gastronomia”.

Era excelente cozinheiro e autor de vários livros de culinária. Chegou a cozinhar, na residência de amigo, saboroso almoço, para o Senhor D. Duarte, pai do actual Duque de Bragança.

Normalmente exponha, periodicamente, na cidade do Porto; em regra, na galeria do jornal onde trabalhava.

As aguarelas, de rara beleza, “ voavam” em poucos dias; e eram disputadíssimas pelos mais conhecidos coleccionadores de Arte.

Os temas retratados eram quase sempre: flores, Aveiro e a formosa Ria. Ricos em cambiantes, largas pinceladas, de luminosidade fascinante, que a todos encantava.

O MEU MENINO JESUS

 

Por Humberto Pinho da Silva (Porto, Portugal)

 

 

Não sei se alguma vez vos falei do meu Menino Jesus.

É uma bonita imagem de madeira, com pouco mais de quarenta e cinco centímetros de altura, sobre peanha lavrada e doirejada; perfeitíssimo, como se fosse de carne e osso. Tem muito que contar esse Menino. História, que passou e passa, quase como lenda, se geração a geração.

Os ancestrais asseveravam que havia há muito e muitos anos, no remoto século XIX, em Viseu ou Gonçalo, menina, filha de agricultores abastados, que certo dia morreu de amores por moço da quinta dos pais.

O namoro foi tão adiante, que resolveram casar. Mas como? Se os pais da menina nem sequer queriam sonhar de tal enlace?

Numa noite fria e escura, pela calada, acordaram fugir. Rapto? Não: porque a menina, perdida de amores, levada pela paixão, (dizem) tudo planeara.

Para não serem descobertos, assentaram vir para o Porto, cidade grande e a muitas léguas da Beira-Alta.

Ficaram em Vila Nova de Gaia. Onde? Ainda a tradição, indica: a Rua dos Ferradores.

Mas, a menina, caiu em grande tristeza, numa aflitiva angustia. Não por se ter arrependido, mas porque lhe faltava o seu Menino Jesus, que tanto amava.

Como a melancolia fosse tão adiante a ponto de a menina adoecer, o marido, (dizem que se matrimoniaram, em segredo, na igreja de Santa Marinha,) foi em demanda do Menino.

Já na Beira açodou-se falar com amigo de confiança e traçou cuidadosamente o estratagema:

Os senhores da quinta, costumavam ceder a imagem para velório de criancinhas.

Mandou-lhes mulher, já entrada em anos, traja de luto cerrado, bater ao portão da quinta, solicitando, o obséquio de emprestarem o Menino, para enterro de anjinho, que falecera numa aldeia da cercania.

Obtido o almejado Menino, foi pressuroso levá-Lo ao santeiro de Viseu, com ordem de fazer imagem, em madeira, igualzinha, o mais rapidamente possível.

Ficou tão semelhante, que mal se conseguia distinguir do original.

De regresso a casa, apresentou-o à mulher, que o reaprendeu asperamente:

- "Não quero!...Não quero!... Por que o roubaste? Leva-o... e entrega-o aos meus pais..."

Mas logo o marido, todo risonho, explicou-lhe carinhosamente:

- "Não é o mesmo. É cópia, feita pelo santeiro de Viseu!..."

E o Menino foi passando, ao longo dos anos, de geração a geração, até chegar a mim.

Se a história, for verdadeira, como acredito, é provável que algures, no distrito de Viseu, exista um Menino, igualzinho ao meu...

Quem sabe?

TRANSPOR[-ME]


Por Tiago Martins Koeler (Brasília, DF)



 

HAIKAIS

Por Elias Dourado (Brasília, DF)



 

POESIA DA ALMA

Por Marcelo de Oliveira Souza, IWA (Salvador, BA)

 

A música é poesia da alma

Letras combinadas

Que acalma,

Vai entrando no âmago do ser

Tudo para a gente se reconhecer.

 

Entramos em um grande transe

A música na nossa palma

Alegra e entristece

A música,

Todo mundo conhece.

 

Alguns esquecem

Que música é poesia

De noite e de dia

A música vai fazendo parte

Da nossa arte.

 

A música e a poesia

Parceria todo dia

Que enriquece a nossa alma

Que  nos acalma.

 

A música também dá inspiração

A poesia que vira canção

A canção que vira poesia

E no final das contas

No final do dia

A música que é literatura

Faz toda nossa alegria

Virando a derradeira canção.

ARTE-VIVA NO PALCO DA VIDA

Por Clarisse Cristal (Balneário Camboriú, SC)

Para a atriz Sabrina Vianna

 

‘’Intenso!!! Qualquer dia desses

Eu vou fazer outra página mais suave’’

Fabiane Braga Lima

 

Eu não existo por inteiro

Pois ao final da tarde

Quando agonizar o arrebol

Vou pôr os meus fadigados

Pés descalços

Nas areias mornas da praia

Não como uma veranista acidental

E sim como uma naufraga desterrada

Perdida e desesperada

A quem fez injurias aos reis e rainhas

No velho mundo

***

Eu não quero existir por inteiro

Ao final na tarde

Vou ficar diante do Atlântico

E imaginar que estou no teatro mágico

Com os olhos semicerrados

Pelas luzes da ribalta  

Ouvindo o colossal zinido dos aplausos

Que vem da plateia  

Talvez Henrik Ibsen,

Talvez o pato selvagem

Quem sabe

***

Já desisti de existir por inteiro 

Ao final da tarde

Vou fazer o que nunca fiz

Pelo menos na vida adulta

Vou caminhar lentamente

 Pela orla do oceano outonal  

Como uma anti-artista qualquer

Que se mistura a plebe

Ao final da tarde

 

Clarisse Cristal é poetisa e bibliotecária em Balneário Camboriú, SC.

AFINAL, QUEM É BRIAN?

Por Fabiane Braga Lima (Rio Claro, SP)

 

  Jane cansada se atirou na cama, adormeceu assim que chegou em casa depois da ida para a praia com Brian e ao acordar cedo em casa no dia seguinte, levantou da cama, partiu para a cozinha, comeu algo. Voltou para o quarto e trocou de roupas, se maquiou, penteou, se dirigiu para a sala de estar, se sentou no sofá e ali ficou à espera de Brian. Ele se comprometeu em busca-la para juntos irem ao trabalho.

 — Jane! Vamos embora garota! — Na porta intempestivo disse Brian, acordando Jane de um sono profundo. Jane se levantou e a passos lentos seguiu Brian, que já estava na rua dentro do carro impaciente esperava de Jane.

  Aborrecida com toda aquela situação embaraçosa, ela entrou no carro esportivo de Brian, Jane estava exausta e muda, para ela as coisas entre eles pareciam ter perdido o sentido. Brian conseguiu mexer com sua psique.

Então, daquele dia em diante Jane decidiu voltar a sua vida rotineira, mesmo não sabendo como as coisas se dariam. Ela não sabia como iriam ser as coisas de fato, no trabalho principalmente. Afinal de contas, Brian era seu chefe e dono da empresa de vendas e aluguel de carros onde ela trabalhava. Jane estava se sentindo extremamente abalada emocionalmente e fisicamente, pois ficar desempregada não era uma opção naquele momento.

— Como estás Jane, não me disse um bom dia ainda, muito estranho, estás doente meu amor? — Disse Brian assim que estavam no trabalho, na sala de Brian. Jane ficou muda no carro e ao adentrarem na concessionária também não falou coisa alguma.  

 — Por que não me falou que iríamos para uma praia era de nudismo? Eu nunca havia frequentado uma praia deste tipo na vida. — Jane despejou quando eles estavam sozinhos no escritório de Brian.              

 — Não se faça de santa, Jane, meu amor, não se lembra? Como foi fácil para você tirar as roupas pra mim?

  — Não! Estás mentindo... — Ela não terminou de falar, pois não queria mentir para Brian e nem para si mesma. Jane correu até o banheiro e ficou por lá por um bom tempo chorando.

Realmente, Brian brincava com sua psique, aceitava, pois Jane pensava que estava amando Brian e sabia como ele tratava as mulheres que entravam e saiam da vida dele. Afinal, quem era aquele homem, que até há pouco, parecia ama-la perdidamente e depois procurava destruí-la!?

       

Fabiane Braga Lima é contista e novelista em Rio Claro, São Paulo.

Contato: bragalimafabiane@gmail.com

 

ÓPERA MUNDI (MODERNA ARTE, MODERNO AMOR)

Por Samuel da Costa (Itajaí, SC)

 

‘’Em algum lugar, em algum momento vai aparecer alguém

Que tenha orgulho de estar ao seu lado,

Em todos os momentos de sua vida vai querer estar ao seu lado,

Do jeitinho que tu és...’’

Fabiane Braga Lima

                                                                          

           O que se convencionou chamar de Beco do Brooklyn, na verdade era um breve trecho, de uma pequena cidade praiana e turística, com vícios das grandes metrópoles.

         São duas ruas pequenas paralelas, que vão se encontrar em outra pequena rua. Os muros altos sem janelas das casas, prédios e galpões dão um ar de impessoalidade carcerária ao lugar, as calçadas precárias e camadas asfálticas esburacadas das ruas completam a decadência do conjunto da obra. A Iluminação precária das vielas favorece a malta perdida que por ali passa, fica pouco tempo e vai embora, coisas bem comuns nas grandes e médias cidades apopléticas.             

        Ao final do Beco do Brooklyn, existem três prédios, um estacionamento privativo e uma galeria subjacente no primeiro piso de um dos prédios. A galeria ligava o conjunto de vielas a outra viela emparedada pelos outros dois prédios. Esta viela liga as outras vielas a uma movimentada e aprazível avenida movimentada à beira mar. Segundo as páginas dos jornais locais dão conta que o prédio, que abrigava a galeria, existia ali  vendas de serviços para diversão adulta.  

            Na galeria do Beco do Brooklyn existiam três comércios apenas, uma loja de produtos esportivos, especializada em esqueite e seus derivados, uma lanchonete frequentada por jovens e um pianos bar.

       O pianos bar elegantemente decorado, de propriedade de um senhor de meia idade era uma ponte entre mundos, a priori turistas acidentais e poucos frequentadores locais.

       Para o desgosto do senhor oriental de meia idade. O refinado bar logo depois de inaugurado, recebeu uma enxurrada de gente praiana, os locais, a maioria ligados ao mundo das belas-artes e belas-letras. Eram poetisas e poetas malditos, atrizes, atores, pintoras e pintores, radialistas, escritoras e escritores obscuros, jornalistas e articulistas de jornais locais, editores de livros, de jornais e de revistas culturais, músicos variados, livreiros independentes, ilustradores freelancers, reconhecidos e renomados professoras e professores universitários e pensadores rebeldes. E toda a malta de pequenos funcionários públicos, pequenos burocratas e tecnocratas, pequenos corretores de imóveis e toda a sorte da raia miúda e imperceptível pela grande burguesia.  

      A revelia do dono do pianos bar, uma série de lançamentos de livros, de discos, revistas literárias alternativas, saraus, declamações, leitura de textos variados e exposições de fotografias. E fervorosos debates, palestras e contendas de ideias e correntes estéticas de toda ordem e permeados de discussões acaloradas pelos vapores e sabores do etílicos.

       Pintores e pintoras de variadas matizes, escolas e tendências estéticas, eles e elas simplesmente trouxeram as suas paletas de madeira de tintas e seus pincéis e começaram a trabalhar. O senhor oriental atônito e paciente esperou simplesmente a horda ir embora, mas simplesmente não foram embora.

        Uma noite, uma misteriosa e bela jovem oriental aparece no pianos bar. Quieta, bebericava saque e sempre com trajes orientais com seu leque vermelho, que iam e vinham pelo ar e às vezes cobria o belo rosto e encobria seu sorriso tímido.

        Um tempo depois e uma nevoenta fria noite de outono, ela simplesmente sentou no assento do pianista e começou a dedilhar com maestria. Depois começou a atender pedidos aleatórios vindos da plateia, que estava alta pelos sabores e vapores de gins tônicas, coquetéis, vodcas geladas, uísques, vinhos e cervejas afins.

       Na noite seguinte a misteriosa oriental usava um ocidental vestida preto e reluzente de melindrosa, com direito a uma pena na cabeça. Ela toda feliz, retomou o seu posto no piano de cauda, ocupou de forma triunfal. Maria Madalena, Madalena e Madá, se misturam os nomes entre silvos, brados e gritos vindo da plateia a plenos pulmões.

       Nessa vez a moça ignorou completamente a plateia e começou a tocar e cantar músicas românticas obscuras. Os aplausos vindo de todos os lugares inundaram o ambiente. E ecoaram pela galeria, chegaram à beira mar e às escuras ruas do Beco do Brooklyn.

       Quando a noite terminava e o pianos bar baixava as suas portas, invariavelmente vinha a efusão completa, uns tomavam o rumo das camadas obscuras e mal iluminadas do Beco do Brooklyn. Como sátiros e bacantes iam buscar efêmeros prazeres carnais no Tártaro, outros iam rumavam aos alturas do prédio com seu comércio luxuriante, para sagra Afrodite, Eros e Vênus.

        Madalena começou a brilhar naquele recanto obscuro e de liberdades e prazeres. Entre uma noite e outra, ela era a musa, a atriz, a cantora, a musicista clássica e popular, a declamadora, a oradora, a poetisa e a pintora. Ela era o centro de todas as atenções de uma audiência voraz.

        Juras de amor etéreo e carnal para ela eram contadas e cantados em versos e prosas. Os perfeitos misteriosos e angelicais contornos orientais de Madalena eram retratados e expostos em quadros vívidos.

         Contudo Madalena era uma completa desconhecida, dela nada se sabia de fato, para além de rumores sussurrados entredentes em veladas vozes baixas. Nem onde e aonde vivia, com quem vivia, ou como vivia a dama misteriosa, a flor oriente. Eram segredos velados, revelados e sussurrados aqui e ali ao pé do ouvido.

          Ela era a exilada filha bastarda, de um rico empresário português de Macau, ela era uma protegida amante secreta, de um político muito poderoso da região, ela era uma prostituta cara, a ex-mulher que caiu em desgraça de um rígido militar de alta patente de um país perdido, no sudeste asiático e que era uma rica dona de um bordel frequentado por poucos escolhidos.

       A musa oriental, por vez ou outra beija um pretendente apaixonado, também beijava mulheres aleatórias aqui e ali. Mas não passava disso, além de nunca aceitava convites, presentes ou que lhe pagassem as contas do que consumia no pianos bar.

        As únicas pessoas conhecidas, que experimentaram, ou davam a entender, que conheciam a intimidade da musa Madalena eram as conhecidas exclusivas garotas de programa Agnes e Cigana. As três invariavelmente chegavam juntas e invariavelmente iam embora juntas no Pianos bar. Bebiam  justas, se beijavam e se confraternizavam como se fossem irmãs, na vida e de alma.   

Samuel da Costa é contista e funcionário público em Itajaí, Santa Catarina.

Contato: samueldeitajai@yahoo.com.br

 

BRIAN, PRIMEIRA PARTE

Por Fabiane Braga Lima (Rio Claro, SP)

 

Começo de semana e de repente, tem o meu reencontro com Brian pelos corredores, os nossos horários eram diferentes, eu sempre chegava mais cedo no trabalho. Para mim não é nada fácil, estou perdidamente apaixonada por Brian. E como não bastasse o meu drama, vê-lo sempre rodeado por mulheres lindas e interesseiras não é fácil.

Brian é um empresário dinâmico, muito interessante e também é um rico dono de uma grande concessionária de carros e motocicletas, que explora desde as linhas veículos mais populares e de luxo, esportivos e utilitários. 

         Novamente, meu coração acelerou e lá estava ele, elegante sentado em seu escritório compenetrado trabalhando. Bom, ele estava escrevendo no computador, pensei que iria passar rápido para ele não me ver. Então, fui trabalhar, chega desta história de menininha apaixonada.

    — Ei, Sara, por que não me cumprimentou? — Falou alto ao me ver passar apressada na frente da sala dele! A voz dele chegou em mim a poucos passos da porta de Brian. Dei uns passos para trás e tive que encarar o meu chefe e o meu destino.

    — Estava apressada, desculpe-me...

    — Boa garota, claro que a desculpo, entre aqui menina e vamos conversar.

    — Não posso chefe, estou atrasada com o meu trabalho! — Falei aflita, estava parada na frente do escritório dele.

    — Entra aqui mulher! Preciso que tu me faça um favorzinho! — Me deu uma ordem em um tom sedutor. 

      Dei uns passos para dentro do escritório de Brian e ele me puxou pelos meus braços. Ele baixou as persianas, deixou o ambiente à meia luz  e ali mesmo, na mesa do escritório fizemos amor. A cena se repetiu por um tempo, mas um dia eu disse um grande basta para mim mesma, preciso colocar um fim naquela situação, além de tudo ele é meu chefe.

         —  Eu estou adorando a nossa situação! E agora? Quero um homem só meu! — Falei depois do nosso sexo casual.

         — Olha garota amanhã, tenho uma surpresinha para nós dois, vamos à minha casa da praia? — Falou sorrindo com os olhos.

          Eu curiosa e quieta apenas concordei com a cabeça, eu não sabia aonde estava indo a nossa aventura. Uma aventura perigosa, eu estava cansada de me apaixonar e me machucar e a aventura com o meu chefe não estava ruim, só estava incompleta.  

         — Claro que quero Brian! — Falei não escondendo o meu entusiasmo.

    

 

Fabiane Braga Lima é poetisa e contista em Rio claro, São Paulo

Contato: bragalimafabiane@gmail.com

 

 

BRIAN, SEGUNDA PARTE - A PRAIA

Por Fabiane Braga Lima (Rio Claro, SP)

 

          Chegou o dia prometido e tão esperado, enfim Brian me levou à praia. Por Deus, estávamos viajando, mais ou menos, umas três longas horas. E, se eu fosse um pessoa desconfiada, poderia achar que Brian era um psicopata.

          Na verdade, cheguei a desconfiar, pois ele me olhou fixamente na viagem inteira e sentiu um pouco de medo. Uma mistura de paixão e medo, pois tinha a sensação que caminhava entre as nuvens e eu poderia cair, ir ao chão a qualquer momento.

          — Brian , meu querido! Está demorando muito, estou em pânico dentro do carro, estamos viajando há horas. — Estava trêmula, não sabia mais o que dizer e o que fazer.

         — Ok meu amor! Vamos parar o carro, assim toma um pouco de ar. — Disse Brian amável como sempre e continuou — Garota medrosa, olhe para os lados, chegamos no litoral há um tempão e ainda não percebeu.

       — Estou completamente apaixonada e perdidamente por este homem, um mulherengo. — Aflita pensei depois de um longo suspiro e olhei para Brian perdidamente e pensando o que será que o destino me aguarda.

 

Fabiane Braga Lima é poetisa e contista em Rio claro, São Paulo

Contato: bragalimafabiane@gmail.com

MULHERISMO E FEMINISMO

Por Clarisse da Costa (Biguaçu, SC)


A história da mulher negra pelo mundo começa com as mulheres africanas. É através delas que o termo mulherismo surge em nossas vidas. Mas antes de tudo vamos nos aprofundar. O Mulherismo tem origem africana, uma análise social altamente enraizada na opressão seja racial e de gênero das mulheres negras. Seu objetivo é uma luta de raça, resgate e emancipação da população negra.

E qual a importância da mulher africana nessa história? Primeiro que a história de mulheres africanas é arruada de guerreiras, rainhas e líderes espirituais. Todas elas tiveram importância na ruptura de costumes. Aguerridas na luta conquistaram respeito e poder. Com isso expandiram domínios e entraram em luta contra os invasores europeus, o que deu coragem para o seu povo.

Voltando ao assunto mulherismo, vamos encontrar a diferença entre esse movimento e o movimento do feminismo. O mulherismo se difere do feminismo em muitos aspectos. No mulherismo encontramos a luta de muitas mulheres pela aceitação,  o não sexismo da mulher preta, a luta de classes, a igualdade entre o homem e a mulher, e o fim da opressão racial.

O feminismo é um tanto complexo, para alguns é a luta da mulher contra o homem, mas bem sabemos que essa afirmação é um erro. A mulher busca apenas por seus direitos.

Pelo termo técnico o feminismo é o ato político, social e filosófico. O lado social defende a igualdade entre ambos os sexos, como as mesmas condições salariais.

O que tem em comum entre ambos os movimentos é que não é uma luta sexista como se imagina ser, a luta feminina contra o masculino. O feminismo teve origem nos movimentos sociais, então a sua luta sempre foi e é por igualdade. Não é e nunca foi a intenção da mulher estar acima do homem, não se trata de superioridade, sim de dignidade e dos seus direitos garantidos.

Entretanto, o mulherismo também aborda essas questões. A luta por igualdade e seus direitos é uma luta de todas as mulheres independentemente da sua cor, mas o mulherismo vai além dessas questões acometidas as mulheres. Existe algo maior, a sua luta pela opressão racial e a de gênero. O mulherismo vem para colocar a mulher preta no seu lugar destaque numa sociedade que separa mulheres por condições sociais e a cor da pele.


Clarisse da Costa é cronista e poetisa em Biguaçu, Santa Catarina.

Contato: clarissedacosta81@gmail.com

DETRAS DAS SOMBRAS, ERGUER-SE-Á

Por Samuel da Costa (Itajaí, SC)

Para a poetisa Clarisse da Costa

 

‘’Noite gelada, já não sei o que escrever…

Olho pra janela, vejo estrelas.

Tento me lembrar de algum amor, não consigo,

Talvez nunca tenha amado, apenas me iludido.’’

Fabiane Braga Lima

 

 

O major pensou profundamente no fato, de qual a dificuldade de pegar um elevador, ao invés de subir as escadarias precárias e mal iluminadas. E percorre corredores estreitos e sombrios, sendo escoltado por dois militares de baixas patentes, e fortemente armados, na retaguarda e na vanguarda dois oficiais superiores desarmados.

Em anos de serviço militar, em décadas de caserna, presidindo e compondo tribunais militares, juntas de revisões para análises de promoções e rebaixamento, juntas de análises de relatórios e outros conclaves formais e informais tendo sempre a razão e o profissionalismo como guia.

O major sentiu arrepios ao trespassar pelos corredores estreitos em mal iluminados, que se assemelhavam às entranhas de um submarino submerso há quilômetros de distância da superfície terrestre.

O major sendo engenheiro eletrônico, alocado no ministério da defesa e membro do corpo técnico do departamento de compras, aquisições e descartes de materiais bélicos das forças armadas. E o major também é elemento de ligação entre as forças armadas e os serviços de segurança nacional.             

O major percorreu o mundo, visitando e vistoriando fábricas de armamentos e de componentes bélicos, estaleiros civis e militares, bases militares, atracadouros civis e militares, postos militares avançados. O major adentrou em departamentos e ministérios militares e de serviços de segurança. Conheceu laboratórios de pesquisas, tanto civis e militares, teve contato com o que há de mais avançado em termos de defesa e ataque, no meio militar em todo o globo. Sempre se portando com respeito às hierarquias e protocolos de segurança, que lhe cabia como militar, fosse onde fosse, independente do lugar que estivesse. 

 O militar também conheceu o que havia de mais atrasado em termos tecnológicos, pois o major também era responsável por repassar material bélico nacional. Material bélico que ficaram ultrapassados, para os exércitos e serviços de segurança, de empobrecidas nações subdesenvolvidas, nos recantos mais longínquos no globo terrestre.         Atividades que sempre desempenhava com o mesmo profissionalismo, zelo e respeito, pelos oficiais de patentes superiores e que o recebiam, como também pelos os de baixa patente.

 Mas nada o preparava para algo sequer parecido com o que ele estava presenciando naquele lugar estranho. Nada, e nada mesmo, ali estava em manual algum nas forças armadas ou serviço de segurança no mundo. Nada ali estava em protocolo que ele conhecia, tanto no meio civil como no meio militar. Os procedimentos de segurança, a formação das escoltas, o protocolo estranho e um sentimento ruim que pairava no ar.  

Por fora o prédio do batalhão da polícia militar, era moderno, funcional e amplo. Mas por dentro, parecia uma base precária de uma nação em uma longa guerra. Desde a falta de vigilância eletrônica, as precárias lâmpadas incandescentes, as obsoletas máquinas de escrever antigas e por fim móveis surrados. Mas, o major não estava ali para fazer uma inspeção surpresa ou mesmo programada, estava ali para apresentar um relatório. Uma missão que lhe incumbiram, era simples assim e nada mais.

Ao chegar na sala, onde haveria a reunião com o estado maior, mais um choque, duas sentinelas, fortemente armados, um estava com máscara de gás, usava um uniforme muito antigo que o major não identificou de que nação ou de que época exata era. A outra sentinela, estava usando um uniforme mais moderno, usava um capuz cinza assemelhado a de um espantalho.

Ambas, as sentinelas, estavam fortemente armadas, com as suas respectivas submetralhadoras a tira colo, com as miras a laser, empunhadas nas cinturas haviam modernas pistolas, com silenciadores. Não faltavam os coletes à prova de balas e rádios comunicadores de última geração, pareciam altas estátuas grotescas, o major teve um mal estar ao ver as divisas, eram dois tenentes-coronéis. Ver dois graduados prestando um serviço de meros aspirantes, não era normal em lugar algum nos meios militares.

O major logo pensou que estavam recolhidos e cumprindo alguma pena humilhante, antes de serem rebaixados de fato. As sentinelas bateram os cascos, quando as escoltas na vanguarda deram espaço e o major tomou a frente a porta abriu automaticamente e o major foi tragado pela escuridão. O major não olhou para trás, ele não queria saber que bailado marcial grotescos a escolta e as sentinelas iriam fazer.

— Adentre major! Seja bem-vindo ao meu humilde escritório!

Os olhos do major estavam doendo, era como se a abissal escuridão penetrasse nos seus olhos, como se fossem duas adagas afiadas penetrando nos seus globos oculares. E o tom fraternal do coronel, que o chamara para dentro do escritório, o fez lembrar de uma piada interna de quando ele entrara em nas reuniões fechadas de esquadrão de inteligência militar: — Sairemos vivos desta sala? — Alguém sempre dizia esta frase antes de começar uma reunião. E invariavelmente via com uma explosão de risadas.

O escritório era rústico, o major não podia divisar qualquer aparelho elétrico ou eletrônico. Uma mesa simples, no chão de madeira encerado, no alto do teto uma moderna luminária de cores negras à Bauhaus. O major olhou perdido para as duas pás negras, como se fossem duas hélices negras de um helicóptero. Duas luzes de led separadas por duas finas e delicadas hastes de metal, sustentadas no teto alto por uma haste fina. Ao lado da mesa rústica uma mesa menor e mais baixa era de metal, de alumínio, o major calculou que era de uma ordenança do coronel. Uma antiga máquina de escrever imperava soberana, parecia incrivelmente nova.   

E o coronel com seu uniforme impecável, de fala mansa e um brilho no olhar, um brilho que ele bem conhecia, o filho de um lavrador empobrecido, ou no máximo o rebento do carteiro bonachão, de uma cidade perdida no nada em meio a coisa alguma. A ascensão social, vem somente por um cargo menor, na máquina pública local e ficar o resto da vida carimbando papéis ou ficar atrás de um balcão, entregando fichas e remédios para uma população diminuta e semi alfabetizada. Mas alguns poucos, têm a boa sorte de arranjos políticos locais, de se elegerem para o parlamento local ou simplesmente se alistarem no serviço militar, fazem concurso para a polícia militar. Entre uma bajulação e outra, um servicinho ou outro, um fechar de olhos para uma falta qualquer paras elites locais, vêm as promoções e vem junto a ascensão social.

Detrás do palavrório pomposo, detrás do uniforme militar impecável tem um interiorano, complexado, limitado e ambicioso. O major, com seus bons anos de estudos, anos de formação militar, três idiomas fluentes no currículo, agora tem que fazer uma sustentação oral para um superior hierárquico. Era um fulano qualquer, metido em um uniforme militar impecável, parado no tempo, que não sabia de nada, que saiu de lugar nenhum. O major se postou como sempre, bateu continência.         

— Descansar! Sente-se major, o relatório major, vamos ao relatório! O conselho nacional de segurança o leu, e é claro e me incumbiram da tarefa de lhe tomar a sustentação oral. — O coronel estava, complacentemente, sentado em uma confortável poltrona de escritório, o cabelo ralo e ruivo e o pequeno bigode reluziam sob a luz da luminária.

O major sentiu um olor asco, uma mistura de água salgada misturada com sangue. Uma sensação de ter vivido e mesmo cena antes inundou a mente do major, o charuto, só faltava o charuto e os copos de uísque, ele pensou estranhamente.

— Descansar major! — A ordem unida ressoou no ar, como um trovão feroz, o major que estava calado e em posição de sentido, por fim se deu por vencido e se rendeu ao absurdo, em que estava vivenciando. E deixou a coisa fluir normalmente, afinal não sabia se sairia vivo da sala. Era um fato, outro fato mais grave é que foi instruído a entrar no batalhão desarmando, ele que nunca andava armado quando fazia visitas e inspeções. E também deixar todos os aparelhos elétricos e eletrônicos, assim que ele entrasse no prédio do batalhão. Outro procedimento padrão, que eles mesmo tinham recomendado na revisão de protocolos de segurança quando nas vistorias, visitas e inspeções técnicas.

— Por quê? Qual o motivo de eu estar aqui coronel? Que conselho nacional de segurança é este? — O major ainda estava de pé, seu uniforme verde oliva militar impecável lhe fez parecer deslocado.

O coronel apontou para uma cadeira na frente da mesa, o major por fim sentou, estava mais que curioso com a situação toda. Não bastava a promoção que nunca chegava, a aposentadoria que não vinha e as intermináveis viagens que simplesmente não acabavam. O mundo para ele, era um enorme quartel, uma gigantesca base militar e os submarinos eram os seus labirintos do Minotauro de ferro e de aço. E homens e mulheres uniformizados em eviternas marchas embalados por ordens unidas e cantorias de batalhas. A vida do major era um mundo marciano, sentinelas nos portões, bateria antiaéreas apontadas para o céu, blindados estacionados, abuses, lança granadas e armas de todos os tipos, modelos e tamanhos sendo desmontadas, lubrificadas, remontadas e disparadas.

Às vezes estava em trajes civis na faculdade, as breves visitas que fazia a familiares, e as inconveniências dos mesmos, que cobravam em vê-lo de uniforme militar. A esposa e os filhos, viviam com ele, em locais anexos em bases militares, eles viajavam de navios e aeronaves militares.

Seus filhos estudavam em escolas militares e por fim sua esposa era filha e neta de militares, amigas e amigos de longa data de militares e por fim tinha as amigas era esposas de militares. E por fim ele mesmo, filho, neto e bisneto de militares!

Sentado na frente de seu superior hierárquico, possivelmente o filho de um carteiro bonachão de uma cidade do interior. O coronel que de repente lhe ofereceu um copo de uísque e um charuto, retirados sabe se lá de onde. O major, que não fumava, levou o charuto à boca e sentiu o sabor do tabaco que foi degustado embaixo da língua e as papilas gustativas dispararam em múltiplos sabores. Depois o uísque que descia pela garganta, inebriou o major que raramente bebia.

— O que não está no relatório major? — O coronel parecia um marechal prussiano dando ordem para uma tropa!

— Vamos começar pelo que está no relatório! — procurou em vão na sala as câmeras de vigilância, onde estariam as escutas, só pode imaginar e mais nada. O major levou a mão até a pasta zero, zero sete e tirou o relatório batido na máquina de escrever.

—  Por quê? Qual o motivo de me escolherem para a missão?

— Ora major o teu magnífico currículo fala por si e diz tudo!

— Pois bem, me escolheram porque precisavam de um especialista de equipamento de vigilância eletrônica visto as anomalias que ocorrem por aqui.

— Certo! Os pulsos magnéticos!

— Correto! Pois estou além destes trabalhos de campo!

— Vamos ao que está no relatório!

 O major abriu o relatório para efeito dramático pois o conhecia de cor o que tinha escrito, jogou o documento na mesa do coronel.

— Estabelecemos o perímetro, no entorno do prédio, instalamos as câmeras de vigilância, também colocamos as equipes ao entorno do prédio para monitorar quem entrava e saia do prédio. 

— E o que descobriram?

— Nada! O prédio de quatro andares, não recebeu ninguém no primeiro dia, nos três dias que foram os focos da nossa vigilância. Fora uma equipe de limpeza, que fizeram uma faxina completa, no segundo e no terceiro andar. Apuramos, que estranhamente, era uma equipe de limpeza especializada em higienização de ambientes hospitalares e de saúde em geral.

 Acompanhamos tu a distância segura, como foi orientado, distribuímos os nossos agentes de vigilância, que não se conhecia, nos quatro quadrantes. Ninguém entrou ou saiu do prédio, tudo registrado em vídeos e fotografias, somente um senhor idoso muito bem vestido, de aparência europeia, italiano para ser mais exato! O homem entrou no primeiro dia e saiu no terceiro dia! Estou sendo claro até aqui?

— Está sendo sim major! — O coronel recostou-se na poltrona e olhou para o teto, o major pensou que ele estava formulando uma pergunta! — Prossiga major! Por favor. — O tom ameno do coronel desconcertou o major.

— Pois até aqui há poucas estranhezas, mas vamos às estranhezas de fato. O senhor europeu, fotografamos e logo passamos as fotografias, pelo reconhecimento facial, e nada, não descobrimos nada dele em lugar algum, procuramos em todos os bancos de imagens que estavam disponíveis.

  Agora, a equipe que o acompanhava era composta de conhecidos mercenários experientes, eram todos norte-africanos! Todos baseados na Itália, em Roma para ser mais específico, todos com muita experiência em combate, serviços de segurança particular e vigilância no mundo todo.

 O major parou e foi buscar algo na pasta zero, zero sete, procurou, encontrou e dispôs na mesa.

— Aqui está, a ficha completa de toda a equipe, fotografias atualizadas, nomes, idades, nacionalidades, especialidades e onde atuaram. Estes homens deixaram o italiano na porta, o senhor entrou no prédio e saiu três dias depois. 

— O que não está no relatório major?

O teatro seguiu pensou o major, como homem da razão, formado na escola do positivismo, nas certezas da engenharia moderna, relutou muito em andar pelo terreno pantanoso do vago e do indefinido!

— Os scanners de calor, simplesmente não captaram nada, nenhuma assinatura de calor no prédio. Mesmo, os medidores de energia e de consumo de água estavam apontando ao contrário. Em suma, estávamos vigiando um prédio onde somente este homem idoso entrou, fora a equipe de limpeza, que aliás somente limpou o segundo e terceiro andares!

— Relate-me das janelas! — O ar de coronel prussiano voltou. 

— Relatar as janelas é relatar as anomalias do terceiro andar...

— Desculpe, major, eu vi as imagens das janelas e eu não vi anomalia alguma, nem eu, nem a minha modesta equipe de contrainteligência e também os sensores que a sua equipe instalou também não detectaram nada. De onde partiu essa ideia?

— O senhor está certo, somente eu vi a anomalia! Revisamos várias vezes e eu sabia que estava lá. Uma obviedade eram as janelas do terceiro estarem sempre abertas, diferentes das demais! Eu vi uma opacidade nas imagens, a olho nu e nas imagens. Sabemos que os drones estão proibidos de serem usados nas vigilâncias, em perímetros urbanos. Excetos em certas circunstâncias como casos de reféns e perseguições a criminosos. Por isso usamos um drone caseiro, comprado em uma loja de eletrônicos. E também usamos um outro drone, um militar, que ficou postado longe do prédio. Não vou discorrer aqui sobre as anomalias, que só ocorrem nesta região em específico, por isto o primeiro drone doméstico, que se aproximou do prédio e o segundo capturados os dados do primeiro.  

— Solução criativa, caso o primeiro drone fosse fritado pelas ondas magnéticas, os dados seriam arquivados pelo segundo. Uma vez que os dados poderiam ser perdidos se a onda atingisse o primeiro, os dados estariam salvo no segundo. Mas o que aconteceu de fato, na tua experiência?

— Isso ocorreu no segundo dia, o primeiro drone chegou perto da janela leste do terceiro andar do prédio e logo transmitiu as imagens e os dados! E eu notei as anomalias, parecia que eu estava vendo... vendo... — O major procurou as palavras. — Parecia que eu estava vendo uma tela de TV, de uma televisão em altíssima resolução, era uma imagem perfeita em três dimensões do interior do prédio.

— Nossa! Algo mais? — Disse o coronel entediado.

— Um zunido! Estava vindo da janela, bem baixo na verdade!

— E os drones?

— Captamos poucos segundos de imagens e sons! O nosso engenheiro de eletrônico, não soube o que dizer, só falou um nome bem baixo, Véronique. É um projeto secreto, o projeto Véronique, um espelho em três dimensões, uma tela que projeta um ambiente do interior de um cômodo qualquer. Mas nada parecia com aquilo, uma projeção mais que perfeita da realidade. A imagem projetada de um andar completamente vazio.

Quanto aos sons, o nosso engenheiro de som, me relatou que eram provavelmente ruídos vindo do espaço, do cosmo sideral. Na verdade, eram sons que não foram captados por gravadores de áudio. O nosso engenheiro de som, disse que não era sons, disse que na verdade, que eram dados matemáticos que astronautas registraram e converteram em ondas sonoras com a ajuda de sondas e outros instrumentos.

— E os drones que captam estes dados? — Olho profundamente para o major com olhos glaciais.  

— Como o coronel bem sabe, o primeiro drone que estava a poucos metros do prédio foi esmagado, como se fosse brutalmente atingido por uma onda gravitacional. Simplesmente foi esmagado e foi ao chão. O segundo que estava mais longe simplesmente parou de funcionar e caiu, caiu em uma das nossas bases de operações, onde estava estacionado no ar entre árvores. Não sobrou dados do primeiro drones, já o segundo os dados foram apagados por uma onda magnética, e os poucos dados que possuímos, são os poucos foram retransmitidos para os nossos computadores.

— Estes fantásticos elementos todos, estão fora do relatório final e os poucos que estão, estão de forma vaga, certo? — Disse o coronel entredentes

— Certo! — O som abstrato que saiu da boca do major atingiu em cheio o coronel.

— E depois, o que aconteceu, o senhor falou em três dias?

— Sim! Os fatos que ficaram fora, de forma parcial, do relatório final se concentram no dia que o senhor austero entrou no prédio e saiu! A maior anomalia que não está no relatório foi o acidente de trânsito que vitimou o senhor que saiu do prédio. E anomalia maior foi a luz negra que atingiu o prédio antes do senhor ser atingido pela viatura de polícia e ser atirado longe. Os nossos agentes em volta do prédio captaram em áudios, fotografias e vídeos.

— Luz negra? Que luz negra? — Atônito o coronel quase caiu da cadeira.  

O major não teve tempo de responder, o militar primeiro sentiu o olor severo de sangue, de carne putrefata, sons de espadas se digladiando no ar, gritos de ódio, gritos de horror e por fim corpos caindo no mar. E não demorou muito para uma luz negra envolver o major, o militar sentiu seus corpo se dilacerar, como cada parte de seu corpo fosse despedaçado, cada átomo de esvaece no ar. A dores infindas não demoraram nanossegundos então tudo estava acabado. Uma estátua de ébano estava calcinada na frente do coronel.    

 

Samuel da Costa é contista e funcionário público em Itajaí, Santa Catarina.

Contato: samueldeitajai@yahoo.com.br