Por Clarisse Cristal (Balneário Camboriú, SC)
Pedi a um amigo
Que levasse nas asas da oração
Com a experiência minha vida mudou,
Sem passar por dificuldades.
Pressionado pela vida,
Pressionado pela força,
Pressionado pela busca,
Pressionado pela paciência,
Pressionado por ajudar os outros,
Pressionado pelo sofrimento,
Pressionado pela liberdade,
Pressionado a ter fé alcançada,
Pressionado a viver a vida normal,
Pressionado a viver ao seu lado com Deus que é o
único.
Patrícia Raphael
A minha pequena família tem uma dinâmica própria, somos eu, a minha mãe e o meu
pai, são três polos diferentes que dividem os mesmos espaços. Eu, estudante de
letras com ênfase em literatura, a minha mãe uma dona de casa um tanto atípica
na minha visão e o meu pai é um economista, o mais realista do trio. E como
temos lá os nossos interesses diferentes e às vezes conflitantes, para o bem da
coletividade e a gentes distintas, se completava e o acordo tácito,
desenvolvemos as reuniões de família dentro e fora de casa. Algumas aventuras
gástricas, pelos restaurantes e similares na nossa cidade e região. Era um
momento que me desagradava e unia o casal, os meus progenitores.
Dito isto, uma das dinâmicas eram os jantares e almoços em casa, às vezes
recebíamos amigos e amigas dos meus pais, eram as tais quebras de rotinas. E
vou me ater aqui em uma dessas quebras de rotina, pois um casal veio jantar com
a gente, era um amigo do meu pai, um amigo de trabalho e o marido dele, um
estrangeiro ligado ao mundo das artes, um pesquisador e crítico, amigo da minha
mãe. Um era a razão, Omar, um administrador freelance, era mais uma consulta
que muitas vezes consultava o meu pai e Efraim amigo da minha mãe. Efraim para
além das pesquisas acadêmicas, aulas era também um antiquário, na verdade era
de uma família de antiquário. Efraim conheceu a minha mãe em umas feiras de
decoração que minha mãe frequentava.
Pois bem, me preparei para uma longa noite de salamaleques, entre cafés
importados, licores e charutos para depois um longo jantar, do que aconteceu na
quarta-feira me tirou do chão. Primeiro que o casal para lá de viajado pelo
mundo afora, tinha hábitos simples, se vestiam de forma simples, pelo que
entendi depois em uma leitura fria, eles se adaptaram a nossa realidade. Logo
vi que não era tão simples assim as coisas, pois se adaptar a lógicas culturais
que não são nossas ou são coisas de sobreviventes ou algo mais obscuro.
Nada de charutos, cigarros aromáticos, nas de champanhe sofisticados e sim
vinhos de consumo rápidos, nas de casacos pomposas e roupas casuais e falares
cotidianos. Aí o meu radar disparou, não demorou muito as nossas aventuras
gastronômicas entrarem na roda, o casal achou divertido a nossa forma de sair
da rotina familiar. E não demorou muito Efraim citou um crítico culinário,
Oswaldo Montenegro, que ia a bares, confrarias e restaurantes refinados e como
ele desmascarou os altos preços. Omar achou muito divertido uma crítica a uma
confraria italiana de vinhos, que vendia taças de vinhos caríssimos, por vinhos
de consumo rápido. Eu gelei nessa hora, pois sim, eu senti o gosto do chope de
vinho, vendido a preço módicos na conveniência aqui da esquina, sim meu amigos
e amigas a congêneres, Oswaldo Montenegro sou eu mesma. E Efraim veio com o
restaurante especializado em frutos do mar, que também vendia os seus pratos a
preços exorbitantes, para quem vive à beira mar é fácil conhecer os paladares
de pescados vendidos a preços módicos das peixarias pequenas aqui perto de
casa. Pratos que são vendidos a preços de três dígitos. Confundir brotas com
linguado e gaiado com atum é muito fácil, não para capeais da beira da praia.
Sim, os meus pais começaram a ligar as pontas soltas, pois ambos olharam para a
minha pessoa, enquanto eu me afundava na minha poltrona sofá e com a minha cara
de pânico.
Passada a nota introdutória, o subtexto, do que estava por vir, Omar me elogiou
os meus textos na malfadada revista Astro-domo e que Efraim estava terminando
um texto sobre uma peça de teatro. Madame Macmillan uma peça obscura e cheia de
histórias estranhas ao seu redor, Efraim disse que a revista Astro-domo tinha
textos que versavam sobre a peça. Explico que a revista Astro-domo tem duas
versões, a versão digital é um veículo de comunicação de arte, cultura e
comportamento. A versão impressa da revista é bem densa e para poucos. E li na
revista, críticas sobre a peça Madame Macmillan, assim como versões da peça,
contos, poesias e fragmentos de romances da mesma. Fora as análises das
animações e curtas metragens.
Confesso que a peça Madame Macmillan, na minha humilde visão é pueril, genérica
e nada do que já se foi feito antes, há muitas versões da mesma e tem várias
versões também genéricas. A peça trata de um dilema, de uma pessoa poderosa, um
possuidor de escravos, com texto longo e maçante. Um magistrado e uma voz que
seria a consciência ou o criador e um desfecho com uma senhora no seu final,
das muitas versões a estrutura é a mesma. Muda a época e o ambiente!
Voltando para a situação embaraçosa, que tinha se transformado naquela opereta
bufa, Efraim estava terminando a pesquisa sobre a tal peça teatral Madame
Macmillan, que estava em fase de revisão. E eu fiquei me perguntando o que
raios eu tinha a haver e a ver com a coisa todo e logo veio a respostas, pois
Efraim falou da revista Astro-domo, da versão impressa, a versão restrita. E
quando falo da restrição da revista Astro-domo, digo que é mesmo para poucos e
nem todo mundo tem acessos a esta versão. E o pesquisar queria ter acesso ao
meu acervo e eu tinha que ter dedos com o caso, pois poderia ficar sem os meus
dedos, isolada do convívio ao meio que fui convidada a entrar. Acertei com
Efraim, entre um gole de café e outro, que iria ver o meu acervo da revista
Astro-domo, sobre os textos relacionados a peça teatral Madame Macmillan. O
preço seria eu ter acesso a pesquisa antes.
Efraim ficou pálido e Omar ficou aflito e para a minha surpresa, que noite de
surpresas meus amigos, amigas e congêneres, os meus pais ficaram curiosos e
queriam saber os detalhes atômicos desta peça teatral. E volto a dizer que para
a minha visão, é uma peça fraca com uma levada ridiculamente sem sal. Efraim
engoliu em seco e começou a falar, disse que conheceu a peça teatral Madame
Macmillan, quando estava em Londres, viagem passeio e estudo. Ele circulava
pelos subterrâneos culturais da velha Londinium, entre punks góticos, músicos e
atores fracassados, amadores e refugiados de todas as guerras e conflitos do
mundo conhecido e desconhecido, segundo o próprio Efraim. Mas bem que poderia
ser um texto meu. Conhecer a peça Madame Macmillan, foi um divisor de águas e
segundo o pesquisador de ofício uma chama acendeu dentro dele. E depois ele
peregrinou nas bibliotecas e arquivos públicos e ter com o mundo das artes
cênicas para conhecer as origens da peça teatral obscura.
Nos sentamos na sala-de-estar Efraim contou que a origem da peça teatral Madame
Macmillan, foi encenada pela primeira vez em Nova York, da autoria da obra e do
grupo teatral que a encenou simplesmente não se sabe. Só se sabe que foi em um
pequeno teatro na Broadway, na segunda metade do século XIX. Há época estavam
debatendo a escravidão e a guerra civil estava batendo na porta e a peça
debatei isto, a escravidão, a estrutura era bem simples. Um dono de fazenda e o
pensamento de libertar os seus escravos, um longo monólogo ambientado no
escritório do fazendeiro no primeiro ato, em um dia de outono. No segundo ato,
se dá na frente da fazenda, onde um advogado dialoga com o fazendeiro e uma voz
que seria a consciência do fazendeiro. E com um final em aberto. E de fato a
peça não foi encenada e sim somente um ensaio aberto ao público, assim disse
Efraim torcendo para que a algazarra terminasse por aí.
Logo pensei que não vi nada demais, era um texto para o momento, que refletia o
momento, mas Efraim contou que houve um caso inusitado, porque depois das
cortinas caíram, não houve a saudação para a plateia. Pois somente um ensaio, o
que houve foi confusão. Uma contrarregra, uma senhora negra entrou e cena, o
palco estava cheio de folhas secas, a mulher começou a varrer o pequeno palco.
Efraim resultou que era a segunda metade do século, negros e negras
praticamente não atuavam no teatro, ver a senhora no palco causou um certo
alvoroço. Daqui para frente os relatos são muitos e díspares, pois a senhora
negra olha para a plateia e dialoga com a audiência. Nessa hora do relato de
Efraim, senti náuseas, uma leve dor de cabeça, que aumentou conforme o relato
se desenrolava. Pois bem, Efraim diz que dali para frente, a pequena e seleta
audiência, se reiterou do pequeno teatro, trôpegos, choravam e riam em
desespero. O pesquisador Efraim, disse que correu boa parte da costa leste e
parte da costa oeste, para fazer a pesquisa, e eram rumores, tendo fontes em
diários, pequenas revistas e obscuros suplementos culturais em diminutos
jornais. As visões vieram fortes, cenas indescritíveis, vi a senhora idosa no
palco, falando um inglês londrino impecável, ela estava vestida como uma
serviçal de uma casa abastada. Pai e mamãe, olhavam para mim e tentei disfarçar
o mal-estar, senti cheiro de pólvora queimada, ouvi gritos de horror, chicotes
estalando e sons de fogo em combustão. Voltei para a realidade e vi os meus
pais, vidrados olhando para Efraim, ele se voltando para a minha pessoa.
Efraim me pediu ter acesso ao meu acervo, ele queria somente confirmar as
fontes pesquisadas, pois a obscura peça teatral Madame Macmillan, nunca fora
encenada oficialmente. E as fontes de Efraim, não eram tão confiáveis assim e
da minha parte, pedi para em enviar as dúvidas e imprecisões da pesquisa e
confrontaria com as informações do meu acervo. Pertencer ao círculo fechado, da
revista Astro-domo, tem lá as suas limitações, que sequer eu poderia levantar a
questão aqui.
E aquela quarta-feira atípica terminou assim, como um sussurro vago nas
sombras, para a minha pessoa, pois os meus progenitores comentaram por semanas
a noite atípica. A obscura peça teatral Madame Macmillan, me persegui por um
bom tempo, na verdade vou carregar essa carga pesada, para todo o sempre. Meses
depois recebemos o livro de Efraim, Madame Macmillan um libelo colossal de
mais de mil páginas, recebemos três exemplares com dedicatórias. Assim como
pedi o meu nome e a revista Astro-domo não apareceram na bibliografia da
obra.
Fragmento
do livro: Do diário de uma louca, texto de Clarisse Cristal, poetisa, contista,
novelista e bibliotecária em Balneário Camboriú, Santa Catarina.