Revista literária virtual de divulgação de escritores, poetas e amantes das letras e artes. Editor: Paccelli José Maracci Zahler Todas as opiniões aqui expressas são de responsabilidade dos autores. Aceitam-se colaborações. Contato: cerrado.cultural@gmail.com
domingo, 1 de janeiro de 2017
MENOTTI DEL PICCHIA (1892-1988)
(Arte computacional por Paccelli M. Zahler)
Menotti del Picchia (1892-1988) era filho de imigrantes italianos. Formado em Direito, foi membro do Partido Republicano Paulista e participou da Revolução de 1932. Juntamente com Mário de Andrade, Oswald de Andrade e outros artistas e escritores, participou da Semana de Arte Moderna de 1922. Em 1943, foi eleito para a Academia Brasileira de Letras onde ocupou a cadeira de nº 28. Suas principais obras são: Juca Mulato (1917), Máscaras (1920) e Salomé (1940).
SER FELIZ
Menotti Del Picchia (1892-1988)
Ser feliz! Ser feliz estava em mim, Senhora.. .
Este sonho que ergui o poderia pôr
onde quisesse, longe até da minha dor,
em um lugar qualquer, onde a ventura mora;
onde, quando o buscasse, o encontrasse a toda hora,
tivesse-o em minhas mãos... Mas, louco sonhador,
eu coloquei muito alto o meu sonho de amor...
Guardei-o em vosso olhar e me arrependo agora.
O homem foi sempre assim... Em sua ingenuidade
teme levar consigo o próprio sonho, a esmo,
e oculta-o sem saber se depois o achará...
E, quando vai buscar sua felicidade,
ele, que poderia encontrá-la em si mesmo,
escondeu-a tão bem, que nem sabe onde está !
AS MÁSCARAS
Menotti Del Picchia (1892-1988)
O teu beijo é tão doce, Arlequim...
O teu sonho é tão manso, Pierrô...
Pudesse eu repartir-me
encontrar minha calma
dando a Arlequim meu corpo...
e a Pierrô, minha alma!
Quando tenho Arlequim,
quero Pierrô tristonho,
pois um dá-me prazer,
o outro dá-me o sonho!
Nessa duplicidade o amor todo se encerra:
Um me fala do céu...outro fala da terra!
Eu amo, porque amar é variar
e , em verdade, toda razão do amor
está na variedade...
Penso que morreria o desejo da gente
se Arlequim e Pierrô fossem um ser somente.
Porque a história do amor
só pode se escrever assim:
Um sonho de Pierrô
E um beijo de Arlequim!
BANZO
Por Menotti Del Picchia (1892-1988)
E por que deixou na areia do Congo
a aldeia de palmas;
e porque seus ídolos negros
não fazem mais feitiços;
e porque o homem branco o enganou com miçangas
e atulhou o porão do navio negreiro
com seu desespero covarde;
e porque não vê mais de ânfora ao ombro
a imagem do conga nas águas do Kuango,
ele fica na porta da senzala
de mão no queixo e cachimbo na boca,
varado de angústia,
olhando o horizonte,
calado, dormente,
pensando,
sofrendo,
chorando.
morrendo.
NOITE
Por Menotti del Picchia (1892-1988)
As casas fecham as pálpebras das janelas e dormem.
Todos os rumores são postos em surdina,
todas as luzes se apagam.
Há um grande aparato de câmara funerária
na paisagem do mundo.
Os homens ficam rígidos,
tomam a posição horizontal
e ensaiam o próprio cadáver.
Cada leito é a maquete de um túmulo.
Cada sono em ensaio de morte.
No cemitério da treva
tudo morre provisoriamente.
HARMONIE
Par Paccelli José Maracci Zahler (Brasília, DF)
(version française par Eneida Moraes Miranda Zahler)
La paix
Envayée mon
copr
Et me
transport pour loin,
Conforte et animé
Me plonge par haut
me preenche
et transponne
Non je ne
suis plus gent,
À peine
semelle
En
germinant innocent
Dans le
compas des heures.
ARTISANS
Par Paccelli José Maracci Zahler (Brasília, DF)
(version française par Eneida Moraes Miranda Zahler)
Artisans, combient je vous admire!
Musique,
poesie,
Peinture,
chant,
Carpets,
adorns.
Pure amour
à l’Art!
Ils passant
par le vie
inconnus,
Avec des
amis
À la table
d’un bar.
Donnent
couleurs avec son travail
Notre vie
Et
semmellent espoirs
Dans les
coeurs sans foix
Je vous
admirent artisans
Que prouvent
quotidiennement
Le pouvoir de la
création
De notre mains.
ZUMBI DOS PALMARES - A CONSCIÊNCIA NEGRA
Por Gustavo Dourado (Taguatinga, DF)
(Para Joel Oliveira e todos os afrodescendentes)
Zumbe a consciência negra
Do comandante guerreiro
Mártir de sangue africano
Herói do povo brasileiro
Lutou contra a escravidão
Exemplo no mundo inteiro
Do comandante guerreiro
Mártir de sangue africano
Herói do povo brasileiro
Lutou contra a escravidão
Exemplo no mundo inteiro
1655
O ano do nascimento
1695
Deu-se o falecimento
Morreu e eternizou-se
Deu asas ao movimento
O ano do nascimento
1695
Deu-se o falecimento
Morreu e eternizou-se
Deu asas ao movimento
Zumbi da Serra da Barriga
Um líder descomunal
Combateu a tirania
Baluarte cultural
No Quilombo dos Palmares
Combatente magistral
Um líder descomunal
Combateu a tirania
Baluarte cultural
No Quilombo dos Palmares
Combatente magistral
Brasil - Pernambuco - Alagoas
Zumbe Zumbi em quimbundo
Hoje, União dos Palmares
Deu o seu grito profundo
Zumbi revolucionário
Alma que ilumina o mundo
Zumbe Zumbi em quimbundo
Hoje, União dos Palmares
Deu o seu grito profundo
Zumbi revolucionário
Alma que ilumina o mundo
Serra da Barriga - Cerca do Macaco
Mocambos em profusão
Sucupira e Tabocas
Sabalangá em ação
Osenga, Acotirene
Zumbi vive no sertão
Mocambos em profusão
Sucupira e Tabocas
Sabalangá em ação
Osenga, Acotirene
Zumbi vive no sertão
Zumbi em Danbrapanga
Andalaquituche vital
Nos quilombos de Palmares
A luta monumental
A busca da liberdade
Contra o jugo colonial
Andalaquituche vital
Nos quilombos de Palmares
A luta monumental
A busca da liberdade
Contra o jugo colonial
O seu povo era do Congo
Do coração africano
Aqualtune na origem
Os negros no oceano
Ganga Zumba Ganga Zona
Sabina, mãe do soberano
Do coração africano
Aqualtune na origem
Os negros no oceano
Ganga Zumba Ganga Zona
Sabina, mãe do soberano
Da união com Dandara
Logo Motumbo nasceu
Harmódio foi o segundo
Que Dandara concebeu
Aristogíton por último
Que jamais estremeceu
Logo Motumbo nasceu
Harmódio foi o segundo
Que Dandara concebeu
Aristogíton por último
Que jamais estremeceu
Sua esposa foi Dandara
Ganga Zumba familiar
Da nobreza africana
À resistência popular
Zumbi dos Palmares é
O Brasil sempre a lutar
Ganga Zumba familiar
Da nobreza africana
À resistência popular
Zumbi dos Palmares é
O Brasil sempre a lutar
Muito sangue derramado
Em cruel inquisição
A opressão portuguesa
A terrível escravidão
O negro deu o seu grito
Fez sua revolução
Em cruel inquisição
A opressão portuguesa
A terrível escravidão
O negro deu o seu grito
Fez sua revolução
Zumbi Francisco Brasileiro
Lutou contra a opressão
Foi herói da resistência
Contra a vil exploração
Merece nossos aplausos
É mártir da libertação...
Lutou contra a opressão
Foi herói da resistência
Contra a vil exploração
Merece nossos aplausos
É mártir da libertação...
LA MER
Par Paccelli José Maracci Zahler (Brasília, DF)
(version française par Eneida Moraes Miranda Zahler)
Avec sés eaux
profondes
La mer est loinde
de moi
me lausse
petit
Me laisse
eppayé
Aprécier de
paysage
La plages – que
belle vision!
Meilleures que
les grillons
Qui nú acossent –
solitud!
VOYAGE
Par Paccelli José Maracci Zahler (Brasília, DF)
(version française par Eneida Moraes Miranda Zahler)
La vie en
passant,
en passant, em
passant
Avec la velocité
d’un rayon
Le visage
enregêstré
Les cheveux en
tombant,
Le corp incliné,
Les amis partant.
Le chemin,
sans rettourne,
Passage d’allé
On ne sais pas par oú.
INTERLOCUÇÕES
Por Samuel da Costa
(Itajaí, SC)
À meia luz
Na noite fria
***
Surge na solidão
noturna
A tua lasciva voz
Em um místico convite
teu
Vem me aquecer!
Ouvidado amor
Fruto proibido
Que quero degustar
***
À meia luz
Na noite infinda
Tem infinitos êxtases
***
Vem amado amante
Aventurarmos
No labirinto mágico
do prazer
***
Vem magnificência ignota
Completar
O ciclo fechado em mim
CRISE
Par Paccelli José Maracci Zahler (Brasília, DF)
(version française par Eneida Moraes Miranda Zahler)
Je n’ai pas des idées
Je n’ai rien
Le vent a levée
Dans le tenébre
de la nuit
tenébre de vie
Je ne sais pas qui je suis
Fantômes, mystères
Nuit froid
Ou jê vas.
EVOCAÇÃO
Por Samuel da Costa (Itajaí, SC)
(Para Bel Lopes)
Um breve
E ebúrneo sorriso teu
Eu de olhos bem
fechados
Enlevado
A sonhar contigo
Negra ninfa do bosque
***
Eu
Encerrado e lúgubre
No vergel em chamas
***
És negra flor
Musselinosa e
enclausurada
Em uma noctívaga
Digressão
No verve meu
***
Caem as folhas mortas
No meu coração
Pois é outono
Pois é anunciação
***
E uma negra lágrima
Brotou
No lívio rosto teu
Esvaeceu
Trespassou
E se perdeu
Para além do infinito
***
Não vá
Não me abandone
Não agora
Nem nunca
Deusa imortal
Minha negra Valquíria
***
Abriga-te
Para todo o sempre
Na minha écloga
No estro meu
ENEIDA
Par Paccelli José Maracci Zahler (Brasília, DF)
(version française par Eneida Moraes Miranda Zahler)
Je plange dans le
bleu
de tes yeux
Et voyage
En harmonie
Envole mon corps
Comprement que la
crie
Par fois lourde et bref
Tourne eternelle et legère
Sous la lumière de tes yeux.
RE-LEITURAS NA PÓS-MODERNIDADE
Por Samuel da Costa (Itajaí, SC)
Um monge budista
Pega fogo em praça
pública
E o mundo arde em
chamas
***
Um miliciano
fortemente armado
Adentra na favela
tranquilamente
Enquanto alguém chora
Mas é um alarido
Que ninguém quer
ouvir
***
Um decrépito mendigo
faminto
Pede uns trocados
Para quem passa
Na esquina de alguma
rua
No novo mundo
Enquanto a polícia
desce o morro
De uma grande cidade
Sul Americana
***
Uma jovem e decadente
meretriz
Parada na esquina
De um bairro
periférico
Decidiu de última
hora
Fazer um bom desconto
Possivelmente se
agradou
Do novo cliente
Jovem e de poucos
recursos
***
Um pastor abre aos
braços
No púlpito em
regozijo
Prega de olhos
fechados
Mais algumas boas
ofertas
Para Deus que tudo vê
***
Enquanto o mundo gira
E nada acontece
Nada muda
LÍNGUA E LITERATURA PORTUGUESAS NO BRASIL
CONSIDERAÇÕES SOBRE A HISTÓRIA DA LÍNGUA E DA
LITERATURA PORTUGUESAS NO BRASIL – DE
COMO SE CRIAM AS DIFERENÇAS ENTRE BRASIL,
PORTUGAL, (E MOÇAMBIQUE)ATÉ SUA DIVISÃO PELA ACADEMIA
Por Urda Alice Klueger (Blumenau, SC)
Esta é
uma parte tão interessante da História, que pensamos que o melhor jeito de conta-la
é fazendo de conta que é uma história de fadas. Portanto, vamos lá:
Era
uma vez uma grande terra, onde se falavam inúmeras línguas. Eram tantas, que
até hoje ainda não sabemos quantas. Só assim de cabeça, podemos citar algumas
dúzias delas, e eram línguas de povos que se chamavam Tupinambás, Tabajaras,
Guaranis, Caiapós, Tupis, Xinguanos, Tapuias, e muitos outros.
Também
era uma vez um pequeno/grande país chamado Portugal, lá do outro lado do mar,
que falava uma língua que já vinha lá muito do passado, de antigas tribos
indo-européias, e que depois fora bem e bem temperada por invasores chamados
Romanos, que, por sua vez, já haviam copiado muito da sua língua de umas gentes
mais longínquas ainda, chamadas de Grega.
Estava
uma terra lá e uma terra cá, e uma não sabia da outra, e cada qual falava do
jeito que queria. Foi então, no anoitecer do século que chamamos de XV, que
aquela gente do tal Portugal, que já andava a experimentar a andar “por
mares nunca dantes navegados”[1],
acabou por atravessar o oceano ao qual chamamos de Atlântico, e veio ancorar
seus navios bem aqui na terra de grande riqueza de línguas e, aos poucos, aos
pouquinhos, apoderou-se dela.
Como
é que alguém pode se apoderar de uma terra? A gente já estudou isso na escola:
o povo invasor se apodera da economia, transforma os habitantes em escravos,
impõe seus costumes, suas leis, sua religião ... e sua língua. Para quem não
sabe muito bem como isto funciona, nós aconselhamos ler o livro “Casa Grande e
Senzala”, de um antropólogo chamado Gilberto Freyre, ou outro que se chama “As
veias abertas da América Latina”, de um escritor chamado Eduardo Galleano.
Vamos
considerar, porém, que todos nós já sabemos disto, isto é, que o povo português
chegou até aqui aonde nós vivemos e que tomou conta desta nossa terra tão rica
em povos e línguas.
No
começo, não foi nada fácil: como é que alguém podia se entender com tantas
línguas ao mesmo tempo? Temos que pensar que os portugueses eram só alguns, só
um pouquinho, só um pequeno povo que morava lá do outro lado do mar e que
mandava alguns representantes em audaciosas caravelas, e que os habitantes
daqui da nossa terra eram muitos milhões, povos e povos por todos os recantos,
povos que tudo sabiam a respeito de como viver harmoniosamente com a fartura da
natureza que os envolvia gratuitamente, povos sábios, milenares, que viviam
muito bem, obrigada. A diferença entre esses nossos povos e o outro pequeno
povo que veio, é que o recém-chegado tinha pavorosas armas de fogo, que não
davam a menor chance de defesa aos muitos povos nativos. E a submissão pela
força (o que não é uma submissão real) acabou acontecendo.
Aqueles
milhões de pessoas submetidas, porém, falavam tantas línguas, tantas línguas!
Como alguém se entender num país assim, onde cada um falava de um jeito? Só
havia uma forma de todos se entenderem: criar-se uma língua comum. E como os
dominados eram em muito maior número que os dominadores, criou-se primeiro uma
língua mais do jeito deles: a chamada “língua geral”, um jeito de falar
que chamamos de tupi-guarani, e que era um grande somatório dos muitos tipos de
falas que havia por aqui. Vamos colocar aqui como foi isso, na opinião séria de
um antropólogo conceituado: [2] “O tupi-guarani
aproximou entre si tribos e povos indígenas, diversos e distantes em cultura, e
até inimigos de guerra, para, em seguida, aproximá-los todos do colonizador
europeu. Foi a língua, essa que se
formou da colaboração do culumim com o padre, das primeiras relações sociais e
de comércio entre as duas raças, podendo-se afirmar do povo invasor que adotou
para o gasto ou o uso corrente a fala do povo conquistado, reservando a sua
para uso restrito e oficial. Quando mais tarde o idioma português – sempre o
oficial – predominou sobre o tupi, tornando-se, ao lado deste, língua popular,
já o colonizador estava impregnado de agreste influência indígena; já o seu
português perdera o ranço ou a dureza do reinol; amolecera-se num português sem
rr nem ss; infantilizara-se quase, em fala de menino, sob a influência do
ensino jesuítico de colaboração com os culumins”.
Pensamos
que o nosso grande Gilberto Freyre deixa bem claro o que aconteceu: primeiro,
fez-se uma grande língua nova, mistura das muitas outras, onde todos podiam se
entender, e depois implantou-se no país de língua homogênea uma outra língua
que acabaria homogênea: a do colonizador. Nosso antropólogo também deixa bem
claro que alguma coisa aconteceu aí no meio – a língua portuguesa que acabou tomando
conta do Brasil já era um português novo, já tinha outra pronúncia, outra
entonação, outras palavras.
Como
foi que a língua portuguesa do Brasil foi ficando diferente da língua
portuguesa de Portugal? Achamos que é muito fácil imaginar o que aconteceu, e
aí pedimos a bênção e a licença de Dilthey para justificarmos nossa imaginação:
“(...) Revivenciar é criar seguindo a
linha dos acontecimentos. Assim progredimos com a História Contemporânea, com
um acontecimento ocorrido num país distante ou com algo que acontece na alma de
um ser humano que nos está próximo. A revivência é completa quando o
acontecimento, depois de passar pela consciência do poeta, do artista ou do
historiador, fica para sempre ante nós, fixado numa obra. (...)”[3]
Autorizados
por Dilthey, vamos imaginar. Como não conhecemos todo o vocabulário de
Portugal, na época, vamos nos reportar ao que comem hoje os bebês portugueses: papas. É possível que no século XVI
eles também comessem papas, é possível que o alimento de um bebê português,
naquele século, tenha tido outro nome. O que podemos saber, de certeza, é que
os bebês portugueses nunca comeram mingau.
Mingau é coisa americana, palavra antiga das gentes antigas que moravam por
aqui, era comida de bebê de índio, comida de curumim, comida que os nossos
bebês brasileiros comem hoje. Daí para imaginar com a velocidade de um raio,
fica muito, muitíssimo fácil: um dia, nasceu um primeiro bebê novo no Brasil,
gente de outra etnia[4],
filho de um português, e pela primeira vez essa criança alimentou-se de mingau,
sem nem saber que lá do outro lado do Oceano os seus antepassados, quando
bebês, eram fiéis comedores de papas. E este nosso primeiro bebê de
antecedentes portugueses deu-se muito bem com o mingau, e não houve nada na sua
vida que o levasse, algum dia, a interessar-se por papas. Era o primeiro
momento da primeira cisão entre a língua portuguesa que se falaria no Brasil e
a que se estava falando em Portugal. Pensamos que Dilthey aprovaria este nosso
raciocínio.
E
vieram outras palavras, outros dias, outros séculos. A língua portuguesa falada
no Brasil e a falada em Portugal mais e mais se diferenciavam, tanto em
vocabulário, quanto em expressão e em sotaque. Observar tal era uma questão de
ir-se ou vir-se pelo oceano, a escutar o que se falava em cada uma das margens
de língua lusa. Era uma coisa tão visível (e ouvível), que só não percebia quem
não queria. Nesse tempo, ainda éramos apenas uma colônia, e quem, por aqui, já
estava a fazer literatura, era considerado como escritor português, e como tal
classificado. Vejamos o que diz Guilhermino César a respeito: “Um sentimento nacional esperto havia,
contudo, madrugado com o primeiro poeta nosso, em idade cronológica, que
publicou livro de versos – o baiano Manuel Botelho de Oliveira, cujas silvas,
na Ilha da Maré, respiram o ar da
terra nativa, revelam a exuberância tropical, os costumes e peculiaridades da
América Portuguesa. O mesmo acontece aos que lhe sucederam. Embora se apartem,
por esse lado, dos modelos metropolitanos, a dependência política fez com que
todos eles fossem considerados portugueses; ninguém p
rocurou, todavia
discernir nos diferentes grupos, e em cada autor em particular, o vinco
psicológico e a dicção divergentes, a cor local sul-americana, garridamente
nossa (...) Mas o primitivismo, a força das coisas brasileiras, não marcou
somente, desde cedo, o espírito dos naturais da terra; os estrangeiros nela
radicados experimentaram o mesmo sortilégio.” [5]
Temos
aí, portanto, não apenas diferenças na língua, mas na própria literatura, que “respira o ar da terra nativa, revela a
exuberância tropical, os costumes e peculiaridades da América Portuguesa.” Já não era mais a simples questão das papas e
do mingau: a literatura trazia no seu bojo diferenças maiores, dizia sobre a
farinha de trigo das papas e da farinha de mandioca do mingau, já não permitia
comparar Portugal e sua colônia d’Além-Mar, fazer das duas uma coisa só, ou de
uma a continuação da outra: outros eram os costumes; criava-se uma língua
diferente; e a literatura era a maior prova de que tudo isso estava
acontecendo.
Nesse
tempo, finais do século XVIII e começos do século XIX, começa a haver, na
Europa, eruditos que passam a se preocupar em estudar a literatura portuguesa,
a literatura ibérica ou a literatura do sul da Europa. Podemos citar Friedrich
Bouterwek, alemão (1765-1828 – principal obra: “A História da Poesia e da
Eloqüência Portuguesa”), Simonde de Sismondi, francês (principal obra publicada
em 1813 “De la littérature du Midi de l’Europe”) e Ferdinand Denis, francês
(1798-1890 – principal obra: “Résumé de
l’Histoire Littéraire du Portugal, suivi du Résumé de l’Histoire Littéraire du
Brésil”)[6] . Com
tais estudos, começam as indagações: por que inserir na literatura européia uma
outra literatura, que tinha já tão fortes as cores americanas, que já tinha
outros tons que, decididamente, não eram mais ibéricos? Muitas coisas são
sugeridas, muita discussão tem início. Ferdinand Denis chega a enfatizar sobre
a “necessidade de nos apegarmos um pouco
mais afetivamente ao país, por via da adesão à temática do Indianismo. E foi
isso o que ele fez (...), ao aconselhar que nossos autores olhassem mais para
dentro de si mesmos e procurassem estudar cuidadosamente a natureza americana,
o nosso barbarismo, o nosso primitivismo, em busca de características originais
inexploradas”[7].
Estava-se
no Império, e a voz de Ferdinand Denis repercutiu imediata e intensamente no
nosso meio intelectual carente de guias. As experiências começam. ““As
Brasilianas” de Araújo Porto Alegre, com vistosos penachos de tucanos,
muita paisagem ciclópica e coloridos berrantes, abrem a vereda às passagem dos
índios de Gonçalves Dias e de Alencar” [8]. Portugal não gosta dessa coisa de se
levar para o papel vocábulos, locuções e modos de dizer típicos do Brasil. “Foi sobretudo com o autor de O Guarani que a inteligência portuguesa
começou a sentir o abismo que o tempo cavara entre as duas literaturas”[9]. Não se torna
difícil para nós, brasileiros, que lemos os autores portugueses e os nossos, e
que já estivemos no país deles e vivemos no nosso, perceber essa funda divisão
que existe entre as nossas línguas e as nossas literaturas.[10]
Citando
mais uma vez Guilhermino César: “O nosso
homem comum já não lê os autores portugueses, simplesmente porque já não os
entende, como os entendia outrora, quando a linguagem fixada pela norma culta
era a mesma. Atualmente, não só a norma
culta brasileira se distancia bastante da portuguesa, como principalmente o consumidor
médio, para quem a literatura é fruição descuidada, sem maiores compromissos
críticos, já repele toda obra que o obrigue a tomar contato com uma outra
realidade expressa em preferências vocabulares, entoação e colocação
discrepantes daquelas a que está habituado”[11].
Diante da análise que até aqui fizemos,
acreditamos que fica muito clara a forma como aconteceu a cisão entre a língua
portuguesa do Brasil e a de Portugal. Iríamos mais longe: de alguma forma
parecida, essa cisão também teria se dado nos outros países de língua portuguesa
que existem pelo mundo. Tivemos a oportunidade de conhecer um deles,
Moçambique, na África Austral, e pudemos verificar que lá há uma terceira
língua portuguesa: é um erro pensar-se que em Moçambique fala-se Português de
Portugal – em Moçambique fala-se Português de Moçambique. Também lá naquela
terra, algum dia, nasceu uma criança de etnia portuguesa que já não se
alimentou de papas – alguma outra palavra havia para algum outro alimento que
criou e tornou forte aquela criança de origens portuguesas, e lá também se iniciou
uma cisão.
Procuraremos
exemplificar o que afirmamos, transcrevendo, abaixo, breves trechos de romances
contemporâneos produzidos nos três países citados. A diferença não precisará
ser explicada – ela se fará por si só. Seria possível entrarmos, agora, em
longa discussão estética sobre as Literaturas Portuguesas, mas já não é o
espaço para tal. Os textos abaixo são bastante elucidativos.
PORTUGAL
Comigo
é diferente. Dei-te, a propósito, as respostas evasivas e sintéticas que te dei
sem, afinal, nada dizerem. A verdade é esta: sou mais nova do que tu. Preciso
amadurecer mais para produzir coisa capaz de aparecer, de cara lavada, aos
olhos das gentes. Aconteceu o sabido e, afinal, não foi mau. Mas estamos aqui
parados a dar à língua e a ver a gente passar no gozo desta noite de Verão em
pleno Inverno. Vamos entrar. Antes deixa-me dizer-te: com a tua idade e
reconhecendo nos teus escritos qualidade para virem a público quem para tanto
tem indiscutível autoridade, está mesmo na altura certa de começares a
aparecer. E convence-te: não há nenhum mal, não é nenhuma ofensa aos teus
brios, aceitar apoio de quem, sem qualquer propósito mesquinho de quem no-lo
queira dar. Um favor? Sem dúvida. Mas um favor não é nenhuma ofensa, além de
que qualquer favor com outro favor se paga. (...) Por outro lado (ia dizer
”vindo de onde vieste, filho de Pai pobríssimo, pescador e cavador, tu próprio,
nos teus princípios, lado a lado com teu Pai, também pescador e cavador, mesmo
com a riqueza vinda de um qualquer Tio imigrante(...) (...).” (Dias de Melo – O
Autógrafo)
MOÇAMBIQUE
Então o velho improvisa
um xipefo, solta um pano vermelho. Apanha um ramo de palmeira e inventa uma
vassoura. Varre o interior do machimbombo enquanto canta. O miúdo desfolha os
cadernos sorridente. O velho se recriava, igual ao seu antigo emprego. E é como
se o próprio Muidinga estivesse sentado na estação, aguardando o próximo
comboio. Tuahir vai juntando os resíduos do queimado numa velha tampa. Depois,
sai do autocarro e espalha as cinzas pela terra em volta.
-
O que está a fazer, tio?
-
Estou semear este adubo. É para amanhã quando
chover. Continue, filho. Não pare de ler. (Mia Couto – Terra Sonâmbula)[12]
BRASIL
Seu Joselito Massaranduba e o moço Paulo Cotovia
encontraram-se sozinhos na Avenida. Onde teriam ido parar o padre santarrão,
por fora bela viola, por dentro pão bolorento, e a dona ainda bem apetecível?
Não lhe fez mossa o fato de que
houvessem ido embora sem se despedir, acostumados que estavam ao trato de gente
desconsiderada, forreta, nem muito obrigado, nem dez tostões para matar o
bicho. Seu Joselito, estando convidado para o caruru de Jacira, boa camarada,
arrastou consigo o colega para a pagodeira.
-
Vai ser do balacobaco.
Laroiê, lá se foi Exu numa
cambalhota: trancou a porta do arco-íris.
Oyá já se tocara cidade
adentro, cidade afora, cangalha às costas, Eparrei! (Jorge Amado – O Sumiço da Santa)[13]
[1] Nesse
tempo, o país chamado Portugal já aprimorara tanto a sua língua, que já tinha
grandes poetas. O da citação chamava-se Luís de Camões, e até hoje é
considerado um dos maiores poetas da História (Nota da autora)
[2] FREYRE,
Gilberto. Casa Grande e Senzala. São Paulo: Círculo do Livro, não informado o
ano nem ed. 587 p. (pag. 180)
[3] DILTHEY,
Wilhelm. “A compreensão dos outros e das
suas manifestações de vida”. In: GARDINER, Patrick. Teorias da História. 3 ed.
Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1984, pp. 267-270.
[4] Há que
se lembrar que, em termos de Humanidade, há apenas uma raça neste planeta: a
Raça Humana. (Nota da Autora)
[5] CÉSAR,
Guilhermino. Historiadores e Críticos do Romantismo. São Paulo: EDUSP, 1978.
193 p.
[6] CÉSAR,
Guilhermino. op. cit., p. XV a XXXII.
[7] CÉSAR,
Guilhermino, op. cit., p. XXXIII.
[8] CÉSAR,
Guilhermino, op. cit., p. XXXiX.
[9] CÉSAR,
Guilhermino, op. cit, p. LV
[10]
Voltando ao tema do Indianismo, gostaríamos de acrescentar uma informação.
Viajando pela América do Sul, numa livraria de Quito/Equador, pedimos os
melhores romances equatorianos. Dentre outros, adquirimos um romance intitulado
“Cumandá”, do autor Juán León Mera. Tal romancista era contemporâneo de José de
Alencar, e tão Indianista quanto ele. “Cumandá” se parece muito com “O
Guarani”. As idéias que rolaram na Europa por aqueles tempos, com certeza não
atingiram somente o Brasil. (Nota da autora)
[11] CÉSAR,
Guilhermino, op. cit. P. LIV.
[12] COUTO,
Mia. Terra Sonâmbula. Rio: Nova Fronteira, 1993. 245 p. , p. 167
[13] AMADO,
Jorge. O Sumiço da Santa. Rio: Recorda, 1988. 438 p.
O BARCO
Por Clarisse da Costa
(Biguaçu, Sc)
O mar levou
para bem longe
onde não se vê o fi
e nem a linha
do seu horizonte;
Revoadas de pássaros
passam
enquanto a vida
lentamente
vai esvairando;
O tempo
não marca o curso
e o barco
fica à deriva.
PENSANDO NELE
Por Urda Alice Klueger (Blumenau, SC)
(Para
meu bisavô Katzwinkel, que veio no século XIX de Kaunas, Lituânia, e para minha
prima Ivone Narloch, nascida Katzwinkel)
Se procurar
nos velhos documentos da família vou encontrar, mas a verdade é que não sei de
cor sequer o seu nome. Minha avó, que estava prestes a fazer 7 anos quando
chegou aqui, casou-se com 26 por volta de 1908 ou 1909 – o que significa que
eles vieram mais ou menos no ano de 1889... No tempo em que convivi com ela
ouvi-a falar muitas vezes nele, mas ela dizia “Meu pai”, e então nunca soube o
nome dele, mas ele é muito forte na minha vida.
Estou na
madrugada de Natal e penso nele, como pensei tanto hoje, e nos últimos dias, e
nos últimos anos, pois quando era mais jovem não chegava a me aprofundar neste
assunto. Esta é uma época em que ele fica mais forte dentro de mim, pois fez
uma coisa, no seu primeiro Natal no Brasil, que só gente muito especial teria
feito: para não deixar passar em branco o Natal das suas crianças, andou 30
quilômetros a pé de ida e 30 quilômetros de volta para, na manhã do dia festivo,
suas crianças terem a surpresa de UM docinho de Natal cada uma, escondido sob o
prato emborcado na mesa rústica de uma cabana de imigrante dentro da floresta
ainda praticamente virgem.
Quem era ele,
como era? Penso no meu pai, nos meus tios – o que teriam herdado dele? Penso em
mim: a oitava parte da minha genética vem dele, e fico a lembrar como o meu pai
era em relação ao Natal, data mágica e sagrada dentro da magia, fazendo tudo o
que estivesse ao seu alcance para que cada Natal fosse um sucesso dentro de
cada um de nós. Penso em mim e em toda esta curtição do Natal que possuo
decerto porque herdei, e que faz com que eu faça todos os ritos, todas as
comidas, enfeite a casa, mesmo que seja para comemorar a data apenas com os
meus animaizinhos, como já fiz algumas vezes, como fiz hoje.
Com meus
cachorros empanturrados de peru saí para a noite, para a beira do mar desta
enseada aonde vivo, e me sentei um pouco na beira daquela água que fica
magnífica assim de noite, com os diversos pontos de luzes no seu entorno, tanto
cá pelo continente quando mais lá longe, na ilha... Fiquei admirando a beleza
daquilo tudo e pensando nele, naquele meu bisavô que me passou esta curtição do
Natal, e me indaguei coisas: será que algum dia ele pensou que a sua filha teria
um filho que teria uma filha, isto é, eu, que em pleno século XXI estaria na
beirada do mar a pensar nele e a querer saber mais sobre aquele homem quase
estranho mas que vivia tão fortemente nela? Imagino que ele fosse um jovem
quando atravessou o grande mar-oceano num navio à vela que saiu de Hamburgo,
navegou até Lisboa e depois ficou três meses vendo só “céu e mar”, conforme
minha avó Emma Katzwinkel Klueger contava tantas vezes, pois quando se
aventurou assim sua criança mais velha ainda não completara sete anos...
Imagino que depois daquela travessia é provável que nunca mais tenha visto o
mar... O que pensava ele, o que sonhava? A luta pela vida era difícil e
perigosa, então – dentre outras coisas, com sua família, estava dentre o fogo
cruzado do genocídio Xokleng que acontecia no Vale do Itajaí, coisa tão
criminosa e abjeta que foi parar num julgamento na Corte de Haia, na Holanda –
a situação era difícil e imagino que sonhava, sobretudo, com segurança, com
muita comida para suas crianças, com uma casa mais confortável do que sua
cabana de palmitos... É provável que muita gente tenha esquecido dele, depois
da luta que foi sua vida, mas agora ele está tão vivo e tão forte aqui dentro
de mim!
Então fiquei
lá na praia, nesta noite, olhando no entorno e pensando nele, e estar ali, com
aquela água linda e aqueles colares de luzes me dava a sensação de estar dentro
de um presépio, daqueles que o Frei João Maria o.f.m. fazia na igreja de Nossa
Senhora da Glória, na Garcia, em Blumenau, quando eu era pequena, e então ficou
mais forte a sensação de que ele estava ali comigo, quiçá em mim, pois se vim
dele...
Só queria
contar que tenho pensado muito nele, naquele meu bisavô Katzwinkel que um dia
veio lá do Mar Báltico, da cidade de
Kaunas, na Lituânia. Como ele é forte em mim!
(Enseada
de Brito, 25 de Dezembro de 2016)
ACHO QUE É MONTEZUMA
Por Urda Alice
Klueger (Blumenau, SC)
Ninguém
sabe de onde ele veio. Um carro dirigido por uma mulher chegou em surdina até
esta enseada e jogou-o fora – provavelmente jogou-o no mar para que se afogasse,
pois quando começou a ser visto estava todo molhado. Ainda estava molhado
quando chegou a minha vez de vê-lo: um montinho de pelos pretos contendo ossos
pontiagudos, saltando da pele, assustado, com medo, tremendo de corpo inteiro.
Esta
gente daqui é boa para os cachorros – há diversos cachorros de rua, todos de
porte grande, vivendo por aqui. Não são surrados, não são desprezados, não vi
nenhum menino, até agora, jogar-lhes pedra. Um e outro lhes dá comida, e sempre
há sobras de peixe na praia, que garante o seu sustento, sobras essas que
agradam sobremaneira ao meu cachorro Atahualpa, que de dondoca de apartamento
que vomitava se comesse um marisco promoveu-se rapidamente a cão que traça sem
nenhum pejo sobras de rede, com predileção especial pelos peixes podres.
Só
que esse é um cachorro miudinho, pequeno, e estava molhado, assustado e
tremendo de corpo inteiro – sabe-se lá o que lhe fizeram lá donde veio, sabe-se
lá se estava molhado porque a mulher que o trouxe para cá jogou-o no mar e
escapou por pura sorte – aqui é uma terra onde todos se conhecem e todos sabem
de quem é cada cachorro e cada gato e quem são os cachorros de rua – e ninguém
conhecia aquele. Viram a mulher, no entanto, e cobraram dela a maldade, e ela,
além de tudo, foi grossa.
Eu
segurei seu tremor molhado junto ao coração e no mínimo iria alimentá-lo, e já
havia outro bom homem disposto a ficar com ele. Disputamos um pouquinho e o
homem o deixou para mim, e o trouxe para casa.
Estava
morto de fome. Antes que eu visse, descobriu umas sobras de ração e bolo, na
varanda, que estavam ali fazia uns dois dias, cheias de formigas, e devorou
aquilo com formigas e tudo. Fui buscar mais ração, um tanto assim para uns dois
dias, para um cachorrinho daquele tamanho, e ele devorou tudo de novo. Não dei
mais porque já era demais: ele ficou abaulado de tanta comida. Fiquei pensando
que passaria mal do estômago quando bebesse a água que já preparara para ele;
fiz logo uma caminha macia dentro de uma caixa de papelão, lá na varanda. Ele
tomou a água e se ajeitou na caminha – pensei que ele deveria criar algum laço
mais afetivo com aquela varanda e fui buscar um osso velho, abandonado há dias
por Atahualpa nos fundos da casa. Ele cuidou do osso e dormiu num lençolzinho
de borboletas.
Dentro
de casa o ciúma grassava com aquele cachorrinho lá na varanda, e fui para o
computador com minha gata sentada quase sobre o teclado e Atahualpa não dando a
menor folga. Dei uma espiada dissimulada no cachorrinho magro, pequeno e
maltratado lá na sua caminha antes de vir para a cama com os meus donos e
senhores Atahualpa e Manuelita, que não estão desgrudando de mim, e eles estão
há horas ressonando tranquilamente, e cadê eu dormir? Só agorinha entendi: há um
cachorrinho lá na varanda, e isto muda toda a ordem das coisas, altera todo o
emocional de uma pequena família. Só agora entendi que deveria escrever sobre
ele, que é o meu jeito de resolver a vida. São 03:21 h da madrugada e já ouço
um galo cantando, e fico pensando que poderia chamar-se Montezuma e no banho
morno e carinhoso que preciso dar nele amanhã, e nas sobras que estão na
geladeira e que talvez ele coma. Será que aceitará pão com manteiga de manhã?
Pronto,
escrevi. Agora acho que vou poder dormir. Montezuma lá na varanda é uma grande
e mágica energia que chegou tão inesperadamente que me tirou o sono. Agora que
acabei lhe dando um nome, acho que ele vai ter que ficar. Que fazer com mais um
cachorrinho além de amá-lo?
(Enseada de Brito, 08 de dezembro de 2016)
Obs.: Hoje, 21.12.2016, faz 13 dias que o cachorrinho faz
parte da nossa pequena família. Seu nome acabou sendo Zorrilho, por se parecer
muito com uma raposinha.
BLUMENAU, AGORA, É O NORTE
Por Urda Alice Klueger (Blumenau, SC)
(Para meus amigos de fé, irmãos, camaradas Luiz Carlos
Amorim e Raul Longo)
Blumenau,
agora, é o Norte – nestes nove primeiros dias nos quais já não sou mais daquela
cidade, a cada um dia um pouco (ou muito) fui me dando conta das tantas
diferenças, que imaginava e que de vez em quando são maiores, mui mui maiores
do que supunha, mas só hoje é que se impôs esta realidade ainda não pensada:
Blumenau, agora, é o norte.
Estou aqui
como que um pouco espremida entre esta enseada de beleza e calma ímpares, que
lá por traz, numa distância que impede que se ouça o resfolegar de um caminhão,
por maior que ele seja, é contornada pela BR 101, e entre o aqui e os
horizontes que não são marinhos só há, mesmo, a rodovia a cortar o contato
direto entre o meu quintal arborizado e a reserva ecológica do Parque do
Tabuleiro, onde está guardada ciumentamente a água que abastecerá a região da
grande Florianópolis pelos próximos 1.000 anos. Tanto quanto entendi até agora
a reserva começa a duas casas daqui – se não fossem as uvas, os diversos tipos
de laranjas, plantas alienígenas, eu diria que este meu espaço já é plena
reserva, ainda mais com a água pura das montanhas que corre aqui gratuitamente
em todas as torneiras e em pequenos ribeirões pela praia, ainda mais com coisas
como jabuticabas e maracujás-doces que habitam cá à minha frente. Meu cachorro,
aqui, corre livremente por todo o terreno amplo, e pela ruazinha que neste
lugar se chama servidão e por toda a amplidão da praia, quanto queira, e quando
penso como um cachorro bonzinho como o meu viveu uma vida reprimida lá naquela
terra do Norte...
Blumenau,
agora, é o Norte, e como ficou clara tal coisa desde esta manhã, quando
despertei sabendo que aqui já não era o vale, que estava muito, muito mais
próxima dos campos onde geou na noite passada, e me lembrei de uma vez em que
sobrevoei o estado de Santa Catarina no sentido leste-oeste num dia
inteiramente sem nuvens, passando mais ou menos aqui por cima de onde estou, vi
como se sucederam, rapidamente, as praias, os vales litorâneos, e de repente...
UPA!!! – Santa Catarina deu um salto de muitos metros, mais de mil, com
certeza, coisa inteiramente visível pela janela do avião, numa escarpa de pedra
lisa perpendicular ao chão, e se num instante antes se viam os altos dos vales,
num instante depois se sobrevoava os campos planos onde neva e onde a geada
pode aparecer ainda no final da primavera, como aconteceu na noite passada.
Tudo é muito
perto, conforme pude ver no avião, naquele dia, e conforme o ato de estar viva
fez com que eu sentisse hoje. Houve geada lá por cima, e o frio que desceu a
encosta e chegou aqui é diferente de qualquer frio que porventura eu já possa
ter sentido algum dia no Vale do Itajaí, com sua umidade e seus horizontes
apertados – talvez com o tempo saiba explicar isto melhor. Mas foi uma
descoberta enorme essa de entender que Blumenau, agora, é o Norte, pois aqui se
vive diferente, se sente diferente, se respira diferente, e quando o frio
adstringente que rolou lá do alto e alisou as águas da enseada como se ela
fosse uma lâmina de vidro, eu fui me sentar na beira da praia e só então
entendi o quanto estava ao sul.
O que queria
registrar é que, principalmente num dia como o de hoje, de lua quase cheia,
maré alta e geada nos campos, é infinitamente bom estar no Sul!
(Enseada
de Brito, 12 de novembro de 2016)
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