segunda-feira, 1 de setembro de 2025

EDITORIAL

 Quinze Anos da ALB/DF

Por Paccelli José Maracci Zahler (Brasília, DF)

Existem datas que não só marcam o tempo, mas também o transformam. O dia 23 de agosto de 2025 é um desses momentos, pois celebra os 15 anos da Academia de Letras do Brasil, Seccional Distrito Federal (ALB/DF).

Quinze anos não são apenas um número, são atividades tecidas com paixão, encontros que se transformaram em grandes ideias, e vozes que se imortalizaram nas palavras. A ALB/DF nasceu do desejo sincero de unir talentos e nutrir a criação literária em todas as suas formas. O que começou com idealismo, hoje é uma referência de produção intelectual, um abraço caloroso que se estende por todo o Brasil e além.

Ao longo de sua trajetória, a ALB/DF construiu pontes de afeto, conectando gerações, intelectuais, e artesãos das palavras. Abriu as portas para saraus que alimentam a alma, lançou livros que ecoam vozes, e acolheu escritores que davam seus primeiros passos em busca do reconhecimento.

Neste setembro, a Revista Cerrado Cultural celebra a ALB/DF com o coração cheio de gratidão. Comemorar os 15 anos dessa querida Academia, é celebrar o poder da palavra que nos une, a força da coletividade e a beleza de um Brasil que pensa, escreve e transforma.

A ALB/DF é a prova viva de que, em meio a um mundo turbulento, a literatura ainda é o mais puro e nobre dos silêncios — aquele que nos fala diretamente à alma.

Parabéns, ALB/DF! A Revista Cerrado Cultural te abraça e a Cultura te agradece!

ALB/DF, QUINZE ANOS

Por Paccelli José Maracci Zahler (Cadeira nº 9, ALB/DF)

 

À Vânia Moreira Diniz

 

Quinze anos se erguem, sob o céu do Planalto,

Como um templo de letras, sem mármore ou asfalto.

Não se fez de concreto, nem de pedra lavrada,

Mas de verbo e de sonho, em jornada encantada.

 

ALB/DF, farol que não se apaga,

É chama que arde, é rede que embala.

Por entre os Cerrados, sua voz resplandece,

E a alma do Brasil, em seus versos, enobrece.

 

Poetas, escritores, mestres da criação,

Tecem com arte a mais pura expressão.

Cada encontro é um rito, cada fala, um altar,

Onde o saber se ajoelha para o amor celebrar.

 

Quinze primaveras de flores em papel,

Outonos de ideias, sob o céu mais fiel.

A cultura germina, em silêncio profundo,

E a palavra semeia esperança no mundo.

 

São laços de afeto, de tinta e de tempo,

Que bordam memórias, um doce momento.

É o grito do verso, que rompe o vazio,

É o sopro da história, que nunca foi frio.

 

Ergamos a taça, com orgulho e paixão,

A este legado que afaga o coração.

Que venham mais anos, em rima e fulgor,

Pois a ALB/DF é jardim de esplendor.

 

E quando o futuro nos chamar a escrever,

Que a voz da Academia continue a florescer.

Pois no livro da vida, seu nome há de estar,

Como estrela que guia, sem nunca cessar.

 

TERRIM...TERRIM...TERRIM...

 Por Humberto Pinho da Silva (Porto, Portugal) 

 

O telefone toca. Quem será!?

Era a amiga de minha mulher, que queria combinar a visita a sua casa. Era assim outrora, no tempo em que a sociedade convivia e, conversar era uma arte.

Desmudaram-se os tempos.

Agora quando o ouço tilintar, quer seja o fixo ou o móvel, logo penso: " lá vem " injeção"...

Ainda não decorreram muitos anos – ao levantar o auscultador, ouvi deliciosa voz juvenil, tratando-me pelo nome. Disse-me que era responsável por Infantário, e queria levar os petizes à praia. Mas havia crianças, cujos pais não podiam pagar. Lembrou-se de me telefonar, porque certamente seria católico, e daria donativo para suprir essa despesa.

Respondi-lhe que se fosse dar a todos, que me pedem, teria que ir pedir à porta de igreja, como o Mendigo de Camargo.

Alterou-se a menina, argumentando que vinte euros não faziam falta a ninguém, e certamente não queria impedir que, meninos pobres, fossem divertir-se à praia.

 E como lhe dissesse que não; nem conhecia o Infantário. Levantando a voz, atirou-me a praga: " Deus queira que não tenha, um dia, ir pedir à porta de igreja", e desligou brutamente.

O telefone que é objeto útil, transformou-se numa praga:

Terrim ...terrim .... É a empresa telefónica que quer oferecer novo serviço, que não me interessa. Começa a batalha de palavras. Guerra que só termina quando lhe digo a conhecida expressão – " Não é não"

A cada passo telefonam-me: é a concorrente que me oferece melhores vantagens. E os enganos, que chegam do país e de fora, são às dúzias, ...

                  Chego a ouvir o terrim ...terrim..., mais de meia dúzia, por dia! mas agora, quando não conheço o número, desligo.

Teimosamente continua a tilintar: de: manhã, à hora e almoço, de tarde, à noite...até de madrugada!... São em regra confidenciais: incomodam... mas não querem ser incomodados...

O que hei-de fazer? Se a crise maior da sociedade, é de educação; esta, há muito se ausentou, mesmo a elite, que se orgulha de graus académicos ou de nobreza – republicana ou monárquica...

"ISSO É EM PORTUGAL E NA EUROPA!..."

Por Humberto Pinho da Silva (Porto, Portugal) 

 

Estando na companhia amiga de meu cunhado, a almoçar suculenta feijoada brasileira, onde não faltava boa farofa, couve guisada e abundante carne, tudo bem regado com fresco e encorpado vinho gaúcho, este, volvendo-se afetuosamente, para mim, disparou:

- " Por que não obtêm Bilhete de Identidade brasileiro, como o avô de minha mulher, que era português?

Fiquei mudo de espanto.

Ele, risonho, prosseguiu:

 - " Eu ajudo... Casou com comunhão de bens, com paulistana, em Perdizes, perante Juiz de Paz. Foi abençoado na Bexiga. Tem muita família e amigos, no Brasil, e casa em Santa Catarina. Fala português. Tem documentos brasileiros. Não é jovem, em breve estará aposentado. Não vai tirar emprego a ninguém..."

Enquanto assim falava, pensava na alegria que daria a minha mulher de poder passar, em minha companhia, a velhice, no torrão natal.

Fomos à Polícia. Atendeu-nos jovem funcionário. Historiei a situação, apresentei certidão de casamento...

Alegrei-me, quando me disse:" Basta, sendo português, com casa no Brasil, não deve haver obstáculo”.

Gentilmente indicou o fotógrafo, que tirava retratos, com os requisitos necessários.

De fotografias na mão, dirigi-me de novo à Polícia. Mandaram-me preencher papelada...

Depressa se esvaneceram as minhas esperanças. O malfadado computador, teimava em não aceitar os documentos, perante a estupefação do amável empregado.

Então surgiu homem grandalhão, de voz meiga, lamentando o sucedido. "Que fosse á Polícia Federal...Que fosse á Federal..."

Receoso, penetrei no edifício da Federal. Expôs o pretendido. Encaminharam-me para gabinete sobriamente decorado, onde fui recebido por carrancudo guarda. Ao tomar conhecimento do pretendido, a fisionomia desnudou-se, abrindo-se em festivos sorrisos:

- " Para nós, os portugueses, são nossos irmãos. Infelizmente não o posso satisfazer. Mas consegue, direito de residência; mas, cuidado! se ausentar mais de seis meses, caduca! Naturalmente, se pedir, será de novo concedido”.

Respondi-lhe: o brasileiro, para obter a nacionalidade portuguesa, basta-lhe ter ascendência portuguesa, ou residir meia dúzia de anos em Portugal...

Com disfarçado risinho, bailando nos grossos lábios, afirmou:

- "Isso é em Portugal! e na Europa!...”

 

 

 

A ARTE DIGITAL DE CLARISSE DA COSTA

 Por Clarisse da Costa (Biguaçu, SC)









Sobre a autora: Clarisse da Costa é designer gráfico, novelista, contista e cronista em Biguaçu, SC.

JOGOS DE RELAÇÃO

Mulher sorrindo pousando para foto

O conteúdo gerado por IA pode estar incorreto. 

Por Elisa Augusta de Andrade Farina (Teófilo Otoni, MG)

O século XXI caminha a passos largos, em seu bojo as tecnologias vão cada vez mais se aprimorando. A era da informação dos multimeios é a realidade que leva as pessoas a procurarem se informar a seu respeito. Por mais incrível que pareça, nunca tivemos uma situação tão caótica na comunicação interpessoal.                  

O que se falava “face a face”, hoje se clica na Internet, sem o famoso “olho no olho”, uma verdadeira simulação de sentimentos, ocultando a verdade que hoje é quimera dos “sentimentalóides” (aqueles que prezam a ética e a boa convivência).

Os relacionamentos vão de mal a pior entre homem e mulher, silêncio doloroso e persistente entre pais e filhos, clima pesado entre alunos e professores. Todos nós desastrados, ora tolhidos, ora dissimulados e, na maior parte do tempo, mentindo uns aos outros. Estamos assistindo impassíveis à agonia da verdade, deixando a falsidade campear livre, fazendo vítimas entre os inocentes e ingênuos. A civilização pós-moderna se firma cada vez mais no egoísmo, na vaidade numa total indiferença: tudo para mim, para a satisfação do meu ego e o próximo que se dane!

 O ser humano é incapaz de manter uma relação de amizade verdadeira. Em compensação a maior relação se dá em sua tela de computador, seu ciclo social resume-se no Facebook, Instagram, WhatsApp etc. As fofocas, o exibicionismo, a falta de privacidade, as imaturidades virtuais vilipendiam o tempo e as verdadeiras emoções do encontro face a face. A verdade, onde se encontra? Nesse mundo de faz de conta está cada vez mais marcada a dependência psicológica e afetiva, de ciúmes desvairados, de insegurança e traições virtuais, de promiscuidade e baladas regadas a bebidas, sexo, tirando a sanidade mental de todos. Nunca fomos tão frágeis, carentes e inseguros. A angústia é o marco das nossas relações inter e intrapessoais.

Cadê o olho no olho e a sabedoria de dizer: “errei”, “não quero”, “não posso”, “não sei”, “me perdoe”? Quanto mais roupas de grife, tatuagens, corpo sarado, imagem narcísica, maior a baixa autoestima, menos a paz de espírito, maior a nossa fragilidade. A espontaneidade faz parte de um passado, a nossa sociedade nos imputa uma “respeitabilidade” falsa, nos adestra como animais de circo para falar o que não pensamos, expressar o que não sentimos e fazermos o que não desejamos.

Vivemos em contraposição, uma era conflituosa nas nossas relações matrimoniais, na criação e no cuidado dos nossos filhos, nas escolas, no trabalho e entre as demais nações.

Dia virá em que as pessoas buscarão de fato a capacidade de descomplicar os atos que as impedem de pensar, amar, sentir e agir, tendo a aptidão de na maior parte do tempo, falarem o que pensam, expressarem o que sentem e de fazerem o que desejam, resgatando desta forma a busca da verdade.

O sonho de um tempo em que a energia do pensamento seja transmissível, nos tornando mais honestos, habita o recôndito do nosso ser nos impulsionando a viver em paz, sem dissimulações, simplificando a nossa vida e as nossas relações de fato.

Você já pensou nisso? Se não…


Sobre a autora: Elisa Augusta de Andrade Farina é escritora, presidente da Academia de Letras de Teófilo Otoni – ALTO, colaboradora e integrante da turma Manoel de Barros, da Árvore das Letras.

 

MEUS LINDOS SONHOS

Por Liécifran Borges Martins (Cariacica, ES)


Meus lindos sonhos nas

nuvens de algodão.

Floresce com a primavera

florida ao luar.

Meus lindos sonhos de amor.

 

Encantado jardim de amor.

Canta os seus sonhos,

viva cada sonho.

Inspira mais amor.

Espalha flor.

 

Meus lindos sonhos

de primavera.

Me deixaram doce

e singela.

Sonhos belos de amor.

 

ÍNDIO TEM SENTIMENTO

Por Liécifran Borges Martins (Cariacica, ES)


Índio também é gente.

Índio tem sentimento.

Índio tem voz minha gente.

Cuidado com o preconceito.

Ouçam esse povo direito.

 

A beleza indígena

é natural.

Atravessa os rios

do ocidental.

Solta o cabo meu vendaval.

 

Solta o índio

oh Portugal.

Deixa o pau-Brasil

meu pessoal.

Chega de ganância, Portugal.

 

Índio tem sentimento.

Índio sente dor.

Índio precisa ser

valorizado com muito amor.

Índio tem sentimento.

UMA VIDA PERFEITA

Por Liécifran Borges Martins (Cariacica, ES)


Uma vida perfeita

sem problemas.

É decepções.

Ai vida perfeita.

 

Não quero defeitos.

Nem obstáculos

na vida.

Quero uma vida perfeita.

 

Vida, perfeita é.

Sem problemas e

decepções no coração.

Oh vida.

 

Quero uma vida perfeita.

Sem defeitos e obstáculos.

Uma vida perfeita sem

desafios ao dia.

 

FAÇA EM VIDA

Por Liécifran Borges Martins (Cariacica, ES)


Não deixa a morte

chegar.

Para dizer que ama.

Ame ainda em vida.

 

A vida é corrida.

É preciso driblar as

adrenalinas.

Faça em vida.

 

Ame sua vida.

Agradeça à vida.

Seja feliz.

Viva feliz.

 

Siga a sua vida.

Faça versos em

mil poesias.

Faça em vida.

 

 

Instagram: @liecifranborgesmartins

CRÔNICA DO DIA: DEUS EX MACHINA BY THEATER

Por Clarisse Cristal (Balneário Camboriú, SC)

 

Pedi a um amigo

Que levasse nas asas da oração

Com a experiência minha vida mudou,

Sem passar por dificuldades.

Pressionado pela vida,

Pressionado pela força,

Pressionado pela busca,

Pressionado pela paciência,

Pressionado por ajudar os outros,

Pressionado pelo sofrimento,

Pressionado pela liberdade,

Pressionado a ter fé alcançada,

Pressionado a viver a vida normal,

Pressionado a viver ao seu lado com Deus que é o único.

Patrícia Raphael

 

            A minha pequena família tem uma dinâmica própria, somos eu, a minha mãe e o meu pai, são três polos diferentes que dividem os mesmos espaços. Eu, estudante de letras com ênfase em literatura, a minha mãe uma dona de casa um tanto atípica na minha visão e o meu pai é um economista, o mais realista do trio. E como temos lá os nossos interesses diferentes e às vezes conflitantes, para o bem da coletividade e a gentes distintas, se completava e o acordo tácito, desenvolvemos as reuniões de família dentro e fora de casa. Algumas aventuras gástricas, pelos restaurantes e similares na nossa cidade e região. Era um momento que me desagradava e unia o casal, os meus progenitores.

            Dito isto, uma das dinâmicas eram os jantares e almoços em casa, às vezes recebíamos amigos e amigas dos meus pais, eram as tais quebras de rotinas. E vou me ater aqui em uma dessas quebras de rotina, pois um casal veio jantar com a gente, era um amigo do meu pai, um amigo de trabalho e o marido dele, um estrangeiro ligado ao mundo das artes, um pesquisador e crítico, amigo da minha mãe. Um era a razão, Omar, um administrador freelance, era mais uma consulta que muitas vezes consultava o meu pai e Efraim amigo da minha mãe. Efraim para além das pesquisas acadêmicas, aulas era também um antiquário, na verdade era de uma família de antiquário. Efraim conheceu a minha mãe em umas feiras de decoração que minha mãe frequentava.

            Pois bem, me preparei para uma longa noite de salamaleques, entre cafés importados, licores e charutos para depois um longo jantar, do que aconteceu na quarta-feira me tirou do chão. Primeiro que o casal para lá de viajado pelo mundo afora, tinha hábitos simples, se vestiam de forma simples, pelo que entendi depois em uma leitura fria, eles se adaptaram a nossa realidade. Logo vi que não era tão simples assim as coisas, pois se adaptar a lógicas culturais que não são nossas ou são coisas de sobreviventes ou algo mais obscuro.

            Nada de charutos, cigarros aromáticos, nas de champanhe sofisticados e sim vinhos de consumo rápidos, nas de casacos pomposas e roupas casuais e falares cotidianos. Aí o meu radar disparou, não demorou muito as nossas aventuras gastronômicas entrarem na roda, o casal achou divertido a nossa forma de sair da rotina familiar. E não demorou muito Efraim citou um crítico culinário, Oswaldo Montenegro, que ia a bares, confrarias e restaurantes refinados e como ele desmascarou os altos preços. Omar achou muito divertido uma crítica a uma confraria italiana de vinhos, que vendia taças de vinhos caríssimos, por vinhos de consumo rápido. Eu gelei nessa hora, pois sim, eu senti o gosto do chope de vinho, vendido a preço módicos na conveniência aqui da esquina, sim meu amigos e amigas a congêneres, Oswaldo Montenegro sou eu mesma. E Efraim veio com o restaurante especializado em frutos do mar, que também vendia os seus pratos a preços exorbitantes, para quem vive à beira mar é fácil conhecer os paladares de pescados vendidos a preços módicos das peixarias pequenas aqui perto de casa. Pratos que são vendidos a preços de três dígitos. Confundir brotas com linguado e gaiado com atum é muito fácil, não para capeais da beira da praia. Sim, os meus pais começaram a ligar as pontas soltas, pois ambos olharam para a minha pessoa, enquanto eu me afundava na minha poltrona sofá e com a minha cara de pânico.

            Passada a nota introdutória, o subtexto, do que estava por vir, Omar me elogiou os meus textos na malfadada revista Astro-domo e que Efraim estava terminando um texto sobre uma peça de teatro. Madame Macmillan uma peça obscura e cheia de histórias estranhas ao seu redor, Efraim disse que a revista Astro-domo tinha textos que versavam sobre a peça. Explico que a revista Astro-domo tem duas versões, a versão digital é um veículo de comunicação de arte, cultura e comportamento. A versão impressa da revista é bem densa e para poucos. E li na revista, críticas sobre a peça Madame Macmillan, assim como versões da peça, contos, poesias e fragmentos de romances da mesma. Fora as análises das animações e curtas metragens.

            Confesso que a peça Madame Macmillan, na minha humilde visão é pueril, genérica e nada do que já se foi feito antes, há muitas versões da mesma e tem várias versões também genéricas. A peça trata de um dilema, de uma pessoa poderosa, um possuidor de escravos, com texto longo e maçante. Um magistrado e uma voz que seria a consciência ou o criador e um desfecho com uma senhora no seu final, das muitas versões a estrutura é a mesma. Muda a época e o ambiente!

            Voltando para a situação embaraçosa, que tinha se transformado naquela opereta bufa, Efraim estava terminando a pesquisa sobre a tal peça teatral Madame Macmillan, que estava em fase de revisão. E eu fiquei me perguntando o que raios eu tinha a haver e a ver com a coisa todo e logo veio a respostas, pois Efraim falou da revista Astro-domo, da versão impressa, a versão restrita. E quando falo da restrição da revista Astro-domo, digo que é mesmo para poucos e nem todo mundo tem acessos a esta versão. E o pesquisar queria ter acesso ao meu acervo e eu tinha que ter dedos com o caso, pois poderia ficar sem os meus dedos, isolada do convívio ao meio que fui convidada a entrar. Acertei com Efraim, entre um gole de café e outro, que iria ver o meu acervo da revista Astro-domo, sobre os textos relacionados a peça teatral Madame Macmillan. O preço seria eu ter acesso a pesquisa antes.

            Efraim ficou pálido e Omar ficou aflito e para a minha surpresa, que noite de surpresas meus amigos, amigas e congêneres, os meus pais ficaram curiosos e queriam saber os detalhes atômicos desta peça teatral. E volto a dizer que para a minha visão, é uma peça fraca com uma levada ridiculamente sem sal. Efraim engoliu em seco e começou a falar, disse que conheceu a peça teatral Madame Macmillan, quando estava em Londres, viagem passeio e estudo. Ele circulava pelos subterrâneos culturais da velha Londinium, entre punks góticos, músicos e atores fracassados, amadores e refugiados de todas as guerras e conflitos do mundo conhecido e desconhecido, segundo o próprio Efraim. Mas bem que poderia ser um texto meu. Conhecer a peça Madame Macmillan, foi um divisor de águas e segundo o pesquisador de ofício uma chama acendeu dentro dele. E depois ele peregrinou nas bibliotecas e arquivos públicos e ter com o mundo das artes cênicas para conhecer as origens da peça teatral obscura.

            Nos sentamos na sala-de-estar Efraim contou que a origem da peça teatral Madame Macmillan, foi encenada pela primeira vez em Nova York, da autoria da obra e do grupo teatral que a encenou simplesmente não se sabe. Só se sabe que foi em um pequeno teatro na Broadway, na segunda metade do século XIX. Há época estavam debatendo a escravidão e a guerra civil estava batendo na porta e a peça debatei isto, a escravidão, a estrutura era bem simples. Um dono de fazenda e o pensamento de libertar os seus escravos, um longo monólogo ambientado no escritório do fazendeiro no primeiro ato, em um dia de outono. No segundo ato, se dá na frente da fazenda, onde um advogado dialoga com o fazendeiro e uma voz que seria a consciência do fazendeiro. E com um final em aberto. E de fato a peça não foi encenada e sim somente um ensaio aberto ao público, assim disse Efraim torcendo para que a algazarra terminasse por aí.

            Logo pensei que não vi nada demais, era um texto para o momento, que refletia o momento, mas Efraim contou que houve um caso inusitado, porque depois das cortinas caíram, não houve a saudação para a plateia. Pois somente um ensaio, o que houve foi confusão. Uma contrarregra, uma senhora negra entrou e cena, o palco estava cheio de folhas secas, a mulher começou a varrer o pequeno palco. Efraim resultou que era a segunda metade do século, negros e negras praticamente não atuavam no teatro, ver a senhora no palco causou um certo alvoroço. Daqui para frente os relatos são muitos e díspares, pois a senhora negra olha para a plateia e dialoga com a audiência. Nessa hora do relato de Efraim, senti náuseas, uma leve dor de cabeça, que aumentou conforme o relato se desenrolava. Pois bem, Efraim diz que dali para frente, a pequena e seleta audiência, se reiterou do pequeno teatro, trôpegos, choravam e riam em desespero. O pesquisador Efraim, disse que correu boa parte da costa leste e parte da costa oeste, para fazer a pesquisa, e eram rumores, tendo fontes em diários, pequenas revistas e obscuros suplementos culturais em diminutos jornais. As visões vieram fortes, cenas indescritíveis, vi a senhora idosa no palco, falando um inglês londrino impecável, ela estava vestida como uma serviçal de uma casa abastada. Pai e mamãe, olhavam para mim e tentei disfarçar o mal-estar, senti cheiro de pólvora queimada, ouvi gritos de horror, chicotes estalando e sons de fogo em combustão. Voltei para a realidade e vi os meus pais, vidrados olhando para Efraim, ele se voltando para a minha pessoa.

            Efraim me pediu ter acesso ao meu acervo, ele queria somente confirmar as fontes pesquisadas, pois a obscura peça teatral Madame Macmillan, nunca fora encenada oficialmente. E as fontes de Efraim, não eram tão confiáveis assim e da minha parte, pedi para em enviar as dúvidas e imprecisões da pesquisa e confrontaria com as informações do meu acervo. Pertencer ao círculo fechado, da revista Astro-domo, tem lá as suas limitações, que sequer eu poderia levantar a questão aqui.

            E aquela quarta-feira atípica terminou assim, como um sussurro vago nas sombras, para a minha pessoa, pois os meus progenitores comentaram por semanas a noite atípica. A obscura peça teatral Madame Macmillan, me persegui por um bom tempo, na verdade vou carregar essa carga pesada, para todo o sempre. Meses depois recebemos o livro de Efraim, Madame Macmillan um libelo colossal de mais de mil páginas, recebemos três exemplares com dedicatórias. Assim como pedi o meu nome e a revista Astro-domo não apareceram na bibliografia da obra.     

 

Fragmento do livro: Do diário de uma louca, texto de Clarisse Cristal, poetisa, contista, novelista e bibliotecária em Balneário Camboriú, Santa Catarina.

OPERA MUNDI: A REUNIÃO NA RUA L E A REALIDADE SIMULADA

Por Samuel da Costa (Itajaí, SC)

           

            Pegar o trem monotrilho foi uma opção imposta pela conveniência do momento, um transporte rápido, barato e superlotado, mais que perfeito, para se tornar invisível, se perder em meio à multidão dissoluta. Então Aurora, preferiu embarcar em uma subestação, não muito longe do apartamento onde ela mora. Subir a pequena escadaria, não pegar o elevador, foi uma opção pessoal, a programadora de computadores, estava adorando experimentar a quebra de rotina. Acostumada a trabalhar em casa, fazia tempo que ela não experimentava a liberdade, de andar sozinha e em plena luz do dia em meio as massas em um dia de outono.

          Pôr a mão esquerda no leitor biométrico e experimentar as luvas de tecido digital e verificar que elas funcionavam de fato, ela mesmo tinha escrito as linhas de programação da peça bélica. E Aurora, entrou sem problemas no sistema integrado de transporte público individual e coletivo, ela poderia usufruir de uma gama variada de veículos de massa e individual. A pequena subestação de trem estava vazia, não havia ninguém naquele início de manhã outonal. Aurora, passa por um policial uniformizado, o agente do aparato de segurança, olha para a programadora, bate continência. Silencioso o trem monotrilho, para na estação de subestação e Aurora adentra no veículo, que estava vazio, a programadora de computadores prefere não ocupar o assento privativo que tinha direito e ficar de pé. E não demoraria muito aquela pequena digressão, rumo ao desconhecido se iniciar.

            E o trem monotrilho, dei partida e ganhou velocidade, rumou para a cidade vizinha, em uma pequena viagem de linha direta, então uma música passa a ser executada, inundando o vagão do trem, era uma antiga, conhecida e popular sonata escandinava, gélida e monótona. E Aurora, se perdeu em si, ao olhar pela janela e ver a paisagem que passavam em alta velocidade e o ela sente o estomago se embrulhar. A programadora de computadores, então, leva o dedo indicador à orelha esquerda.

            — Gaya meu bem, ligue o módulo de vigilância e alerta total! — Disse Aurora para a Inteligência artificial.   

            — A senhora quer mesmo quebrar o protocolo? — Perguntou Gaya, a voz álgica e robótica, ecoa na mente da programadora de computadores, por alguns segundos apenas.   

            — Só se vive uma vez, meu anjo bom! — Surrou Aurora, parecia confidenciar um segredo constrangedor para uma pessoa amiga.   

            Aurora escutou um leve zunido, uma estática e um mapa com o itinerário e horários se projeta na lente de contato da programadora de computadores, alertas e protocolos de segurança e a patente que ela estava usando naquele dia. A patente de investigadora de primeira classe, agente de campo em atividade secreta de rastreio. Detalhes atômicos de onde do destino, informes sobre os agentes de segurança ativos, agentes infiltrados e as células criminosas ativas, informantes e agentes infiltrados. Modelo rastreio informa os detalhes do elemento a ser encontrado. As luvas de tecido digital, nas mãos de Aurora apertaram e esquentaram, os informes das ferramentas das luvas surgiram na janela projetada nas lentes de contato. As botas de cano alto nos pés de Aurora, se auto ajustaram, apertaram e esquentaram, o informe deu conta dos limites do que os calçados poderiam fazer. As manoplas nos antebraços foram ativadas e as especificações e recomendações também foram informadas. Aurora, tinha escrito as linhas de códigos das peças e ajudado nas especiações na fabricação de cada uma daqueles artefatos.    

            — Algo mais agente investigadora de primeira classe? — Perguntou Gaya e um tom ameno!

            — Por hora não! E durma bem, minha querida! — Disse Aurora, desligando a Inteligência artificial. Mais uma recomendação que ela mesma tinha feito, quando entregou os projetos. Aurora estava orgulhosa do que tinha acabado de ver.

            A programadora de computadores, sente o trem monotrilho acelerar e pensar que a curta viagem, estava para acabar, olha para a janela e vê manchas amorfas devido à alta velocidade. Aurora, então perde a noção do tempo e do espaço, olha para o vagão vazio e deseja, brevemente, a possibilidade de ter alguém naquele ambiente. Quis ativar a inteligência artificial e mudar de ideia, somente espero que a coisa todo se estabilize. E o trem monotrilho acelera, mais e mais e Aurora olha para a janela e vê borrões e manchas de cores variadas, alguma coisa está errada logo ela pensou. A viagem do entre cidades, era para ser bem curta, pois aquela linha direta, sem paradas, a programadora de computadores, reluta em usar a manopla, para ver o que estava acontecendo. 

               O trem monotrilho desacelera e para, uma voz de mulher anuncia o ponta de chegada, a porta se abre e Aurora se prepara para sair do vagão, quando uma multidão adentra pela porta. A programadora de computadores se aperta em meio a massa amorfa e sai do vagão. A subestação de trem estava lotada de pessoas de todas as classes, gêneros, etnias e raças. As lentes de contato nos olhos, da programadora de computadores, fazem as leituras faciais dos indivíduos. O escaneamento, deu conta das informações pessoais dos indivíduos a frente da programadora.  Aurora, sente dores de cabeça e os olhos ardem, a Aurora pensa em desativar o módulo de rastreio, mas não o fez. E ao andar pela subestação de trem, uma vendedora ambulante chama atenção da programadora de computadores, uma pequena mulher de aparência andina de idade indefinida, ela carrega um fina varra cabideiro, com chapéus e óculos escuros. O escaneamento facial, deu conta que era uma indígena Aymara, sem passagens registradas nos serviços de segurança e na agência de imigração. Aurora decide comprar um chapéu para a mulher andina e então escolhe um feminino chapéu australiano, da mesma cor do seu sobretudo que usava. A vendedora ambulante ergueu um pequeno espelho e Aurora viu o seu rosto alvo e pensa que ainda falta algo e a vendedora oferece um par de óculos de sol preto com finos aros redondos. A vendedora ambulante, ergue um cartão de visitas, com um código de pagamento, as lentes nos olhos da programadora de computadores, lê o código de pagamento e um apito soou alto na máquina de pagamentos no bolso da Aymara. As duas trocaram sorrisos e se despediram com os olhares.   

            Ao descer as escadarias da subestação de trem monotrilho, Aurora se depara com uma avenida apinhada de gente, eram vendedores ambulantes, artistas de rua, monges, pastores religiosos, trabalhadoras e trabalhadoras do sexo, pequenos traficantes, vendedores ambulantes e moradores de rua e músicos com os seus instrumentos executando as suas obras. Lojas com artigos populares ladeadas com lojas de departamentos, serviços variados. Aurora olha para cima e vê as passarelas envoltas em tubos, interligando grandes prédios. Obra do arquiteto e urbanista Grege Sanders, prédios inteligentes, residências e comerciais interligados, uma solução apresentada e executada pelo ousado arquiteto e urbanista. Solução apresenta e implantada, depois de sucessivas ondas de criminalidades, intempéries climáticas, migração e emigração e as avalanches tecnológicas. Então as pessoas passaram a trabalhar e estudar em casa, a enclausurarem, uma classe média e uma classe média alta. As ruas, se transformaram em subsolos da sociedade, não que as classes abastadas deixaram de circular nas ruas, pois por motivos variados, por não se adaptarem àquele modo de vida, ou mesmo por questões profissionais. O que Aurora passa a pensar, àquela hora, que na prática, era que a vida de fato ocorria no primeiro piso da sociedade, enquanto cordeiros assustados viviam as suas vidas em uma falsa sensação de segurança.

            E a programadora de computadores, não queria percorrer aqueles poucos metros a pé, até a rua Alcebíades Vanolli, a tal fadada rua L, para a reunião que estava marcada com o obscuro engenheiro mecânico, o mago da robótica, o doutor Henton. Mas a realidade se impõe e Aurora, tentar a sorte, se voluntariou para uma missão e a missão teria o seu término. Ao percorrer uns poucos metros o alarme soou alto no ponto eletrônico no ouvido de Aurora. Então uma sirene dá um alerta em um estrondo, a avenida superlotada, o mar de gente em frenesi, procura abrigo nas calçadas e a avenida ficou deserta. Aurora, olha para cima e vê um guarda pretoriano, no alto de uma das passarelas, se equilibrando em cima do tubo. As lentes de contato, nos olhos da programadora de computadores, se autoajustaram e foca no agente de segurança, a base de dados informa, que é um agente de alta patente em um uniforme de combate. A programadora de computadores, olha para o piso e vê um carro antigo, sem placas, o carro era um Mary Shelley, um carro montado a partir de vários outros carros. As lentes de contato, escanam o interior do carro hibrido ilegal e percebeu quatro elementos lá dentro. A leitura facial, informa que são perigosos elementos facionados, membros de uma rede criminosa extensa.  

            O oficial de alta patente quedou do alto do tubo da passarela, Aurora percebe o ato em câmera lenta, um campo de força se forma abaixo dos pés do homem da lei. Que se expande conforme ele se aproxima do chão. O oficial ganha velocidade enquanto o veículo se aproxima, para de repente e quando os dois corpos se alinham. O homem da lei, ganha velocidade e queda em cima do capô do veículo em fuga. Uma avassaladora onda magnética, se expande e atinge os transeuntes nas calçadas e eles vão ao chão. O oficial, que se afunda no capô do veículo, membros da guarda convencional, fortemente armados, cercaram o veículo e renderam os ocupantes do veículo de fuga. O perímetro da ocorrência é isolado pelas forças de segurança, os ocupantes das calçadas se recompõem e voltam a rotina como se nada estivesse acontecendo. Aurora, processa a cena, os dados são enviados para a inteligência artificial.

            Um riquixá motorizado, que passa ao lado de Aurora, a programadora de computadores levantou a mão, o pequeno veículo elétrico para, a porta se abre e Aurora adentra no veículo. A programadora de computadores lembrou da manobra ousada do oficial de alta patente, uma manobra que ela mesmo criou e recriou várias vezes na realidade simulada.

            — Para onde vamos madame? — Perguntou o motorista do riquixá, um homem alto de pele morena e muito bem vestido.

            — Vamos para rua Alcebides Vanolli! — Respondeu Aurora secamente e aponta para frente.

            O motorista nervoso, acelerou o veículo e passou ao lado da área interditada pelas forças de segurança, Aurora vê os quatro ocupantes do veículo de fuga, que estavam atordoados, com as mãos na cabeça. As lentes de contato nos olhos registraram a cena.

 

Fragmento do livro: Sono paradoxal, texto de Samuel da Costa, poeta, novelista e contista em Itajaí, Santa Catarina.

OPERA MUNDI: A REUNIÃO NA RUA L

Por Samuel da Costa (Itajaí, SC)

 

            — Vais, mesmo usar estas roupas, minha querida! — A voz glacial, ecoou pelo amplo apartamento, com decoração minimalista. Aurora, remoeu os motivos de ter uma relação tóxica, no seio do seu lar e local de trabalho!

            — Desde quando eu te devo satisfações! — Refutou Aurora, para depois lembrar de quem administra o dia a dia das pendências domésticas e a agenda profissional da dona da casa.

            — Não devo mesmo, senhora! Queres escutar alguma música? — Gaya tentou desconversar, mudar o rumo da conversa desagradável, para abrandar a situação constrangedora para ambas.  

            — As catilinárias! Vamos aos clássicos! Vamos a Cícero! — Disse Aurora como se estivesse em um palco de teatro lotado.

            E uma voz professoral de mulher, começou a narrar o discurso do senador romano Cícero! A dona do apartamento, olha para o espelho de corpo inteiro, mandar Gaya narrar algum absurdo maçante é o jeito de Aurora, de encerrar debates inúteis, com Gaya a administradora doméstica. Engenheira de programação, tem mais o que fazer, para perder tempo checando se a geladeira está abastecida ou se as contas da casa estão pagas.

        Aurora reviu a cena, o seu planejamento para o dia, mas como diz o ditado popular, todo mundo tem um plano, até levar uma bordoada na cara. Assim pensou Aurora naquela hora não dava mesmo contar com um planejamento de ação e sim se preparar para o inesperado.

         E parada diante do espelho, Aurora que usava trajes formais, sóbrias, mas era o que ela queria vestir e não o que o ambiente exigia. E balancear o que se deseja, com o que o lugar exige é mesmo um enorme desafio. O salto alto branco gelo, a saia bege claro que passava dos joelhos e o tailer que fazia par com a saia. Era uma receita para o desastre, levando em conta para onde ela pretendia ir. Então tudo desapareceu, surgindo uma saia jeans surrada, um cinto de couro com uma fivela de ossos cruzados constituída de titânio. Pulseiras, brincos e colares, não entraram na equação, na verdade pequenos brincos discretos entraram de forma forçada!

            — Vais usar uma sombrinha pelo menos? — A fala pastosa de Gaya, divertiu Aurora. A engenheira, ignoro por completo a pergunta da outra.

            O barulho da esteira em movimento trouxe Aurora para a realidade, o tanque robô vinha com os acessórios, a programadora não suportava os robôs humanoides. A dona da casa, não suporta a ideia de interagir com outros humanos, na intimidade dela, nem a ideia vaga de ter uma outra pessoa no convívio diário. Os modelos humanoides robóticos domésticos, tiram o sono da programadora, então adaptar peças bélicas desumanizadas, para os afazeres domésticos, foi uma sugestão de um colega de profissão, um funcionalista. A peça bélica, trazia uma bandeja, Aurora então olha para a bandeja com a caixa de cristal, um kit maquiagem, com a tampa aberta, a máscara e as luvas de tecido digital eram os itens em destaque. Aurora calça as luvas e dispensa a máscara, escolhe uma lente de contato, e escolhe o modelo de combate, das opções de transmissores auriculares, escolhe a modelo de vigilância e leva até a orelha esquerda.    

            — Vais a guerra madame? — Perguntou a assistente doméstica Gaya, certa preocupação no tom de voz.

            — Quantas perguntas! Já disse que não te devo explicações e para onde eu vou ou deixo de ir não é da tua conta. Têm coisas, que não deve perguntar para que não se deva mentir. — O tom gélido de Aurora, deu pistas que do rumo das coisas dali para frente, um silêncio abissal tomou conta do ambiente.

            Aurora reviu de novo todas as possibilidades, mesmo sabendo que não as tinha, sendo uma mulher prática, sabendo dos protocolos, que aliás ela ajudou a compor, ela tomou as suas providências. Alguns olhos digitais a vigiavam, um preço a pagar pelas decisões, os projetos que se envolveram ao longo dos anos.  No dia anterior, Aurora procurou a rede de comunicação subterrânea, uma rede onde pessoas do submundo, criminosos em sua maioria, se comunicam. Simples e complexa ao mesmo tempo, envolvendo trocas e bilhetes em certos pontos da cidade, no comércio popular, hotéis e motéis baratos, mas também envolvendo moradores de ruas e o comércio do sexo. Aurora, passou longos anos trabalhando em programas de computadores e aplicativos para o aparato de segurança, empresas particulares de segurança e grandes corporações. A programadora teve acessos a uma gama de arquivos da segurança pública e privada.

            A programadora, dá uma última olhada no espelho e se lembra de quem era e da sua condição, levou a mão até o cabideiro e pegou e olhou o próprio reflexo no espelho e se sentiu ridícula. Ao caminhar em direção a porta, os barulhos do salto agulha batendo no piso atormenta Aurora, que para e volta para o quarto de guarda-roupa. Vai até o compartimento de calçados e pega a bota salto alto cano longo de vinil, uma peça militarizada. Aurora sorri ao pegar o calçado e sorri mais ainda depois que os vestiu.

            — E a agenda do dia senhora? — A voz de Gaya pegou Aurora à beira da porta!

            E Aurora, repassou a agenda do dia, responder todas as correspondências eletrônicas, mandar mensagens de voz para os pais, dando conta que ela estava bem, cancelar e reagendar todas as reuniões do dia, programar os robôs domésticos de aspirar todos os cantos da casa. Lembrou de regar as plantas e alimentar os animais domésticos da casa, até que Gaya lembrou que não existiam seres a base de carbono habitante. Por fim Aurora estava pronta e partiu rumo à reunião na rua L.

 

Fragmento do livro: Sono paradoxal, texto de Samuel da Costa, poeta, novelista e contista em Itajaí, Santa Catarina.

CRÔNICA DO DIA: A DAMA DO LAGO (PRIMEIRA PARTE)

Por Clarisse Cristal (Balneário Camboriú, SC)

‘’Caída na orla do lago, eu só conseguia pensar em meus filhos.

A água do lago estava suja e não era cristalina como antes.

Entrei nas águas e fiquei ali, no lago por duas horas.

Maldito lago, era praticamente perto da minha residência...

 Morávamos em áreas de terra, e sempre havia desabamentos’’

Fabiane Braga Lima

 

            Dias desses o meu pai, que é economista de profissão, recebeu uns dados para analisar, coisas da tal da engenharia económica, creio eu. E para ser mais específica, os dados davam conta de certas anomalias estatísticas de uma pequena localidade. Eu não me interesso muito por números e dados tabulados, pois sou da cadeira de humanas e não da exatas e um dia eu tive a pachorra de dizer isto para o meu velho pai. Levei um baita puxão de orelhas, pois segundo o economista que tenho em casa, disse que a engenharia econômica não é somente sobre tabular frios dados e probabilidades então somente. E estamos na tal da pós-modernidade líquida, em que vivemos na atualidade em que debulho estas linhas. Há sim pesquisas acadêmicas premiadas, onde os estudos do mundo das finanças, por assim dizer, são endossados pelas correntes das áreas das cadeiras das humanidades, que se debruçam a desvendar os muitos complexos comportamentos de seres humanos e as suas decisões financeiras. Porque a ciência econômica pura e simples, também trata de comportamento humano, coisas que as exatidões do universo numérico, não dão conta por assim dizer. Resumindo, os números dizem o que das coisas e não dizem os porquês das coisas.

            Não cabe aqui, me aprofundar no papo chato academicista, e vamos direto ao assunto. O amigo do meu pai, era um bem sucedido e respeitado corretor de seguros, um amigo do tempo de faculdade do meu velho. O homem é um contemporâneo da cadeira de ADM, administração de empresas para os íntimos. E também um especialista dos números, um especialista da engenharia económica, ele alinhado com as correntes ligadas às cadeiras das humanidades. Correntes do pensamento, que se dedicam a pesquisar os comportamentos humanos referentes às decisões e preferências financeiras.

           E a revisão dos dados, apresentada ao meu pai, era uma peculiar, para não dizer, aberrante anomalia, que surgiu ao tabular os dados de uma pequena localidade. De repente, segundo os números analisados, houve uma enorme contratação dos serviços de várias corretoras de seguros. Pelo que entendi, as corretoras de seguro trocam figurinhas entre si. Mas voltemos ao que interessa aqui, eu explico o contexto socioeconômico da tal aberração econômica. Uma gama de pessoas endinheiradas, oriundas de uma mesma localidade paupérrima, estavam contratando e comprando bens e serviços caríssimos. Pessoas de várias áreas de atuação, espalhadas por todo o país, pessoas de várias idades e escolaridade, eram de etnias variadas, religiões variadas, idades variadas. Pessoas oriundas de uma perdida região, que nem aparece nos mapas, uma região rural abandonada, não longe de onde eu vivo e um aprofundamento da pesquisa revelaram outras coisas e isso ocorreu ao longo de décadas.

            Em suma, a gama de informações econômicas enorme, como o meu pai vinha trabalhando em um algoritmo, que justamente era para tratar de análises de dados neste campo de estudo, de comportamento de consumo da economia doméstica. Não me perguntem como funciona o algoritmo de papai, pois eu não sei, só sei que os olhos brilharam do meu pai em tempo integral e economista também e tempo integral. O programa de computador, ou software para os mais tecnicistas, ainda estava sendo aprimorado, como o adendo que o meu velho estuda, com afinco, os dados macroeconômicos da região em que viemos. E também tinha acesso aos dados da província em que vivemos.

            E lá vamos nós, dados agrupados, dados revisados, dados inseridos no computador, o treco assobiou, graniu, zumbaiou, vibrou, aferiu e cuspiu os papéis babujados de resultados, creio eu que foi assim que aconteceu. Ai a inteligência natural do meu pai, que se debruçou com os papéis babujados em mãos, aferiu os resultados. Depois deu uns prolongados telefonemas, escreveu longas correspondências eletrônicas, fez breves convergências por vídeos chamadas. Mas para quê? O danado queria escrever um artigo científico, que iria virar um livro! Um estudo de casos sobre a tal anomalia estatística, como é ingênuo o meu velho, pois eu tive acesso aos dados e o parecer dos dados rascunhado e escrito pelo meu pai.

Pois bem, era gente endinheirada, na sua grande maioria de homens, ricos ou influentes, que ocupavam e ocupavam altos cargos em muitas áreas na iniciativa privada e pública. Todos com origens remotas e contemporâneas da mesma região remota, não muito longe daqui de casa. Peixes graúdos, como se diz a raia miúda da marginal oeste e, não foi nada espantoso, quando vozes vindas de todos os cantos, de cima a baixa, de todos os lados, mandaram o meu velho, calar a boca e esquecer o assunto.

E ficou por isto mesmo, já ia me esquecendo de dizer, que a mulher que sou, a filha que sou, o ser curioso que sou, a estudante de Letras que sou, agiu e pedi para o meu pai, ler o relatório final da tabulação de dados. Feliz à primeira vista, pois ver a filha interessada pelo universo matemático e financeiro que ele tanto amava. Para depois desconfiar do pedido tão inusitado e nada corriqueiro. Então usei um estratagema, que aprendi vendo mamãe, quando dobrava as negativas inquebráveis de papai. Sorri meiga, para depois dizer que eu queria revisar a escrita técnica dele, porque eu queria fazer a revisão do texto. Em resposta, ele me perguntou porque uma estudante de Letras, com ênfase em literatura, queria pôr as mãos delicadas, banhadas de olores outonais de alfazemas frescas, no texto técnico dele. Confesso que não gostei quando ele disse: ‘’... as mãos delicadas, banhadas de olores de outonais alfazemas frescas!  De novo sorri e disse que futuramente eu iria me especializar em revisão de textos e eu poderia trabalhar com ele futuramente. Nem nos meus piores pensamentos vagos e diáfanos. E confesso que eu não, iria aguentar uma encenação de um terceiro ato, naquela opereta bufa. E logo pensei no terceiro ato da peça O rei de amarelo, em Cassilda e Camilla e em Hastur e em Carcosa. Felizmente não precisou e mesmo assim assovie A Canção de Cassilda depois que coloquei as mãos delicadas, banhadas de olores outonais de alfazemas frescas receberam o relatório anômalo. Tive acesso ao texto na sua íntegra e me detive nas particularidades e peculiaridades do lugarejo, perdido no tempo e no espaço. Com as suas morrarias, o seu lago de água salgado e as suas tragédias pessoais e coletivas. No subtexto que me chamou a atenção pois gritava, urrava desesperos em meio a névoas místicas.      

 

Fragmento do livro: Do diário de uma louca, texto de Clarisse Cristal, poetisa, contista, novelista e bibliotecária em Balneário Camboriú, Santa Catarina.