Por Dias Campos (São Paulo, SP)
Tem gente que coleciona selos.
Outros, caixinhas de fósforos. E outros, ainda, chaveiros. Essas coleções são
franqueadas a qualquer mortal.
Há, porém, acervos cujos donos têm que ser, necessariamente, mais abastados,
como os de moedas e livros raros, ou os de carros antigos.
As possibilidades, como se sabe, são ilimitadas.
Artur iniciou-se nesse hobby
depois que assistiu a um programa de TV. No entanto, os objetos por que se
interessou afastaram-se um pouco da normalidade... Ele passou a colecionar
sorrisos.
Assim, tomando de uma câmera profissional, ou mesmo do celular, Artur
saía a fotografar rostos sorridentes, sem que percebessem; podia ser de homem,
de mulher, de criança ou de idoso.
Depois, selecionava os que mais transmitiam bem-estar, editava as
imagens, de modo a sobrar apenas os sorrisos, imprimia-os em folha A4 e na
horizontal, e os guardava em fichários.
Com o passar dos meses, as gavetas e os armários ficaram abarrotados. E
como ele já não mais se contentava em ir aos catálogos quando quisesse apreciar
as suas gravuras, passou a grudar as novas aquisições nas paredes do
escritório.
Mas como nesse cômodo os espaços vazios logo desapareceram, o jeito que
encontrou foi o de espalhar a sua coleção pelos demais ambientes. – Os quadros
e os pôsteres eram retirados e doados à medida que os sorrisos ganhavam
terreno.
E de parede em parede, o apartamento ficou praticamente lotado de
sorrisos. – Ele poupou apenas o banheiro da suíte e a cozinha. Esta, para que a
fumaça das frituras não impregnasse as impressões; aquele, para que a umidade
dos banhos não as embolorasse.
Dessa forma, salvo essas duas
exceções, e as janelas, para qualquer lugar que Artur olhasse o que via eram
sorrisos.
Ora, assim como um bocejo induz alguém a bocejar, assim os sorrisos
espalhados pelo apartamento incutiam a Artur uma vontade praticamente constante
de sorrir.
E essa constância fazia tão bem ao seu espírito, e ao seu corpo, que
Artur começou a perceber que as fortes dores de cabeça que há tempos o
incomodavam passaram a diminuir. E isso o estimulou a cada vez mais fotografar,
e a sorrir.
Esse benefício também foi percebido pela faxineira, D. Ana, senhora que
para ele trabalhava há quase duas décadas. – Porque Artur fosse sozinho no
mundo, a amizade de que desfrutavam era sólida.
Ora, como os sorrisos não paravam de chegar, e como não havia mais
lugares disponíveis, Artur aceitou a sugestão de D. Ana e passou a grudá-los
nos tetos.
Dessa forma, ainda que estivesse deitado, fosse sobre a cama ou mesmo no
chão, o que via, e sentia, era a vibração que recebia de centenas de sorrisos.
E o seu bem-estar mais e mais se consolidava.
Quando as dores de cabeça enfim desapareceram, Artur ficou tão feliz que
achou que deveria espalhar a sua cura aos quatro ventos. E comentou com D. Ana.
Os olhos da amiga encheram-se de lágrimas. No entanto, recomendou
prudência ao patrão. Que ele primeiro marcasse uma consulta e refizesse os tais
exames. E só depois saísse por aí gritando de alegria.
Artur aceitou o conselho. Mas antes que ligasse para o médico, um
pensamento acendeu em sua fronte; e tratou de compartilhá-lo com D. Ana.
A bondosa senhora adorou. E como prometeu guardar segredo, ele ficou
ainda mais empolgado.
Graças a essa empolgação, que aumentava de minuto em minuto, Artur foi
direto aos arquivos a fim de separar dezessete dos seus mais magnetizantes
sorrisos.
A ideia era bem simples. Ele distribuiria dois sorrisos entre os
elevadores, e o restante grudaria bem visíveis em cada um dos patamares da
escada de serviço.
Mas como a intenção era espalhar sorrisos, e não receber elogios ou uma
multa do síndico, Artur decidiu agir na madrugada, o que garantiria o
anonimato. – Seu plano seria ainda facilitado pela ausência de câmeras nos
locais escolhidos.
Como fosse autônomo e trabalhasse em casa, Artur fez questão de manter a
rotina a fim de não levantar suspeitas. Assim, aguardou o horário em que
costumava ir à guarita para apanhar o jornal, e aproveitou para perguntar ao
porteiro sobre a gravura no elevador social.
O funcionário respondeu que já tinha ouvido um e outro comentários dos
moradores. E que estava curioso. Mas só poderia vê-la quando chegasse a hora do
almoço.
Artur voltou ao elevador. E como não
fora ele quem apertara o botão, outra pessoa apareceria, e, por certo,
comentaria sobre o sorriso.
Pois não deu outra. Tão logo a porta se abriu, e o vizinho do 712 foi
logo perguntando que espécie de circular era aquela.
Artur, é claro, fez-se de tonto. Mas ganhou o dia quando seu vizinho
disse que saía para trabalhar de bem com a vida.
Quem não gostou muito da novidade foi a quarentona do 301, o folguista do
condomínio e o síndico. Este, porque mudou de humor ao saber dos quinze
sorrisos espalhados pelos andares; esse, porque teve que ir de andar em andar
recolhendo as gravuras; e a aquela, porque ainda sofria com o trauma de ter
sido trocada por outra, vinte anos mais nova, às vésperas do casamento.
Posteriormente, o síndico publicou uma circular avisando que as colagens
infringiam o artigo 23 da convenção condominial. Sendo assim, além de pedir que
essa conduta não se repetisse, advertiu que tomaria todas as providências para
que o infrator fosse identificado e multado, caso outros sorrisos aparecessem
pelo condomínio. – E aproveitou para convocar uma assembleia extraordinária
para discutirem a ampliação das câmeras de segurança.
Apesar desse obstáculo, Artur ficou tão contente com as consequências da
sua ousadia que isso o estimulou a transformá-la em um verdadeiro projeto.
Daí que voltou às pastas a fim de escolher tantos sorrisos quantos postes
havia em sua rua. Esta seria a primeira fase do seu Projeto Sorriso, e que
teria início na noite seguinte.
E se D. Ana não deixou de estimular o patrão, também não se esqueceu de
cobrá-lo quanto à consulta médica.
Artur ouviu a cobrança e ligou na mesma hora. Em seguida, pôs-se a
trabalhar, pois se espalhar sorrisos acarretava um bem enorme, não seriam eles
que pagariam as contas do mês.
A noite chegou, Artur jantou normalmente, foi tomar banho e programou o
despertador para acordá-lo às três da madrugada.
O despertador cumpriu o seu ofício. E ele quase morreu de susto ao ser
acordado.
Levantou, foi ao banheiro e se agasalhou.
Mas quando se preparava para sair do apartamento, com os sorrisos a
tiracolo, Artur se lembrou de que teria que passar pela guarita...
Era óbvio que o vigia noturno ficaria encafifado vendo um morador saindo
àquela hora para grudar panfletos de poste em poste. Isso certamente o levaria
a comentar com o funcionário que o substituiria pela manhã. E como o substituto
era um notório fofoqueiro, logo contaria para os outros empregados, para os
demais condôminos e para o síndico.
Artur trancou a porta, e sentou-se no sofá. Precisava contornar essa
imprevisão.
O jeito que encontrou custaria dinheiro e atrasaria a primeira etapa do
Projeto Sorriso. Mas, pelo menos, a sua identidade estaria preservada.
Artur acordou eufórico, pois tinha plena convicção de que com apenas um
telefonema o seu problema seria resolvido.
Ele estava certo. E a solução chegaria ao prédio no período da tarde.
Depois de conversar com um
representante de uma empresa de promoção, ficou acertado que, além de garantir
o sigilo do contratante, o seu funcionário teria que grudar em cada poste da
rua um sorriso voltado para a calçada, logo na manhã seguinte. – Na cidade onde
Artur morava, ainda tramitava lei que impediria essa prática.
E foi o que aconteceu.
Como a rua onde morava era bastante
movimentada face ao comércio que grassava, Artur se fartou de espiar pelo
binóculo, lá do seu andar, a reação das pessoas que andavam pela calçada.
E se as apressadas permaneciam indiferentes, outras, mais despreocupadas,
mudavam de semblante logo que reparavam os vários cartazes, seja enrugando a
testa, como a se perguntarem que propaganda era aquela, seja aderindo aos
sorrisos, o que demonstrava que o gasto que tivera não tinha sido em vão.
Artur também soube dos comentários dos funcionários que chegaram para
trabalhar, dos condôminos que voltaram da rua, e do síndico que foi conferir
pessoalmente a “nova exposição”.
E se gostou do que ouviu dos primeiros, não deu importância à jactância
deste último, que se gabou de ter conseguido com que o autor dos sorrisos fosse
espalhar a sua maluquice fora do condomínio.
D. Ana também ficou contente; sobretudo ante a empolgação com que Artur
descrevia a receptividade das pessoas. Mas logo relembrou ao patrão de que não
se esquecesse de ir à consulta.
Ele não se esqueceu. E foi ao médico.
Dr. Amâncio, que ficara atônito quando soube que Artur tinha marcado uma
consulta, ficou pasmo com sua aparência assim que o viu entrar. Estava corado,
engordara, e o aperto de mãos que acabavam de dar, firme e forte, era completamente
diferente do que trocaram há quase três anos, um leve segurar em forma de
adeus.
E quando ouviu que as dores de cabeça tinham sumido completamente, o
médico encostou-se ao espaldar e não sabia o que dizer. Afinal de contas,
depois que confirmaram a existência de um tumor maligno em seu cérebro; depois
que Artur se submeteu a todas as sessões de quimioterapia, complementadas pelas
de radioterapia; e depois que receberam os exames posteriores que atestaram que
o câncer pouco regredira, Dr. Amâncio não teve alternativa senão a de lhe
prognosticar só mais um ano de vida.
Mas o impossível estava bem aí, na sua frente; vivo, ereto e
bem-disposto!
E o que mais poderia fazer o oncologista senão solicitar uma série de
exames a fim de saberem o que acontecia? E passou a assinar os pedidos.
Ao contar para sua faxineira sobre as reações que tivera o médico, Artur
exagerou na imitação, o que fez com que D. Ana até ficasse sem ar de tanto rir.
E como ambos estavam se sentindo
muito bem, Artur aproveitou para falar que, graças ao sucesso obtido com a
etapa anterior, já tinha a intenção de iniciar a segunda fase do Projeto
Sorriso.
D. Ana ficou entusiasmada. Mas só
até ouvir que, como isso custaria muito mais dinheiro, o seu salário teria que
ser reduzido em um terço.
Depois de revelada a brincadeira –
só ele riu –, Artur contou que pretendia pegar a sua coleção e espalhá-la por
todo o bairro.
D. Ana, porque achasse isso
impossível, perguntou se ele sabia quantos postes havia no bairro, e se o
dinheiro de que dispunha seria suficiente.
Artur respondeu não à primeira
pergunta, e, quanto à segunda, que as moedas que esquecera no porquinho de
porcelana dariam para o gasto. – Ambos riram.
No dia seguinte, chamou a mesma empresa de promoção; entregou-lhe as
muitas pastas entupidas de sorrisos; e foi fazer os exames que o médico
solicitara.
Dois dias foram necessários para que a contratada cumprisse o combinado.
– Os sorrisos que sobraram foram devolvidos ao dono.
Essa proeza acabou chamando a atenção não apenas dos cidadãos, mas,
também, da imprensa e da prefeitura.
O Departamento de Limpeza Urbana disse que o gesto era louvável, pois
contribuía para o bom ânimo dos munícipes. No entanto, por força da legislação
recém-sancionada pelo prefeito, era dever da administração pública zelar para
que os postes fossem mantidos livres de qualquer panfletagem. Sendo assim, os
servidores iriam retirá-los no devido tempo.
Muitas estações de rádio noticiaram que a cidade estava sendo invadida
por sorrisos; os principais periódicos reservaram espaço nas primeiras páginas
para a nova manifestação artística; e quase todos os telejornais entrevistaram
populares sobre quem seria o seu misterioso idealizador.
Quanto aos cidadãos, houve quem elogiasse a iniciativa de espalhar
alegria em momentos tão difíceis; quem a recriminasse por emporcalhar a cidade;
e quem pouco se importasse com esse tipo de mensagem.
Mas se Artur aproveitava apenas as boas notícias – que só aumentavam a
sua vontade de estender os seus sorrisos para toda a cidade, depois para todo o
estado, para todo o país, e, por fim, para além das fronteiras –, a proibição
de espalhar gravuras nos postes fez refrear o seu entusiasmo. Seria preciso,
pois, encontrar uma maneira de contornar esse novo contratempo.
Nesse meio tempo, um repórter de uma grande emissora de televisão, mais
pertinaz do que um perdigueiro, conseguiu descobrir qual foi a rua onde tudo
começou.
E dessa rua ao prédio de Artur, poucos minutos se passaram.
Não se sabe como, mas a notícia vazou. E logo a frente do prédio ficou
apinhada de jornalistas.
O síndico foi avisado e teve que descer para falar com os repórteres. Ele
se viu obrigado a revelar que os sorrisos tinham começado no condomínio. Mas
acrescentou que a autoria continuava desconhecida. E como a proibição que
expediu tinha sido acatada, não houve interesse em aprofundar as investigações.
Artur achou melhor só prosseguir com o Projeto Sorriso depois que a
poeira abaixasse. Até porque, teria que se resguardar ainda mais quanto ao
anonimato.
As semanas passaram; os sorrisos deixaram de ser notícia; ele continuou
trabalhando e fotografando; e os resultados dos exames clínicos chegaram pelo
correio.
Artur tomou-os em suas mãos, caminhou até o escritório, e nele se
trancou.
Sentado em sua cadeira, Artur olhava para os envelopes...
As respostas sobre se o câncer tinha ou não desaparecido jaziam sobre a
mesa, explicitadas, irrefutáveis.
Ele, então, resolveu abri-los.
Mas no exato momento em que abria um dos envelopes, a maneira por que
deveria prosseguir com o Projeto Sorriso surgiu cristalina e auspiciosa em sua
mente!
E ele o largou.
As horas caminharam, os dias seguiram, e os meses se foram.
E cerca de quatro anos se passaram até que Artur pudesse recomeçar a
distribuir os seus muitos sorrisos. – Faria por meio de um romance, em que
contaria as peripécias de um sonhador que queria levar alegria para o mundo
inteiro.
Essa demora, contudo, valeu a pena, pois a receptividade dos leitores foi
simplesmente extraordinária, o que levou a editora a providenciar a segunda
edição em menos de um mês, e a dobrar a quantidade de livros a serem
distribuídos no mercado.
E se é verdade que até hoje ninguém sabe qual a identidade do novo
fenômeno literário, pois Artur assina sob pseudônimo, também é exato afirmar
que ele nunca se interessou em conhecer o conteúdo daqueles exames.