Por Samuel da Costa (Itajaí, SC)
Eu quero deixar claro que este relato que redijo agora, não é um registro fiel
e exato do que foi e é a minha vida. Quero deixar o meu olhar, que é somente
meu, das minhas sensações e das impressões do que seria a minha vida até aqui.
As minhas sensações do que é a realidade em que vivo e que se mistura com um
mundo particular de angústias, de sonhos e de pesadelos, que nunca pude dividir
com mais ninguém.
Escrevo em meio a uma torrente de sentimentos bons e ruins, este breve relato,
como quem tenta olhar para si, de fora para dentro, como uma maiêutica
socrática muito particular minha. As influências das minhas pequenas e grandes
tragédias, permeadas por pequenas e grandes paixões, amores e desamores.
A começar como o que penso ser a minha infância,
dos pequenos flashes difusos, que me chegam até a minha vida adulta. Com o
passar do tempo, se transformaram em clarões, em meio às escuridões que existem
dentro de mim. Nasci sem conhecer o meu pai, o que me disseram que partiu para
o estrangeiro e nunca mais voltou, logo presumi que ele esteja morto. Quem era
ele afinal de contas? A figura do meu pai era, e ainda, é uma sombra difusa,
que me acompanha desde a minha tenra idade até aqui.
Ele foi um jovem promissor professor universitário,
formado em belas-letras, especialista em literatura espanhola medieval e
moderna, e de teatro espanhol medieval e moderno. Meu pai, me confidenciaram e,
depois confirmei, também era poeta, contista e cronista, ator de teatro,
produtor e diretor teatral e dramaturgo, com uma carreira promissora na
academia interrompida de forma abrupta.
Até que um dia ele se foi, foi arrastado e jogado
ao chão por onda reacionária e extremista, foi preso, torturado e por fim
exilado. E os detalhes explicarei mais a frente, agora falo da outra ponta na
minha vida, a minha mãe. Ela era jovem atriz dos palcos e das telas e se
conheceram nos bastidores do meio literário e cultural. Logo se apaixonaram e
se casaram não muito tempo depois, coisas de artistas apaixonados pela vida e
pelas belas-artes.
A minha mãe nunca escondeu nada de mim, nada mesmo,
ela não me preservou de nada. Seguido, a prisão do meu pai e sua partida para o
exílio, a minha mãe grávida, se mudou do litoral agitado e se mudou para uma
tranquila cidade pequena no interior. A minha mãe foi se dedicar ao magistério,
foi ser a professora de crianças por fim.
Estranhamente sempre senti a forte presença do meu
pai, a cada passo que a minha mãe dava na vida, a cada decisão que ela tomava
eu sentia as digitais do meu pai. Primeiro eram pequenos ruídos aleatórios,
sempre no alvor, no arrebol, sempre à tardinha, ao pôr-do-sol e eram sempre
breves. Depois as vagas sombras e os leves ruídos se transformaram em palavras
difusas, depois em imagens etéreas e por fim ações e decisões no plano da
realidade. Os dois conversavam no silêncio e na quietude nas alvoradas rubras.
Assim a minha mãe se casou novamente, com um
dedicado professor de português e inglês do ensino médio. Tivemos uma vida
tranquila, tivemos uma vida estável e eu tive uma educação acima da média das
outras crianças da minha realidade de então. Apesar do fato que vivíamos em uma
cidade pequena e longe de médios e dos grandes centros urbanos. E apesar de não
sermos uma família de posses. Sempre tivemos acessos aos muitos livros, vastos
filmes, músicas diversificadas e longas conversas sobre belas-letras e
belas-artes. Ao longo da minha vida, primeiro eu era uma simples espectadora e
depois incentivada era um elemento integrante, deste pequeno universo cultural,
pois a nossa casa era frequentada por professores e intelectuais da localidade.
Isso desde a minha mais tenra idade até eu ter idade de bater asas e sair de
casa, dos meus pais aquele pequeno universo que era bom para mim e não me
desafiava em nada.
Peço desculpas para quem lê esta pequena digressão,
desculpas os grandes saltos temporais e as letras vagas e difusas, mas este
relato tem que ser breve. fatos de eu estar sempre ser sozinha, sempre ter
poucos amigos da minha idade até a vida adulta. E eu me sentia bem assim, é uma
irrelevância completa para este relato. E assim o será este meu relato íntimo!
Mas as sensações, as contradições, as falas e
imagens dispersas ao ar? Desde criança tive somente a ausente fisicamente o meu
pai na minha vida, não digo que conversava com o meu pai, ou que sonhava com
ela acordada. Digo que as mensagens dele chegavam primeiro difusas e depois
claro e cristalina, trespassava o tempo e o espaço eu bem sabia. Nunca a minha
mãe teve a coragem de me dizer o que passa pela mesma situação. Era ateia
demais para isto, presa à realidade, ao mundo da matéria, e creio que divido
com ela a mesma posição, mas tenho uma ligação carnal com o meu pai, com ela
era uma ligação afetiva e etérea.
Fui procurar o meu pai, por fim, fui percorrer os
passos dele, fui cursar belas-letras na faculdade, como quem procurar algo,
procura preencher uma lacuna na própria existência. Fui vasculhar o mundo, que
outrora foi do meu pai e a minha mãe também, o mundo em que ambos estavam
imersos e submersos. Eu foi ter as minhas próprias impressões e sensações
deles. E descobri pôr fim a longa produção textual do meu distante pai, das
críticas de artes, dos poemas milimetricamente construídos, das poesias livres
em versos herméticos, das novelas e dos romances. Muita coisa publicada para um
circuito alternativo e acadêmico somente, o meu pai não era para os grandes
públicos.
Descobri também a militância de oposição ao
regime brutal que tomou o poder no país a tempos idos. Encontrei referências do
núcleo artístico que meu pai integrava, e para a minha surpresa o grupo ainda
existe, sobreviveu a forte opressão brutal por parte do regime opressivo.
Estavam dispersos e ainda ativos, e para a minha grande surpresa não eram
somente artistas que gravitavam no núcleo. Eram impressores de livros e
revistas, produtores executivos de veículos de comunicação de massa, eram
influentes comunicadores e uma variedade de trabalhadores, profissionais
liberais e pequenos empreendedores e prestadores de serviços. Todos ligados de
forma direta e indireta ao mundo das belas-artes, belas-letras, ao
entretenimento, a música popular e erudita e comunicação em geral. Através
deles colhi muito material escrito, gravações em áudio e em vídeo e depoimentos
sobre o meu velho pai, por fim foi isso. O meu pai era querido e bem aceito, em
variadas esferas e unia todos esses universos interligados e despertos.
Mas uma sombra se ergueu, palavras ditas
entredentes, sussurradas e cortadas, pois se a vida profissional e pública do
seu pai foi desvendada a final de contas. Mas as atividades políticas
simplesmente não existiam, subsequente ao grupo político que ele integrava não
existia de fato e de direito. Simplesmente ninguém falava e apontava o caminho
para mim. Então, se assim fosse deixei que as coisas simplesmente acontecessem
sozinhas, ou que permanecessem nas profundezas das escuridões abissais do
subterrâneos para todo o sempre.
Falo agora de mim, ao final da minha vida
acadêmica, lá estava eu e o meu gato, o meu bichano, o meu animal de estimação,
que um dia apareceu na minha casa e nunca mais foi embora. Eu estava em paz e
na paz comigo mesma, pela primeira vez na minha vida. Eu e o meu fiel
companheiro, que gostava de se esconder debaixo da minha cama, eu ficava
preocupada e levantava a pesada cama para ver se ele estava vivo ou morto. Mas,
em uma noite remota, o meu amigo de quatro patas pulou pela janela do meu
pequeno apartamento. Ele se espatifou do terceiro andar, vi o pequeno corpo
morto do meu bom amigo no meio da rua deserta, agonizava, uma tragédia para
mim. Não tive nem coragem de recolher o corpo do meu amigo e dar um fim digo
aos restos mortais dele. A tristeza se abateu em mim.
Até que, simplesmente, o vi dias depois caminhando
calmamente pelos telhados das casas próximas. E, não demorou muito para vê-lo
vagando pela minha casa, e foi assim por dias e meses, o via morrer e renascer
por várias vezes de várias formas. Estava vivendo esse pesadelo muito
particular, os olhos, tinha os olhos castanhos claros brilhando do gato amarelo
malhado, que um dia fora meu. Os olhos vazios de significados simplesmente me
encaravam, os miados e ronronados desapareceram por completo e a tigela de água
e comida sempre estavam intocadas. O que sobraram foram somente as carícias
gélidas nas minhas pernas e pular dele em cima de mim quando estava sentada no
sofá e deitada na minha cama.
Era um prelúdio, que algo ou alguma coisa que
estava chegando e chegou atrás de um convite de gente próximas de meu pai. Um
convite para integrar um coletivo literário recém aberto. De fato, o mesmo
grupo que o meu pai um dia fez parte e foi recém reativado. Era para ser
um grupo de debates, cursos, palestras, aulas, leitura de textos e por tudo que
se refere à produção e difusão de textos, escritos e falados. Sem início, meio
ou fim, sem locais, datas e horários pré-definidos, ou sem métodos, sem
hierarquias predefinidos. Nem tendo tabus, somente o respeito às pluralidades
de ideias era a lei. Vários profissionais e amadores do texto escrito e
falado se reuniam esporadicamente em locais variados para ler, recitar, debater
e apreciar textos variados em mídias variadas.
Como nunca gostei de misturar com outras pessoas,
de coletivos e de multidões, escutava mais do que falava nas reuniões. E foi
assim que ele entrou na minha vida, Adérito Muteia, o professor luso-africano.
Um pós-doutor a bem da verdade, conheceu o meu pai no exílio, no distante leste
europeu e através dele descobrir muito de quem era o meu pai, de boa parte das
atividades políticas dele. Aquela figura difusa de repente tomou formas
concretas e descobri muitas coisas, o professor também não me poupou detalhes.
O como, o quem e os muitos porquês do exílio do meu pai, afloraram como um
torrente de dores, amores e paixões. Descobrir o irmão do meu pai, um delegado
aposentado e sua neta, depois falo deles, aqui o foco é outro.
Agora relato que a própria realidade pura e
simples para mim se converteu em outras coisas, o professor luso-africano
desnudou multiversos infinitos, para além das minudências que nos permeia.
Agora escrevo e escrevo com sangue e com as iras
dos deuses e deusas que reinam no além do tempo e do espaço, para o além da
realidade em que existo neste plano. Não como uma profissão de fé, componho
para mudar a minha realidade como alguém preso a uma realidade agonizante e
cruel.
Texto de Samuel da Costa de Itajaí, Santa Catarina
Contato: samueldeitajai@yahoo.com.br