domingo, 1 de janeiro de 2017

A VOZ DO AUTOR: MENOTTI DEL PICCHIA

MENOTTI DEL PICCHIA (1892-1988)


(Arte computacional por Paccelli M. Zahler)

Menotti del Picchia (1892-1988) era filho de imigrantes italianos. Formado em Direito, foi membro do Partido Republicano Paulista e participou da Revolução de 1932. Juntamente com Mário de Andrade, Oswald de Andrade e outros artistas e escritores, participou da Semana de Arte Moderna de 1922. Em 1943, foi eleito para a Academia Brasileira de Letras onde ocupou a cadeira de nº 28. Suas principais obras são: Juca Mulato (1917), Máscaras (1920) e Salomé (1940).

SER FELIZ

Menotti Del Picchia (1892-1988)

Ser feliz! Ser feliz estava em mim, Senhora.. .
Este sonho que ergui o poderia pôr
onde quisesse, longe até da minha dor,
em um lugar qualquer, onde a ventura mora;

onde, quando o buscasse, o encontrasse a toda hora,
tivesse-o em minhas mãos... Mas, louco sonhador,
eu coloquei muito alto o meu sonho de amor...
Guardei-o em vosso olhar e me arrependo agora.

O homem foi sempre assim... Em sua ingenuidade
teme levar consigo o próprio sonho, a esmo,
e oculta-o sem saber se depois o achará...

E, quando vai buscar sua felicidade,
ele, que poderia encontrá-la em si mesmo,

escondeu-a tão bem, que nem sabe onde está !

AS MÁSCARAS

Menotti Del Picchia (1892-1988)

O teu beijo é tão doce, Arlequim...
O teu sonho é tão manso, Pierrô...

Pudesse eu repartir-me
encontrar minha calma
dando a Arlequim meu corpo...
e a Pierrô, minha alma!

Quando tenho Arlequim,
quero Pierrô tristonho,
pois um dá-me prazer,
o outro dá-me o sonho!

Nessa duplicidade o amor todo se encerra:
Um me fala do céu...outro fala da terra!

Eu amo, porque amar é variar
e , em verdade, toda razão do amor
está na variedade...

Penso que morreria o desejo da gente
se Arlequim e Pierrô fossem um ser somente.

Porque a história do amor
só pode se escrever assim:
Um sonho de Pierrô
E um beijo de Arlequim!


BANZO

Por Menotti Del Picchia (1892-1988)

E por que deixou na areia do Congo
a aldeia de palmas;
e porque seus ídolos negros
não fazem mais feitiços;
e porque o homem branco o enganou com miçangas
e atulhou o porão do navio negreiro
com seu desespero covarde;
e porque não vê mais de ânfora ao ombro
a imagem do conga nas águas do Kuango,
ele fica na porta da senzala
de mão no queixo e cachimbo na boca,
varado de angústia,
olhando o horizonte,
calado, dormente,
pensando,
sofrendo,
chorando.

morrendo.

NOITE

Por Menotti del Picchia (1892-1988)

As casas fecham as pálpebras das janelas e dormem.
Todos os rumores são postos em surdina,
todas as luzes se apagam.

Há um grande aparato de câmara funerária
na paisagem do mundo.

Os homens ficam rígidos,
tomam a posição horizontal
e ensaiam o próprio cadáver.

Cada leito é a maquete de um túmulo.
Cada sono em ensaio de morte.

No cemitério da treva

tudo morre provisoriamente.

HARMONIE

Par Paccelli José Maracci Zahler (Brasília, DF)

(version française par Eneida Moraes Miranda Zahler)

La paix
Envayée mon copr
Et me transport pour loin,
Conforte et animé
Me plonge par haut
me preenche et transponne
Non je ne suis plus gent,
À peine semelle
En germinant innocent

Dans le compas des heures.

ARTISANS

Par Paccelli José Maracci Zahler (Brasília, DF)

(version française par Eneida Moraes Miranda Zahler)

Artisans, combient je vous admire!
Musique, poesie,
Peinture, chant,
Carpets, adorns.
Pure amour à l’Art!
Ils passant par le vie
inconnus,
Avec des amis
À la table d’un bar.

Donnent couleurs avec son travail
Notre vie
Et semmellent espoirs
Dans les coeurs sans foix

Je vous admirent artisans
Que prouvent quotidiennement
Le pouvoir de la création

De notre mains.

ZUMBI DOS PALMARES - A CONSCIÊNCIA NEGRA

Por Gustavo Dourado (Taguatinga, DF)

(Para Joel Oliveira e todos os afrodescendentes)

Zumbe a consciência negra
Do comandante guerreiro
Mártir de sangue africano
Herói do povo brasileiro
Lutou contra a escravidão 
Exemplo no mundo inteiro
1655
O ano do nascimento
1695
Deu-se o falecimento
Morreu e eternizou-se
Deu asas ao movimento
Zumbi da Serra da Barriga
Um líder descomunal
Combateu a tirania
Baluarte cultural
No Quilombo dos Palmares
Combatente magistral
Brasil - Pernambuco - Alagoas
Zumbe Zumbi em quimbundo 
Hoje, União dos Palmares
Deu o seu grito profundo
Zumbi revolucionário
Alma que ilumina o mundo
Serra da Barriga - Cerca do Macaco
Mocambos em profusão
Sucupira e Tabocas
Sabalangá em ação
Osenga, Acotirene
Zumbi vive no sertão
Zumbi em Danbrapanga
Andalaquituche vital
Nos quilombos de Palmares
A luta monumental
A busca da liberdade
Contra o jugo colonial
O seu povo era do Congo
Do coração africano
Aqualtune na origem
Os negros no oceano
Ganga Zumba Ganga Zona
Sabina, mãe do soberano
Da união com Dandara
Logo Motumbo nasceu
Harmódio foi o segundo
Que Dandara concebeu
Aristogíton por último
Que jamais estremeceu
Sua esposa foi Dandara
Ganga Zumba familiar
Da nobreza africana
À resistência popular
Zumbi dos Palmares é
O Brasil sempre a lutar
Muito sangue derramado
Em cruel inquisição
A opressão portuguesa
A terrível escravidão
O negro deu o seu grito
Fez sua revolução
Zumbi Francisco Brasileiro
Lutou contra a opressão
Foi herói da resistência
Contra a vil exploração
Merece nossos aplausos
É mártir da libertação...



LA MER

Par Paccelli José Maracci Zahler (Brasília, DF)

(version française par Eneida Moraes Miranda Zahler)

Avec sés eaux profondes
La mer est loinde de moi
me lausse petit
Me laisse eppayé

Aprécier de paysage
La plages – que belle vision!
Meilleures que les grillons

Qui nú acossent – solitud!

VOYAGE

Par Paccelli José Maracci Zahler (Brasília, DF)

(version française par Eneida Moraes Miranda Zahler)

La vie en passant,
en passant, em passant
Avec la velocité d’un rayon
Le visage enregêstré

Les cheveux en tombant,
Le corp incliné,
Les amis partant.

Le chemin, sans rettourne,
Passage d’allé

On ne sais pas par oú.

INTERLOCUÇÕES

Por Samuel da Costa (Itajaí, SC)

À meia luz
Na noite fria
***
Surge na solidão noturna
A tua lasciva voz
Em um místico convite teu
Vem me aquecer!
Ouvidado amor
Fruto proibido
Que quero degustar
***
À meia luz
Na noite infinda
Tem infinitos êxtases
***
Vem amado amante
Aventurarmos
No labirinto mágico do prazer
***
Vem magnificência ignota
Completar
O ciclo fechado em mim

CRISE

Par Paccelli José Maracci Zahler (Brasília, DF)

(version française par Eneida Moraes Miranda Zahler)

Je n’ai pas des idées
Je n’ai rien
Le vent a levée
Dans le tenébre de la nuit
tenébre de vie
Je ne sais pas qui je suis

Fantômes, mystères
Nuit froid

Ou jê vas.

EVOCAÇÃO

Por Samuel da Costa (Itajaí, SC)

(Para Bel Lopes)

Um breve
E ebúrneo sorriso teu
Eu de olhos bem fechados
Enlevado
A sonhar contigo
Negra ninfa do bosque
***
Eu
Encerrado e lúgubre
No vergel em chamas
***
És negra flor
Musselinosa e enclausurada
Em uma noctívaga
Digressão
No verve meu
***
Caem as folhas mortas
No meu coração
Pois é outono
Pois é anunciação
***
E uma negra lágrima
Brotou
No lívio rosto teu
Esvaeceu
Trespassou
E se perdeu
Para além do infinito
***
Não vá
Não me abandone
Não agora
Nem nunca
Deusa imortal
Minha negra Valquíria
***
Abriga-te
Para todo o sempre
Na minha écloga
No estro meu

ENEIDA

Par Paccelli José Maracci Zahler (Brasília, DF)

(version française par Eneida Moraes Miranda Zahler)

Je plange dans le bleu
de tes yeux
Et voyage
En harmonie
Envole mon corps
Comprement que la crie
Par fois lourde et bref
Tourne eternelle et legère

Sous la lumière de tes yeux.

RE-LEITURAS NA PÓS-MODERNIDADE

 Por Samuel da Costa (Itajaí, SC)

Um monge budista
Pega fogo em praça pública
E o mundo arde em chamas
***
Um miliciano fortemente armado
Adentra na favela tranquilamente
Enquanto alguém chora
Mas é um alarido
Que ninguém quer ouvir
***
Um decrépito mendigo faminto
Pede uns trocados
Para quem passa
Na esquina de alguma rua
No novo mundo
Enquanto a polícia desce o morro
De uma grande cidade
Sul Americana
***
Uma jovem e decadente meretriz
Parada na esquina
De um bairro periférico
Decidiu de última hora
Fazer um bom desconto
Possivelmente se agradou
Do novo cliente
Jovem e de poucos recursos
***
Um pastor abre aos braços
No púlpito em regozijo
Prega de olhos fechados
Mais algumas boas ofertas
Para Deus que tudo vê
***
Enquanto o mundo gira
E nada acontece
Nada muda

LÍNGUA E LITERATURA PORTUGUESAS NO BRASIL

CONSIDERAÇÕES SOBRE A HISTÓRIA DA LÍNGUA E DA LITERATURA  PORTUGUESAS NO BRASIL – DE COMO SE CRIAM AS DIFERENÇAS ENTRE BRASIL,  PORTUGAL, (E MOÇAMBIQUE)ATÉ SUA DIVISÃO PELA ACADEMIA

 Por Urda Alice Klueger (Blumenau, SC)

                                   Esta é uma parte tão interessante da História, que pensamos que o melhor jeito de conta-la é fazendo de conta que é uma história de fadas. Portanto, vamos lá:
                                   Era uma vez uma grande terra, onde se falavam inúmeras línguas. Eram tantas, que até hoje ainda não sabemos quantas. Só assim de cabeça, podemos citar algumas dúzias delas, e eram línguas de povos que se chamavam Tupinambás, Tabajaras, Guaranis, Caiapós, Tupis, Xinguanos, Tapuias, e muitos outros.
                                   Também era uma vez um pequeno/grande país chamado Portugal, lá do outro lado do mar, que falava uma língua que já vinha lá muito do passado, de antigas tribos indo-européias, e que depois fora bem e bem temperada por invasores chamados Romanos, que, por sua vez, já haviam copiado muito da sua língua de umas gentes mais longínquas ainda, chamadas de Grega.
                                   Estava uma terra lá e uma terra cá, e uma não sabia da outra, e cada qual falava do jeito que queria. Foi então, no anoitecer do século que chamamos de XV, que aquela gente do tal Portugal, que já andava a experimentar a andar “por mares nunca dantes navegados[1], acabou por atravessar o oceano ao qual chamamos de Atlântico, e veio ancorar seus navios bem aqui na terra de grande riqueza de línguas e, aos poucos, aos pouquinhos, apoderou-se dela.
                                   Como é que alguém pode se apoderar de uma terra? A gente já estudou isso na escola: o povo invasor se apodera da economia, transforma os habitantes em escravos, impõe seus costumes, suas leis, sua religião ... e sua língua. Para quem não sabe muito bem como isto funciona, nós aconselhamos ler o livro “Casa Grande e Senzala”, de um antropólogo chamado Gilberto Freyre, ou outro que se chama “As veias abertas da América Latina”, de um escritor chamado Eduardo Galleano.
                                   Vamos considerar, porém, que todos nós já sabemos disto, isto é, que o povo português chegou até aqui aonde nós vivemos e que tomou conta desta nossa terra tão rica em povos e línguas.
                                   No começo, não foi nada fácil: como é que alguém podia se entender com tantas línguas ao mesmo tempo? Temos que pensar que os portugueses eram só alguns, só um pouquinho, só um pequeno povo que morava lá do outro lado do mar e que mandava alguns representantes em audaciosas caravelas, e que os habitantes daqui da nossa terra eram muitos milhões, povos e povos por todos os recantos, povos que tudo sabiam a respeito de como viver harmoniosamente com a fartura da natureza que os envolvia gratuitamente, povos sábios, milenares, que viviam muito bem, obrigada. A diferença entre esses nossos povos e o outro pequeno povo que veio, é que o recém-chegado tinha pavorosas armas de fogo, que não davam a menor chance de defesa aos muitos povos nativos. E a submissão pela força (o que não é uma submissão real) acabou acontecendo.  
                                   Aqueles milhões de pessoas submetidas, porém, falavam tantas línguas, tantas línguas! Como alguém se entender num país assim, onde cada um falava de um jeito? Só havia uma forma de todos se entenderem: criar-se uma língua comum. E como os dominados eram em muito maior número que os dominadores, criou-se primeiro uma língua mais do jeito deles: a chamada “língua geral”, um jeito de falar que chamamos de tupi-guarani, e que era um grande somatório dos muitos tipos de falas que havia por aqui. Vamos colocar aqui como foi isso, na opinião séria de um antropólogo conceituado: [2]O tupi-guarani aproximou entre si tribos e povos indígenas, diversos e distantes em cultura, e até inimigos de guerra, para, em seguida, aproximá-los todos do colonizador europeu.  Foi a língua, essa que se formou da colaboração do culumim com o padre, das primeiras relações sociais e de comércio entre as duas raças, podendo-se afirmar do povo invasor que adotou para o gasto ou o uso corrente a fala do povo conquistado, reservando a sua para uso restrito e oficial. Quando mais tarde o idioma português – sempre o oficial – predominou sobre o tupi, tornando-se, ao lado deste, língua popular, já o colonizador estava impregnado de agreste influência indígena; já o seu português perdera o ranço ou a dureza do reinol; amolecera-se num português sem rr nem ss; infantilizara-se quase, em fala de menino, sob a influência do ensino jesuítico de colaboração com os culumins”.
                                   Pensamos que o nosso grande Gilberto Freyre deixa bem claro o que aconteceu: primeiro, fez-se uma grande língua nova, mistura das muitas outras, onde todos podiam se entender, e depois implantou-se no país de língua homogênea uma outra língua que acabaria homogênea: a do colonizador. Nosso antropólogo também deixa bem claro que alguma coisa aconteceu aí no meio – a língua portuguesa que acabou tomando conta do Brasil já era um português novo, já tinha outra pronúncia, outra entonação, outras palavras.
                                   Como foi que a língua portuguesa do Brasil foi ficando diferente da língua portuguesa de Portugal? Achamos que é muito fácil imaginar o que aconteceu, e aí pedimos a bênção e a licença de Dilthey para justificarmos nossa imaginação: “(...) Revivenciar é criar seguindo a linha dos acontecimentos. Assim progredimos com a História Contemporânea, com um acontecimento ocorrido num país distante ou com algo que acontece na alma de um ser humano que nos está próximo. A revivência é completa quando o acontecimento, depois de passar pela consciência do poeta, do artista ou do historiador, fica para sempre ante nós, fixado numa obra. (...)”[3] 
                                   Autorizados por Dilthey, vamos imaginar. Como não conhecemos todo o vocabulário de Portugal, na época, vamos nos reportar ao que comem hoje os bebês portugueses: papas. É possível que no século XVI eles também comessem papas, é possível que o alimento de um bebê português, naquele século, tenha tido outro nome. O que podemos saber, de certeza, é que os bebês portugueses nunca comeram mingau. Mingau é coisa americana, palavra antiga das gentes antigas que moravam por aqui, era comida de bebê de índio, comida de curumim, comida que os nossos bebês brasileiros comem hoje. Daí para imaginar com a velocidade de um raio, fica muito, muitíssimo fácil: um dia, nasceu um primeiro bebê novo no Brasil, gente de outra etnia[4], filho de um português, e pela primeira vez essa criança alimentou-se de mingau, sem nem saber que lá do outro lado do Oceano os seus antepassados, quando bebês, eram fiéis comedores de papas. E este nosso primeiro bebê de antecedentes portugueses deu-se muito bem com o mingau, e não houve nada na sua vida que o levasse, algum dia, a interessar-se por papas. Era o primeiro momento da primeira cisão entre a língua portuguesa que se falaria no Brasil e a que se estava falando em Portugal. Pensamos que Dilthey aprovaria este nosso raciocínio.
                                   E vieram outras palavras, outros dias, outros séculos. A língua portuguesa falada no Brasil e a falada em Portugal mais e mais se diferenciavam, tanto em vocabulário, quanto em expressão e em sotaque. Observar tal era uma questão de ir-se ou vir-se pelo oceano, a escutar o que se falava em cada uma das margens de língua lusa. Era uma coisa tão visível (e ouvível), que só não percebia quem não queria. Nesse tempo, ainda éramos apenas uma colônia, e quem, por aqui, já estava a fazer literatura, era considerado como escritor português, e como tal classificado. Vejamos o que diz Guilhermino César a respeito: “Um sentimento nacional esperto havia, contudo, madrugado com o primeiro poeta nosso, em idade cronológica, que publicou livro de versos – o baiano Manuel Botelho de Oliveira, cujas silvas, na Ilha da Maré, respiram o ar da terra nativa, revelam a exuberância tropical, os costumes e peculiaridades da América Portuguesa. O mesmo acontece aos que lhe sucederam. Embora se apartem, por esse lado, dos modelos metropolitanos, a dependência política fez com que todos eles fossem considerados portugueses; ninguém p
rocurou, todavia discernir nos diferentes grupos, e em cada autor em particular, o vinco psicológico e a dicção divergentes, a cor local sul-americana, garridamente nossa (...) Mas o primitivismo, a força das coisas brasileiras, não marcou somente, desde cedo, o espírito dos naturais da terra; os estrangeiros nela radicados experimentaram o mesmo sortilégio.” [5]  
                                   Temos aí, portanto, não apenas diferenças na língua, mas na própria literatura, que “respira o ar da terra nativa, revela a exuberância tropical, os costumes e peculiaridades da América Portuguesa.”  Já não era mais a simples questão das papas e do mingau: a literatura trazia no seu bojo diferenças maiores, dizia sobre a farinha de trigo das papas e da farinha de mandioca do mingau, já não permitia comparar Portugal e sua colônia d’Além-Mar, fazer das duas uma coisa só, ou de uma a continuação da outra: outros eram os costumes; criava-se uma língua diferente; e a literatura era a maior prova de que tudo isso estava acontecendo.   
                                   Nesse tempo, finais do século XVIII e começos do século XIX, começa a haver, na Europa, eruditos que passam a se preocupar em estudar a literatura portuguesa, a literatura ibérica ou a literatura do sul da Europa. Podemos citar Friedrich Bouterwek, alemão (1765-1828 – principal obra: “A História da Poesia e da Eloqüência Portuguesa”), Simonde de Sismondi, francês (principal obra publicada em 1813 “De la littérature du Midi de l’Europe”) e Ferdinand Denis, francês (1798-1890 – principal obra:  “Résumé de l’Histoire Littéraire du Portugal, suivi du Résumé de l’Histoire Littéraire du Brésil”)[6] . Com tais estudos, começam as indagações: por que inserir na literatura européia uma outra literatura, que tinha já tão fortes as cores americanas, que já tinha outros tons que, decididamente, não eram mais ibéricos? Muitas coisas são sugeridas, muita discussão tem início. Ferdinand Denis chega a enfatizar sobre a “necessidade de nos apegarmos um pouco mais afetivamente ao país, por via da adesão à temática do Indianismo. E foi isso o que ele fez (...), ao aconselhar que nossos autores olhassem mais para dentro de si mesmos e procurassem estudar cuidadosamente a natureza americana, o nosso barbarismo, o nosso primitivismo, em busca de características originais inexploradas[7].
                                   Estava-se no Império, e a voz de Ferdinand Denis repercutiu imediata e intensamente no nosso meio intelectual carente de guias. As experiências começam. “As Brasilianas” de Araújo Porto Alegre, com vistosos penachos de tucanos, muita paisagem ciclópica e coloridos berrantes, abrem a vereda às passagem dos índios de Gonçalves Dias e de Alencar” [8]Portugal não gosta dessa coisa de se levar para o papel vocábulos, locuções e modos de dizer típicos do Brasil. “Foi sobretudo com o autor de O Guarani que a inteligência portuguesa começou a sentir o abismo que o tempo cavara entre as duas literaturas”[9]. Não se torna difícil para nós, brasileiros, que lemos os autores portugueses e os nossos, e que já estivemos no país deles e vivemos no nosso, perceber essa funda divisão que existe entre as nossas línguas e as nossas literaturas.[10]    
                                   Citando mais uma vez Guilhermino César: “O nosso homem comum já não lê os autores portugueses, simplesmente porque já não os entende, como os entendia outrora, quando a linguagem fixada pela norma culta era a mesma.  Atualmente, não só a norma culta brasileira se distancia bastante da portuguesa, como principalmente o consumidor médio, para quem a literatura é fruição descuidada, sem maiores compromissos críticos, já repele toda obra que o obrigue a tomar contato com uma outra realidade expressa em preferências vocabulares, entoação e colocação discrepantes daquelas a que está habituado”[11].

                                    Diante da análise que até aqui fizemos, acreditamos que fica muito clara a forma como aconteceu a cisão entre a língua portuguesa do Brasil e a de Portugal. Iríamos mais longe: de alguma forma parecida, essa cisão também teria se dado nos outros países de língua portuguesa que existem pelo mundo. Tivemos a oportunidade de conhecer um deles, Moçambique, na África Austral, e pudemos verificar que lá há uma terceira língua portuguesa: é um erro pensar-se que em Moçambique fala-se Português de Portugal – em Moçambique fala-se Português de Moçambique. Também lá naquela terra, algum dia, nasceu uma criança de etnia portuguesa que já não se alimentou de papas – alguma outra palavra havia para algum outro alimento que criou e tornou forte aquela criança de origens portuguesas, e lá também se iniciou uma cisão.
                                   Procuraremos exemplificar o que afirmamos, transcrevendo, abaixo, breves trechos de romances contemporâneos produzidos nos três países citados. A diferença não precisará ser explicada – ela se fará por si só. Seria possível entrarmos, agora, em longa discussão estética sobre as Literaturas Portuguesas, mas já não é o espaço para tal. Os textos abaixo são bastante elucidativos.

PORTUGAL


                                  Comigo é diferente. Dei-te, a propósito, as respostas evasivas e sintéticas que te dei sem, afinal, nada dizerem. A verdade é esta: sou mais nova do que tu. Preciso amadurecer mais para produzir coisa capaz de aparecer, de cara lavada, aos olhos das gentes. Aconteceu o sabido e, afinal, não foi mau. Mas estamos aqui parados a dar à língua e a ver a gente passar no gozo desta noite de Verão em pleno Inverno. Vamos entrar. Antes deixa-me dizer-te: com a tua idade e reconhecendo nos teus escritos qualidade para virem a público quem para tanto tem indiscutível autoridade, está mesmo na altura certa de começares a aparecer. E convence-te: não há nenhum mal, não é nenhuma ofensa aos teus brios, aceitar apoio de quem, sem qualquer propósito mesquinho de quem no-lo queira dar. Um favor? Sem dúvida. Mas um favor não é nenhuma ofensa, além de que qualquer favor com outro favor se paga. (...) Por outro lado (ia dizer ”vindo de onde vieste, filho de Pai pobríssimo, pescador e cavador, tu próprio, nos teus princípios, lado a lado com teu Pai, também pescador e cavador, mesmo com a riqueza vinda de um qualquer Tio imigrante(...) (...).” (Dias de Melo – O Autógrafo)



MOÇAMBIQUE



                                    Então o velho improvisa um xipefo, solta um pano vermelho. Apanha um ramo de palmeira e inventa uma vassoura. Varre o interior do machimbombo enquanto canta. O miúdo desfolha os cadernos sorridente. O velho se recriava, igual ao seu antigo emprego. E é como se o próprio Muidinga estivesse sentado na estação, aguardando o próximo comboio. Tuahir vai juntando os resíduos do queimado numa velha tampa. Depois, sai do autocarro e espalha as cinzas pela terra em volta.
-          O que está a fazer, tio?
-                     Estou semear este adubo. É para amanhã quando chover. Continue, filho. Não pare de ler. (Mia Couto – Terra Sonâmbula)[12]



BRASIL



                                   Seu  Joselito Massaranduba e o moço Paulo Cotovia encontraram-se sozinhos na Avenida. Onde teriam ido parar o padre santarrão, por fora bela viola, por dentro pão bolorento, e a dona ainda bem apetecível? Não lhe fez mossa  o fato de que houvessem ido embora sem se despedir, acostumados que estavam ao trato de gente desconsiderada, forreta, nem muito obrigado, nem dez tostões para matar o bicho. Seu Joselito, estando convidado para o caruru de Jacira, boa camarada, arrastou consigo o colega para a pagodeira.
-          Vai ser do balacobaco.
Laroiê, lá se foi Exu numa cambalhota: trancou a porta do arco-íris.
Oyá já se tocara cidade adentro, cidade afora, cangalha às costas, Eparrei!   (Jorge Amado – O Sumiço da Santa)[13]















[1] Nesse tempo, o país chamado Portugal já aprimorara tanto a sua língua, que já tinha grandes poetas. O da citação chamava-se Luís de Camões, e até hoje é considerado um dos maiores poetas da História (Nota da autora)
[2] FREYRE, Gilberto. Casa Grande e Senzala. São Paulo: Círculo do Livro, não informado o ano nem ed. 587 p. (pag. 180)
[3] DILTHEY, Wilhelm.  “A compreensão dos outros e das suas manifestações de vida”. In: GARDINER, Patrick. Teorias da História. 3 ed. Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1984, pp. 267-270.
[4] Há que se lembrar que, em termos de Humanidade, há apenas uma raça neste planeta: a Raça Humana. (Nota da Autora)
[5] CÉSAR, Guilhermino. Historiadores e Críticos do Romantismo. São Paulo: EDUSP, 1978. 193 p.
[6] CÉSAR, Guilhermino. op. cit., p. XV a XXXII.
[7] CÉSAR, Guilhermino, op. cit., p. XXXIII.
[8] CÉSAR, Guilhermino, op. cit., p. XXXiX.
[9] CÉSAR, Guilhermino, op. cit, p. LV
[10] Voltando ao tema do Indianismo, gostaríamos de acrescentar uma informação. Viajando pela América do Sul, numa livraria de Quito/Equador, pedimos os melhores romances equatorianos. Dentre outros, adquirimos um romance intitulado “Cumandá”, do autor Juán León Mera. Tal romancista era contemporâneo de José de Alencar, e tão Indianista quanto ele. “Cumandá” se parece muito com “O Guarani”. As idéias que rolaram na Europa por aqueles tempos, com certeza não atingiram somente o Brasil. (Nota da autora)
[11] CÉSAR, Guilhermino, op. cit. P. LIV.
[12] COUTO, Mia. Terra Sonâmbula. Rio: Nova Fronteira, 1993. 245 p. , p. 167
[13] AMADO, Jorge. O Sumiço da Santa. Rio: Recorda, 1988. 438 p.

O BARCO

Por Clarisse da Costa (Biguaçu, Sc)

O mar levou
para bem longe
onde não se vê o fi
e nem a linha
do seu horizonte;
Revoadas de pássaros
passam
enquanto a vida
lentamente
vai esvairando;
O tempo
não marca o curso
e o barco
fica à deriva.

PENSANDO NELE

Por Urda Alice Klueger (Blumenau, SC)

                                   (Para meu bisavô Katzwinkel, que veio no século XIX de Kaunas, Lituânia, e para minha prima Ivone Narloch, nascida Katzwinkel)

                                   Se procurar nos velhos documentos da família vou encontrar, mas a verdade é que não sei de cor sequer o seu nome. Minha avó, que estava prestes a fazer 7 anos quando chegou aqui, casou-se com 26 por volta de 1908 ou 1909 – o que significa que eles vieram mais ou menos no ano de 1889... No tempo em que convivi com ela ouvi-a falar muitas vezes nele, mas ela dizia “Meu pai”, e então nunca soube o nome dele, mas ele é muito forte na minha vida.
                                   Estou na madrugada de Natal e penso nele, como pensei tanto hoje, e nos últimos dias, e nos últimos anos, pois quando era mais jovem não chegava a me aprofundar neste assunto. Esta é uma época em que ele fica mais forte dentro de mim, pois fez uma coisa, no seu primeiro Natal no Brasil, que só gente muito especial teria feito: para não deixar passar em branco o Natal das suas crianças, andou 30 quilômetros a pé de ida e 30 quilômetros de volta para, na manhã do dia festivo, suas crianças terem a surpresa de UM docinho de Natal cada uma, escondido sob o prato emborcado na mesa rústica de uma cabana de imigrante dentro da floresta ainda praticamente virgem.
                                   Quem era ele, como era? Penso no meu pai, nos meus tios – o que teriam herdado dele? Penso em mim: a oitava parte da minha genética vem dele, e fico a lembrar como o meu pai era em relação ao Natal, data mágica e sagrada dentro da magia, fazendo tudo o que estivesse ao seu alcance para que cada Natal fosse um sucesso dentro de cada um de nós. Penso em mim e em toda esta curtição do Natal que possuo decerto porque herdei, e que faz com que eu faça todos os ritos, todas as comidas, enfeite a casa, mesmo que seja para comemorar a data apenas com os meus animaizinhos, como já fiz algumas vezes, como fiz hoje.
                                   Com meus cachorros empanturrados de peru saí para a noite, para a beira do mar desta enseada aonde vivo, e me sentei um pouco na beira daquela água que fica magnífica assim de noite, com os diversos pontos de luzes no seu entorno, tanto cá pelo continente quando mais lá longe, na ilha... Fiquei admirando a beleza daquilo tudo e pensando nele, naquele meu bisavô que me passou esta curtição do Natal, e me indaguei coisas: será que algum dia ele pensou que a sua filha teria um filho que teria uma filha, isto é, eu, que em pleno século XXI estaria na beirada do mar a pensar nele e a querer saber mais sobre aquele homem quase estranho mas que vivia tão fortemente nela? Imagino que ele fosse um jovem quando atravessou o grande mar-oceano num navio à vela que saiu de Hamburgo, navegou até Lisboa e depois ficou três meses vendo só “céu e mar”, conforme minha avó Emma Katzwinkel Klueger contava tantas vezes, pois quando se aventurou assim sua criança mais velha ainda não completara sete anos... Imagino que depois daquela travessia é provável que nunca mais tenha visto o mar... O que pensava ele, o que sonhava? A luta pela vida era difícil e perigosa, então – dentre outras coisas, com sua família, estava dentre o fogo cruzado do genocídio Xokleng que acontecia no Vale do Itajaí, coisa tão criminosa e abjeta que foi parar num julgamento na Corte de Haia, na Holanda – a situação era difícil e imagino que sonhava, sobretudo, com segurança, com muita comida para suas crianças, com uma casa mais confortável do que sua cabana de palmitos... É provável que muita gente tenha esquecido dele, depois da luta que foi sua vida, mas agora ele está tão vivo e tão forte aqui dentro de mim!
                                   Então fiquei lá na praia, nesta noite, olhando no entorno e pensando nele, e estar ali, com aquela água linda e aqueles colares de luzes me dava a sensação de estar dentro de um presépio, daqueles que o Frei João Maria o.f.m. fazia na igreja de Nossa Senhora da Glória, na Garcia, em Blumenau, quando eu era pequena, e então ficou mais forte a sensação de que ele estava ali comigo, quiçá em mim, pois se vim dele...
                                   Só queria contar que tenho pensado muito nele, naquele meu bisavô Katzwinkel que um dia veio lá do Mar  Báltico, da cidade de Kaunas, na Lituânia. Como ele é forte em mim!


                                   (Enseada de Brito, 25 de Dezembro de 2016)

ACHO QUE É MONTEZUMA

Por Urda Alice Klueger (Blumenau, SC)

                                   Ninguém sabe de onde ele veio. Um carro dirigido por uma mulher chegou em surdina até esta enseada e jogou-o fora – provavelmente jogou-o no mar para que se afogasse, pois quando começou a ser visto estava todo molhado. Ainda estava molhado quando chegou a minha vez de vê-lo: um montinho de pelos pretos contendo ossos pontiagudos, saltando da pele, assustado, com medo, tremendo de corpo inteiro.
                                  Esta gente daqui é boa para os cachorros – há diversos cachorros de rua, todos de porte grande, vivendo por aqui. Não são surrados, não são desprezados, não vi nenhum menino, até agora, jogar-lhes pedra. Um e outro lhes dá comida, e sempre há sobras de peixe na praia, que garante o seu sustento, sobras essas que agradam sobremaneira ao meu cachorro Atahualpa, que de dondoca de apartamento que vomitava se comesse um marisco promoveu-se rapidamente a cão que traça sem nenhum pejo sobras de rede, com predileção especial pelos peixes podres.
                                   Só que esse é um cachorro miudinho, pequeno, e estava molhado, assustado e tremendo de corpo inteiro – sabe-se lá o que lhe fizeram lá donde veio, sabe-se lá se estava molhado porque a mulher que o trouxe para cá jogou-o no mar e escapou por pura sorte – aqui é uma terra onde todos se conhecem e todos sabem de quem é cada cachorro e cada gato e quem são os cachorros de rua – e ninguém conhecia aquele. Viram a mulher, no entanto, e cobraram dela a maldade, e ela, além de tudo, foi grossa.
                                   Eu segurei seu tremor molhado junto ao coração e no mínimo iria alimentá-lo, e já havia outro bom homem disposto a ficar com ele. Disputamos um pouquinho e o homem o deixou para mim, e o trouxe para casa.
                                   Estava morto de fome. Antes que eu visse, descobriu umas sobras de ração e bolo, na varanda, que estavam ali fazia uns dois dias, cheias de formigas, e devorou aquilo com formigas e tudo. Fui buscar mais ração, um tanto assim para uns dois dias, para um cachorrinho daquele tamanho, e ele devorou tudo de novo. Não dei mais porque já era demais: ele ficou abaulado de tanta comida. Fiquei pensando que passaria mal do estômago quando bebesse a água que já preparara para ele; fiz logo uma caminha macia dentro de uma caixa de papelão, lá na varanda. Ele tomou a água e se ajeitou na caminha – pensei que ele deveria criar algum laço mais afetivo com aquela varanda e fui buscar um osso velho, abandonado há dias por Atahualpa nos fundos da casa. Ele cuidou do osso e dormiu num lençolzinho de borboletas.
                                   Dentro de casa o ciúma grassava com aquele cachorrinho lá na varanda, e fui para o computador com minha gata sentada quase sobre o teclado e Atahualpa não dando a menor folga. Dei uma espiada dissimulada no cachorrinho magro, pequeno e maltratado lá na sua caminha antes de vir para a cama com os meus donos e senhores Atahualpa e Manuelita, que não estão desgrudando de mim, e eles estão há horas ressonando tranquilamente, e cadê eu dormir? Só agorinha entendi: há um cachorrinho lá na varanda, e isto muda toda a ordem das coisas, altera todo o emocional de uma pequena família. Só agora entendi que deveria escrever sobre ele, que é o meu jeito de resolver a vida. São 03:21 h da madrugada e já ouço um galo cantando, e fico pensando que poderia chamar-se Montezuma e no banho morno e carinhoso que preciso dar nele amanhã, e nas sobras que estão na geladeira e que talvez ele coma. Será que aceitará pão com manteiga de manhã?
                                   Pronto, escrevi. Agora acho que vou poder dormir. Montezuma lá na varanda é uma grande e mágica energia que chegou tão inesperadamente que me tirou o sono. Agora que acabei lhe dando um nome, acho que ele vai ter que ficar. Que fazer com mais um cachorrinho além de amá-lo?

(Enseada de Brito, 08 de dezembro de 2016)

Obs.: Hoje, 21.12.2016, faz 13 dias que o cachorrinho faz parte da nossa pequena família. Seu nome acabou sendo Zorrilho, por se parecer muito com uma raposinha.


BLUMENAU, AGORA, É O NORTE

Por Urda Alice Klueger (Blumenau, SC)

(Para meus amigos de fé, irmãos, camaradas Luiz Carlos Amorim e Raul Longo)

                                   Blumenau, agora, é o Norte – nestes nove primeiros dias nos quais já não sou mais daquela cidade, a cada um dia um pouco (ou muito) fui me dando conta das tantas diferenças, que imaginava e que de vez em quando são maiores, mui mui maiores do que supunha, mas só hoje é que se impôs esta realidade ainda não pensada: Blumenau, agora, é o norte.           
                                   Estou aqui como que um pouco espremida entre esta enseada de beleza e calma ímpares, que lá por traz, numa distância que impede que se ouça o resfolegar de um caminhão, por maior que ele seja, é contornada pela BR 101, e entre o aqui e os horizontes que não são marinhos só há, mesmo, a rodovia a cortar o contato direto entre o meu quintal arborizado e a reserva ecológica do Parque do Tabuleiro, onde está guardada ciumentamente a água que abastecerá a região da grande Florianópolis pelos próximos 1.000 anos. Tanto quanto entendi até agora a reserva começa a duas casas daqui – se não fossem as uvas, os diversos tipos de laranjas, plantas alienígenas, eu diria que este meu espaço já é plena reserva, ainda mais com a água pura das montanhas que corre aqui gratuitamente em todas as torneiras e em pequenos ribeirões pela praia, ainda mais com coisas como jabuticabas e maracujás-doces que habitam cá à minha frente. Meu cachorro, aqui, corre livremente por todo o terreno amplo, e pela ruazinha que neste lugar se chama servidão e por toda a amplidão da praia, quanto queira, e quando penso como um cachorro bonzinho como o meu viveu uma vida reprimida lá naquela terra do Norte... 
                                   Blumenau, agora, é o Norte, e como ficou clara tal coisa desde esta manhã, quando despertei sabendo que aqui já não era o vale, que estava muito, muito mais próxima dos campos onde geou na noite passada, e me lembrei de uma vez em que sobrevoei o estado de Santa Catarina no sentido leste-oeste num dia inteiramente sem nuvens, passando mais ou menos aqui por cima de onde estou, vi como se sucederam, rapidamente, as praias, os vales litorâneos, e de repente... UPA!!! – Santa Catarina deu um salto de muitos metros, mais de mil, com certeza, coisa inteiramente visível pela janela do avião, numa escarpa de pedra lisa perpendicular ao chão, e se num instante antes se viam os altos dos vales, num instante depois se sobrevoava os campos planos onde neva e onde a geada pode aparecer ainda no final da primavera, como aconteceu na noite passada.
                                   Tudo é muito perto, conforme pude ver no avião, naquele dia, e conforme o ato de estar viva fez com que eu sentisse hoje. Houve geada lá por cima, e o frio que desceu a encosta e chegou aqui é diferente de qualquer frio que porventura eu já possa ter sentido algum dia no Vale do Itajaí, com sua umidade e seus horizontes apertados – talvez com o tempo saiba explicar isto melhor. Mas foi uma descoberta enorme essa de entender que Blumenau, agora, é o Norte, pois aqui se vive diferente, se sente diferente, se respira diferente, e quando o frio adstringente que rolou lá do alto e alisou as águas da enseada como se ela fosse uma lâmina de vidro, eu fui me sentar na beira da praia e só então entendi o quanto estava ao sul. 
                                   O que queria registrar é que, principalmente num dia como o de hoje, de lua quase cheia, maré alta e geada nos campos, é infinitamente bom estar no Sul!                       

                                   (Enseada de Brito, 12 de novembro de 2016)