Por Paccelli José Maracci Zahler (Brasília, DF)
O cinema iraniano contemporâneo tem
se destacado por sua capacidade de abordar temas políticos e sociais por meio
de narrativas simbólicas e minimalistas. Animal (2017) é exemplar nesse
contexto, ao retratar um homem que se transforma em carneiro para atravessar
uma fronteira.
O protagonista faz várias tentativas
de ultrapassar a fronteira. Primeiro, camuflado com ramos para tentar romper
uma cerca que delimita a fronteira. Depois, camuflado com uma pele e cabeça de
carneiro, que ele abate no campo. Após esquartejar o carneiro e retirar sua
pele, ele a veste. Neste momento, ele assume uma postura que remete à figura
mítica de Baphomet, uma criatura andrógina com cabeça e patas de bode,
seios, asas de anjo e um pentagrama na testa cuja primeira menção surge durante
o julgamento dos Cavaleiros Templários. Segundo historiadores, o nome Baphomet
pode ter sido uma corruptela do nome do profeta Maomé (ou Mahomet), em uma
tentativa de ligar os templários ao islamismo e, assim, a rituais heréticos. É
uma figura cultuada na maçonaria também. Entretanto, apesar de não ser muito
considerada nos países islâmicos como o Irã, país do filme Animal (2017),
sua presença deixa uma grande pergunta sobre a cena.
Camuflado de carneiro, o protagonista
precisa aprender a agir como tal. Passa então a ver vídeos sobre o
comportamento de rebanhos de carneiros, tentando imitá-los em seu comportamento
e, assim, tentar passar despercebido em sua tentativa de cruzar a fronteira.
Quando se considera preparado para
tal façanha, apesar da vigilância da guarda da fronteira, consegue atravessá-la
e parece sentir um estranhamento ao deparar-se com um campo de gamos,
supostamente mantidos sob controle em um campo confinado. Isso é explícito pela
presença de brincos de plástico nas orelhas. Nesse momento, ao perceber que
saiu de um ambiente confinado enquanto homem e chegou a outro campo de
confinamento, é abatido por um caçador de lebres.
A paleta de cores terrosas e o uso de
planos fechados criam uma atmosfera de escassez e confinamento. Gilles Deleuze
(1985) afirma que o espaço cinematográfico pode ser um “espaço qualquer”, onde
o corpo se dissolve na imagem. Em Animal (2017), esse espaço é a terra
árida, que aprisiona o protagonista. O vermelho do sangue rompe o silêncio
visual, revelando a violência latente da transformação.
A aspect ratio do filme Animal
(2017) é de 2.35:1. Tal razão de aspecto (ou aspect ratio) tem o
propósito de ampliar o espaço visual, destacando a vastidão e a hostilidade do
ambiente; criar tensão e isolamento, com o personagem muitas vezes pequeno
dentro do quadro largo; reforçar o contraste entre o humano e o animal,
explorando a linha tênue entre civilização e instinto; e dar um tom
cinematográfico e universal, mesmo sendo um curta-metragem iraniano de 16
minutos. Assim, a história silenciosa é transformada em uma experiência
visceral.
A atuação física do protagonista
remete ao conceito de “corpo sem órgãos” de Antonin Artaud (1947), em que o
corpo se desfaz de suas funções para se tornar pura presença. Sem diálogos, o
ator comunica dor e resistência por meio da carne. Giorgio Agamben (2004)
argumenta que o Homo sacer é aquele cuja vida pode ser sacrificada sem
punição e o protagonista de Animal (2017) encarna essa figura, ao se
tornar invisível para sobreviver.
A cerca é símbolo recorrente,
delimitando não apenas espaço físico, mas também a condição existencial. A
animalização do protagonista é uma estratégia de sobrevivência, mas também um
apagamento de sua subjetividade. A escolha do carneiro — símbolo de submissão —
reforça essa leitura. A fronteira, nesse contexto, separa o humano do
não-humano, o livre do cativo.
A criação do gamo persa (Dama
mesopotamica) no Irã, espécie ameaçada e mantida em cativeiro, oferece um
paralelo simbólico. Assim como o protagonista, o cervo sobrevive à custa da
domesticação. Daí o estranhamento do personagem ao ver-se de frente com um
rebanho de gamos com brincos de identificação de plástico nas orelhas. Ambos
são mantidos vivos por sistemas que os negam como sujeitos. A animalização,
nesse sentido, é tanto estratégia de resistência quanto uma forma de
apagamento.
Animal (2017) é uma obra que fala através
do silêncio, que denuncia através da carne, que resiste através da imagem. Ao
articular estética e política com profundidade simbólica, os irmãos Ark, roteiristas
e diretores do filme, entregam um manifesto visual sobre a condição humana em
contextos de opressão. A animalização, longe de ser apenas metáfora, torna-se
linguagem, e uma forma de dizer o indizível.
Referências
AGAMBEN,
Giorgio. Homo Sacer: O poder soberano e a vida nua. Belo Horizonte:
Editora UFMG, 2004.
ARK, Bahram;
ARK, Bahman. Animal. Irã, 2017. Curta-metragem.
ARTAUD,
Antonin. Para acabar com o juízo de Deus. São Paulo: Editora Iluminuras,
1993.
DELEUZE,
Gilles. A imagem-tempo. São Paulo: Brasiliense, 1985.