Revista literária virtual de divulgação de escritores, poetas e amantes das letras e artes. Editor: Paccelli José Maracci Zahler Todas as opiniões aqui expressas são de responsabilidade dos autores. Aceitam-se colaborações. Contato: cerrado.cultural@gmail.com
quarta-feira, 1 de junho de 2016
ONÃ SILVA, A POETISA DO CUIDAR
Onã Silva - A Poetisa do Cuidar é escritora, Presidente da Academia Internacional de Poetas e
Escritores de Enfermagem (Academia IPÊ) e filiada a diversas academias
literárias. Graduada em Enfermagem e Artes Cênicas, Especialista em Saúde
Pública, Mestre em Educação e Doutora. Pesquisadora dos temas Criatividade,
Ludicidade e Enfermagem com Poesia: a arte sensível do Cuidar. Escreve os
seguintes gêneros literários: poesia nas diversas modalidades, romance,
crônica, dramaturgia, novela, contos e outros gêneros. Algumas obras publicadas: A Quadradinha de
Gude; Miriã, uma Enfermeira Bambambã; A Derrota de Penina, Histórias da
Enfermagem no Universo de Cordel, Enfermagem com Poesia e outras. Recordista
pelo RankBrasil Recordes. Premiada em concursos literários e científicos.
MEIO AMBIENTE E A MINHA MÃE
Por Onã Silva (Presidente da Academia Internacional de
Poetas e Escritores de Enfermagem-IPÊ, Brasília, DF)
Menina brejeira
lá na fazenda
Sem chapéu nem
lenço de renda
Enfeitava a sua
roupa bem florida
Com a amarela
flor de margarida.
Verdadeira
princesa do cerrado
No cabelo um
enfeite floreado
Guardiã daquela
grande beleza
Das flores
exóticas da natureza.
Fazia brinco
com o chuveirinho
Com a caliandra
fazia carinho
Esmaltava as
unhas com pétalas
Manequim linda
e muito esbelta.
Fazia colar
bonito e colorido
Com sementes,
bem comprido,
Seu broche era
da flor de lobeira
Modelo
do cerrado: Anália Pereira.
PALAVRAS DO MEU PAI
Por Onã Silva (Presidente da Academia Internacional de Poetas e Escritores de Enfermagem-IPÊ, Brasília, DF)
Conheço um
homem, corpo esguio,
Mestre sábio
que me ensinou:
Derrotar a
maldade,
Desenhar a
verdade,
Ser forte.
Nos meus ombros
plantou
Sementes ricas
de coragem.
Rastros de
mentira? Varreu.
Meus olhos
perspicazes assistiram
E
silenciosamente recolheram
As instruções
retas
Do homem
esguio.
Conheço um
homem que desviou
Meus passos da
incerteza,
Sua voz é chama
acesa,
Traduz força e
certeza
Quem as ouve e
guarda
Será feliz,
como sou.
Bebi suas
palavras,
Saciei.
Sigo em paz...
Porque
te ouvi, Papai!
FLORES PARA LOUISE
Por Onã Silva (Presidente
da Academia Internacional
de Poetas e Escritores de Enfermagem-IPÊ, Brasília, DF)
(Louise Ribeiro foi assassinada
brutalmente no dia 10 de março de 2015)
Mulher-flor
Floresça o seu ser
Seja Flor
Forte como a flor de cacto que resiste as durezas
Seja sempre a pétala do bem-me-quer ante as incertezas
Na guerra que a sua arma
seja a flor rara da tolerância.
Não desanima,
Mulher-Flor.
Seja como a Vitória-régia aberta para encantar
Como a flor de lótus que é sábia a ensinar
E como o girassol reluzente a brilhar.
Seja como a hortênsia para minimizar a dor das
mulheres que sofreram violência
Solidarize-se,
espalhando flores vermelhas e
encarnadas em memória das
Mulheres assediadas,
Mulheres desempregadas,
Mulheres violentadas
e mulheres assassinadas.
Flores Sempre-Vivas contra a impunidade e
espalhando justiça pela cidade.
Mulher-Flor, levante-se
pelas Louises e Marias mil
Para espalhar lírios brancos em prol da cultura da paz
Vai, jardineira da
vida... pregar a paz... falando de dores e flores,
Anda e mostra a sua
natureza de mulher-flor que vem do seu interior,
Das suas raízes e da sua
diversidade floral.
Floresça nesta vida
Onde for
Planta flor
E
Colha amor
E eu, ofereço flores
poéticas para a menina-flor: Louise!
A CANTIGA DAS LAVADEIRAS É MÚSICA QUE ECOA NA FLORESTA
Por Onã
Silva (Presidente da Academia Internacional de Poetas e
Escritores de Enfermagem - IPÊ, Brasília, DF)
Arrastando
a alpercata de couro
Lá
vem a lavadeira
A
Rainha Equilibrista
E
sua coroa de algodão
Uma
trouxa balofa na cabeça
E
uma lata de farofa na mão.
Cantarolando,
some pela estrada
Atrás
da procissão de lavadeiras
Caleja
os pés no cascalho
Até
encontrar o riacho risonho
Que
corre às gargalhadas
E
abraça o mundo
cantando
chuá, chuá!
A
rainha do rio senta-se no trono
Uma
pedra gorducha e cascorenta
Brinca
com as piabas, conta prosa.
Assobia
com os passarinhos
O
refrão das mulheres que lavam:
Ensaboa,
esfrega
bate
e torce.
Ajoelhadas,
estas mulheres reinam nas águas
Reverentes,
diante do quaradouro
–
o altar verdejantemente carinhoso
Beija
muda por muda de roupa
Deixando-as
brancas, brilhantes,
cheirosas,
como a alma de lavadeira.
ASPIRATE
By Pedro Du Bois (Balneário Camboriú, SC)
(Marina Du Bois, English version)
(Marina Du Bois, English version)
Aspirate
the dram
overflowing
from sins
the spilled
chalice
in fluid
over the tablecloth
in random
figures
drawn
draws the
arrival time
and on the
delay feels the dram
aspirated
in annunciation
and wait
the draw
translates
life in
snip
from
everything
as nothing.
SORVER
Por Pedro Du Bois (Balneário Camboriú, SC)
Sorve o gole
transbordante
dos pecados
o cálice entornado
no líquido sobre a toalha
em figuras ao acaso
desenhadas
desdenha a hora da chegada
e no atraso sente o gole
sorvido em anunciação
e espera
o desenho traduz
a vida no recorte
do todo
como nada.
ADVICES
By Pedro Du Bois (Balneário Camboriú, SC)
(Marina Du Bois, English version)
Told to the
son: insist
on your
propositions and do
wathever
you think is the best
the son
resisted
did
and the
best was not enough
for the
father’s predicted
nothing
unquiet
in false
magnitude
told the
son: I insisted and I did
and redid
the redone done
from all
the invested nothing
brought the
facts’ no resolution
and the
doom presented in a shabby
path ragged
from affection
brought my
back
the father
heard and did not insist
on the
son’s return the little
was enough:
said nothing.
CONSELHOS
Por Pedro Du Bois (Balneário Camboriú, SC)
Disse ao filho: insista
em suas propostas e faça
o que entender melhor
o filho resistiu
fez
e o melhor foi pouco
no nada previsto
pelo pai
inquieto
em falsa magnitude
disse o filho: insisti e fiz
e refiz o feito refeito
de todo o nada investido
trouxe a não resolução dos fatos
e o fado apresentado em roto
caminho esfarrapado dos carinhos
trouxe minha volta
o pai ouviu e não insistiu
ao filho o retorno com que o pouco
se fez bastante: nada disse.
TOMORROWS
By Pedro Du Bois (Balneário Camboriú, SC)
(Marina Du
Bois, English version)
Called I do
not present myself
absent I
make myself distant
in repeated
tomorrow
unaware the
prisioner heads
to
inaudible murmur:
I choose
the pill I lie with
and dream
silences
unreflected
from fouls
tomorrows
from the
songs: overshadowed
dormant
clearings
in numbness.
AMANHÃS
Por Pedro Du Bois
(Balneário Camboriú, SC)
Chamado não me apresento
ausente me faço distante
no amanhã repetido
inconsciente o preso se dirige
ao murmúrio inaudível:
escolho a pílula com que deito
e sonho silêncios
irrefletidos
dos amanhãs
nauseabundos
das canções: ofuscadas
clareiras dormentes
nos adormecimentos.
CIDADÃO DO NOVO MILÊNIO (EM CREPÚSCULOS ARTIFICIAIS)
Por Samuel da Costa (ALB, Anápolis, GO)
O velho cidadão
cordial
Ser artificial
Que sabe o seu devido
lugar
No tempo e no espaço
Imutáveis
Insuperáveis
Inimagináveis
***
Mas sou negro sim
Sou preto sim
Novo cidadão
consciente
Pois a minha epiderme
Tem a cor da noite
Cheira o velho mundo
***
Sou eu sim
Negro como a noite
Mas puro como o dia
***
O ser cordial?
Artificial?
Perdeu-se no meio do
nada
Envolto em coisa
alguma
Exilou-se
E não volta mais
Nunca mais
***
Mas ser insubmisso
submergiu
No oceano do
inconformismo
E emergiu
No mar da tranquilidade
Em meio a muitas
incertezas
OUTONO AUSTRAL (SÃO FLORES EM MAIO)
Por Samuel da Costa (ALB, Anápolis, GO)
São noites infindas
Em que absorto fico
Perdido em mim mesmo
Vagando no abismo
simbolista
Dentro de mim
***
Colhi nevoentas
flores em maio
Uma após a outra
Em noites insones
Tendo somente como
companhia
Sinfonias noturnas
E a solidão a dois
Junto a mim
***
Foram flores vagas
que colhi
No teu vergel
encantado
De outono a outono
RE-LEITURAS PÓS-MODERNAS
Por Samuel da Costa (Anápolis, GO)
Um monge budista
Pega fogo em praça
pública
E o mundo arde em
chamas
Um miliciano armado
Adentra na favela
tranquilamente
Enquanto eu grito
Mas ninguém ouviu
***
Um mendigo morrendo de fome
Pedindo uns trocados
Para quem passa
Na esquina da minha
rua
Enquanto a polícia
desce o morro
De uma grande cidade
***
Uma jovem e decadente
meretriz
Parada na esquina
De um bairro
periférico
Faz um desconto
Possivelmente se
agradou do cliente
Jovem e de pouca
grana
***
Um bom pastor abre
aos braços
No púlpito em
regozijo
Prega de olhos fechados
Mais algumas boas ofertas para Deus
Que tudo vê
***
Enquanto o mundo gira
E nada acontece
Nada muda
A MAIS BELA MENINA-MOÇA DE OGUM
Por Samuel da Costa (ALB, Anápolis, GO)
Multiversos em
conflito
Eternamente
irreconciliáveis
E equidistantes
Lutam entre si
Meus múltiplos euʼs
Distribuídos em mim
***
Mais que de repente
Vem à imagem da mais
deslumbrante
Moça negra
Com o turbante na
cabeça
Ritmada
Vem descendo a
ladeira
A mais Bela
Menina-Moça de Ogum
***
Avisem a casa grande
Recolham a chibata
Demitam o capitão do
mato
Guardem o bacamarte
No arsenal
Hoje
Especialmente hoje
Repicarei o meu tambor
Em fúria
Sem medo vou à luta
Com o corpo marcado
E com o cabelo
transado
ABSTRAÇÕES EM NANOSSEGUNDOS
Por Samuel da Costa (ALB, Anápolis, GO)
Não há tempo para
abstrações
Sucumbir à quimérica
companhia
De imortais deusas e
deuses
***
Não há tempo para arrefecer
Na mística bruma
encantada
Muito menos
embrenhar-se
No mítico vergel
Embair-se pelo
abissal canto
Da sacrossanta Kianda
***
Não há mais tempo
Para deleitar-se
complacentemente
Sobre a sombra de uma
árvore
Tendo a hialina
companhia
Da divinal musa
encantada
Se perder entre
sussurros
Ou prantos poéticos
Se se perder
Para além do
infinitude
Do ser absoluto da
negra Valquíria
Pois o mundo real
arde
Em chamas em
nanossegundos
MEIO ANO
Por Maria Félix Fontele (ALB, Brasília, DF)
Junho ressurge de mansinho
Azaleias e begônias em flor
Pássaros cantam ao entardecer
O meado do ano despontou!
Daqui a pouco chegará o inverno
Com seu toque de frieza, a nos retrair
Mas as chamas de tantas fogueiras
Virão aquecer nosso existir!
ALMA MATTHER (POEMA MÃE)
Por Samuel da Costa (ALB, Anápolis, GO)
(Para Lara Alves e
Laura Nogueira Alves)
Alma pura!
Em sonho de
liberdade.
Entre retratos em
branco e preto!
Um sonho... Uma vida!
***
Acorda e sonha...
Um sonho de mulher
Que grita:
- Sonho em ser Mãe !
***
Alma Matther em
transcendência!
Alma pura que diz:
- Quero ser Mãe!
***
Um sonho de mulher.
Alma pura que
brada...
Aos quatro ventos:
- Vou ser mãe!
A ÚLTIMA HORTA DO CENTRO DE BLUMENAU
Por Urda Alice Klueger (Blumenau, SC)
Disseram-me que ele morreu
com 88 anos – deve fazer, portanto uns 60 ou 70 anos que aquela horta existe,
bem na esquina da Alameda com a rua
Coronel Vidal Ramos, que antigamente se chamava rua Paraná. Faz duas semanas
que ele morreu – chamava-se Arno Zendron, e eu o conhecia de vista desde
criança. Pertencia a uma família longeva – é de estranhar que não tenha
completado o século, como outros dos seus irmãos, mas há que se convir que 88
anos também é uma idade respeitável.
Seu Arno Zendron morou quase
naquela esquina que citei acima por toda a sua vida – disse quase, porque ele
morava um tanto fora da esquina – quem morava na esquina era a sua horta.
Faz uns 30 anos que comecei a
prestar atenção naquela horta. Trinta anos atrás Blumenau crescia, sumiam as
vacas de atrás das casas, novas gentes, novas caras e novos costumes vinham
fazer ninho na nossa cidade. Apareceram os supermercados, com vidros
resplandecentes e espelhos nos seus setores de horti-fruti-granjeiros;
apareceram os frangos congelados e resfriados nos longos balcões de vidro,
apareceu o leite “de pacote”. Paulatinamente, as hortas de Blumenau foram
abandonadas; já não se criavam mais galinhas atrás das casas, venderam-se as
vacas.
O símbolo da resistência dos
tempos antigos, em Blumenau, era a horta do seu Arno Zendron: no centro da
cidade, em área nobre, que ia, aos poucos, sendo rodeado por edifícios de
apartamentos, ela resistia, e tinha de tudo: a cebolinha, a salsa, as cenouras,
a couve-flor, a alface, o aipim. Agora de cabeça não lembro bem das árvores,
mas acho que há algumas bananeiras, um pé de pêssego, ralas árvores que não
deveriam tirar o sol das hortaliças. Galinhas também andavam por lá; eram
poucas, mas de vez em quando as havia, bem como se o tempo não tivesse passado,
bem como se ainda se vivesse nos tempos da colonização, antes que o mundo
tomasse o ímpeto de transformação que acabou tomando. Eu prestava a maior
atenção naquela horta; sabia, o tempo todo, o que ela representava, e que ela
era a última.
Faz poucos dias que soube que o
seu Arno Zendron tinha viajado para outras plagas. Fui lá olhar a horta, então.
Ela já está um pouco descuidada, com capim crescendo nos canteiros, bem como
fica uma horta antes do seu último suspiro. Enquanto o seu Arno esteve doente,
ela começou sua despedida. Penso que ninguém irá ressuscitá-la, que está
irremediavelmente condenada à extinção, para dar lugar, daqui à pouco, a um
outro qualquer edifício de apartamentos.
Chegou ao fim a última horta do
centro de Blumenau. É como se tivesse acabado uma antiga resistência. É muito
triste.
DONA PÁSCOA
Por Urda Alice Klueger (Blumenau, SC)
De onde ela era eu não faço ideia –
deveria ter prestado mais atenção às conversas. Conheci-a já ali e velha,
velhíssima, na minha concepção de criança. O ali era um amplo terreno que ainda
há na Rua Sete, em Blumenau, ao lado das terras do Colégio Sagrada Família,
tendo na parte da frente, no limite com a rua,
um prédio de apartamentos chamado Edifício Beckhauser.
Dona
Páscoa comprara aquelas terras em tempos remotos, quando uma pessoa comum podia
comprar terras à rua Sete, e fico pensando no que o meu pai contava, do tempo
em que, adolescente e ajudando o meu avô a entregar hortaliças e outros produtos
agrícolas, andava pela rua Sete enterrado em lama até os joelhos. Como Dona
Páscoa era mais velha que os meus pais, decerto fora naqueles tempos que o meu
pai contava que ela comprara aquelas terras.
Minha
mãe tornou-se amiga da Dona Páscoa ali pela década de 1960, quando eu estaria
pelos dez anos, talvez, e então muitas vezes fui visitar aquela senhora de
comportamento intrigante, junto com a minha mãe.
Naquele
amplo terreno que ainda está lá Dona Páscoa vivia como que num mundo encantado,
povoado pelos seres a quem mais amava no mundo, e que eram... galinhas. Penso
que numa época remota ela fez lá uma moradia humilde e foi construindo
galinheiros no entorno, conforme sua família crescia e crescia. Aí no meio do
caminho, penso que pela década de 1950, alguém apareceu por lá e lhe fez a
proposta: ganharia um apartamento se cedesse terra na beirada da rua Sete para
que se construísse um edifício, e foi daí que surgiu o edifício Beckhauser.
Quem fez o negócio não foi muito honesto, pois em troca de toda aquela faixa de
terra, Dona Páscoa ganhou seu apartamento, sim, mas um apartamento bastante
pequeno, mesmo para a realidade dos amplos apartamentos daquela época. De
qualquer forma, lá estava o apartamento que era dela, bem luxuoso para os
padrões de então, todo mobiliado com coisas bonitas, e eventualmente Dona
Páscoa recebia lá suas visitas ou fazia lá alguma coisa, porque morava, mesmo,
era lá no terreno dos fundos, junto com as suas galinhas. O seu quartinho
modesto não se diferenciava dos tantos quartos e quartinhos que ela mesma fora
construindo, ao longo da sua vida, para as suas amigas galinhas, amigas do
peito mesmo, cada uma com o seu nome, obedecendo ao chamado da sua tutora e
vindo pegar um colinho, quando ela chamava – numa cidade que cada vez se
aburguesava mais, como a nossa, aquela senhora dona de apartamento que nesse
tempo era um luxo em pleno centro da cidade e vivendo num quartinho dentre
galinheiros era uma coisa, no mínimo, insólita, e penso hoje na grande
liberdade que havia dentro de Dona Páscoa, para estar se lixando para a opinião
alheia e levar sua vida do jeito que queria, feliz lá entre as suas galinhas!
Foi
lá no mundo da Dona Páscoa que pela primeira vez na vida vi galinhas que
botavam ovos azuis – aquilo era algo tão fascinante que até a minha mãe ficou
cobiçando ter uma galinha daquelas, e acabou por comprar uma jovem galinha da
Dona Páscoa, que lá em casa recebeu o nome de Carolina. Era uma galinha preta
muito curiosa, e envelheceu na nossa casa.
Carolina,
além de pôr ovos azuis, era a melhor choca que nós já havíamos visto, chocando
ninhos cheios de ovos um depois do outro, e criando seus pintinhos com cuidado
extremo, até que eles ficassem adultos. Infelizmente a sorte de Carolina não
foi muito boa: estava com pintinhos recém-nascidos quando um tumor surgiu na
região do seu bico, e ela não pode mais comer. Usou, no entanto, de toda a
energia que acumulara durante a vida e ficou leve como palha seca, de tanta
fome que já passara, mas não descuidou em nenhum momento de criar mais aquela
ninhada de pintinhos até que eles ficassem adultos. Só
então deu-se o direito de morrer.
Dona
Páscoa, quantas saudades vieram agora! Olhei para a janela do seu apartamento,
por estes dias, lá no Edifício Beckhauser, e as lembranças vieram em enxurrada. Não sei
do que aconteceu no seu fim, mas a senhora deve ter morrido, em algum momento.
Acho que tem um estacionamento naquele lugar, agora. Fico pensando no que
aconteceu com todas aquelas suas galinhas mansinhas e faceiras quando a senhora
se foi – será que tem mais alguém em Blumenau, hoje em dia, que ainda se lembra
da Dona Páscoa?
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