quarta-feira, 1 de outubro de 2025

CRÔNICA DO DIA: A PEÇA TEATRAL "MADAME MACMILLAN"

Por Clarisse Cristal (Balneário Camboriú, SC)

 

‘’O vento me guia.

Sofri muito no passado,

Mas afinal, o que o passado nos reserva?

Nada, pois é apenas passado! ’’

Fabiane Braga Lima

 

            O clima era tenso, notícias perturbadoras vindas da capital, eram rumores que davam conta, de uma mais que possível e inevitável guerra civil, que se avizinhava dali a pouco. Alheio ao que ocorria, nos bastidores do pequeno teatro, na esquina da Broadway com a Prince Street, uma peça era montada, que seria encenada dali há algumas horas. Era o ensaio geral e a plateia seleta, começava a ocupar as poltronas, eles estavam curiosos, pois os elegantes convites, foram entregues em mãos. Convites para a pré-estreia da desconhecida peça teatral, convites de última hora e com poucas informações sobre a peça teatral Madame Macmillan.

O irlandês Ian Mcfadden, jovem diretor e produtor teatral, um europeu desconhecido no novo mundo, o artista irlandês olhou para a seleta audiência, não se deu ao trabalho de abrir as cortinas de palco, porque elas não existiam, assim sempre o fazia antes de iniciar um espetáculo para conferir o ânimo da plateia. Era um ritual que fazia antes de começar os espetáculos que produzia. Os aderecistas e os contrarregras, arrastavam, martelavam, estendiam e serravam os adereços e mobiliários do palco. Nos bastidores do teatro, no modesto camarim, o protagonista e os dois antagonistas, repassavam os textos, eles estavam caracterizados, sincronizando os textos da peça. O proto agonístes, o deutero agonístes, o tríto agonístes, fluíam bem o Ágon. Naquela peça teatral, os cacos, não eram sequer cogitados, pela direção e produção da peça. Os demais membros da obscura trupe teatral, estranhamente de forma mecânica, trabalhavam em um silêncio glacial.

Na arquibancada, as seletas elites financeiras, comerciais e industriais estavam curiosas, depois que receberam os sofisticados convites em um papel amarelado áspero. Saltavam aos olhos, a tipologia elegante e desconhecida, do convite e o fato de estarem impressas em ouro. O convite pouco dizia, somente dando local e horário da pré-estreia da peça teatral Madame Macmillan.

***

Aeron Bale, Robert Wordsworth, Christian O'Brien e John MacPherson eram homens distintos, ricos filhos de elite rural do sul, há muito tempo integrados nas elites financeiras e industriais yankee e londrina. Eles apesar de ocuparem posições sociais intermediárias, na sociedade nova iorquina e nem de longe, eram apreciadores de peças teatrais. Os quatro herdeiros de vastas fazendas de algodão, a muito não visitava o sul e tinha acabado de vender as partes que lhe cabiam das propriedades rurais, para um complexo conglomerado têxtil fabril e comercial.

Os aristocráticos cavalheiros, de ascendência sulistas, pouco se importavam com a questão escravocrata, um debate intenso, que assolava o país. Contudo eles não estavam alheios, aos debates e os seus efeitos no mundo das finanças, fabris e no dia a dia da sociedade. Então vender as propriedades, alforrias aos escravos e pagar indenizações aos trabalhadores forçados, foi uma imposição dos proprietários, para escaparem de futuras implicações legais. Foi a opção prática, para muitos na mesma situação, se livrar o quanto antes, de futuros incômodos, de todas as ordens.

Os nobres cavalheiros de descendência sulista, se acomodaram na frente do palco italiano, o pequeno teatro estava quase vazio e aos poucos a audiência se acomodou nas outras poltronas. Os elegantes homens vestidos de fraques, com os seus chapéus e as suas bengalas e portentosas mulheres com as suas sombrinhas, elegantes vestidos de seda e chapéus chamativos, pois não havia uma chapelaria na antessala do teatro.

— Senhores! Que lugar chinfrim é este! — Sussurrou o jornalista e chefe de redação Aeron Bale.  

— Eu não nem sabia que esta pocilga existia — Falou o advogado Robert Wordsworth.

— Concordo cavalheiros — Afirmou o engenheiro naval Christian O'Brien.

— Senhores! Poderemos que às vezes, temos que dar chances ao azar e ver o que acontece! — Falou o subdelegado John MacPherson.

As poltronas ocupadas na plenitude, os contrarregras e os aderecistas, terminaram de aprontar o palco, os trabalhadores saíram do palco, andavam de forma mecânica, parecia marchar. E um silêncio glacial tomou conta do pequeno teatro. A audiência, teve a impressão que o palco se adensou e se expandiu, olhos se semicerrou e perceberam que ao fundo um ciclorama foi descerrado. O enorme pano de fundo, chamou a atenção da audiência, era uma enorme pintura, era um campo de algodão, com homens e mulheres negras trabalhando, ao fundo uma enorme mansão. A agonia dos trabalhadores e trabalhadoras forças angustiaram a audiência e chamou a atenção a enorme e magnífica construção vitoriana.   

Um cântico mavioso emanou do ciclorama, uma lamúria em uma língua desconhecida, o bel canto emocionou a audiência, o ator principal adentrou no palco, os pés esmagando as folhas secas parecia que finos cristais estavam sendo triturados. O ator principal, um homem saindo da meia idade e adentrando para a velhice, como seu as suas desgrenhadas costeletas suíças, cabelo ruivo volumoso e desleixado, vestido como um lorde inglês com roupas abarrotadas. O ator principal se arrasta até a beira do palco e o monólogo se inicia.

— Eu não posso acreditar, do longo caminho que percorri! Pois dos muitos passos que dei para chegar até aqui! Hoje eu compreendo tudo que sinto e o que me faz falta. Penso na vida que eu não tive, do que tiver que abrir mão, das pessoas amadas que se foram e se distanciaram. Eu queria acreditar que alguém pode ver que eu tentei fazer o meu melhor! E como parar? Pois agora estou eu tão vago e tão anulo, vivendo entre a álgidas luzes e negras sombras! Agora posso dizer que estou alquebrado e lançado ao chão e o tempo que se foi e não voltará. Agora que estou sóbrio e muito melhor! Eu vou lutar para ser uma outra pessoa, um outro alguém que eu nunca fui...

A plateia então compenetrada no monólogo, percebeu que o ciclorama, se movimentar, as figuras ganharam vida, uma brisa morna soprou e o vento fez os galhos e folhas balançarem. Gaitas de foles irlandesas, passaram a ser tocadas e um cântico em um idioma desconhecido foi entoado, as pessoas sentadas nas poltronas, angustiadas tentaram abandonar o teatro e não conseguiram. Tentaram gritar e não conseguiram, estupefatos viram os trabalhadores forçados desenhados no pano de fundo ganharem vida. O ator principal, mexe os lábios com uma voz inaudível, perfilado ao lado do ator, as figuras que saíram do pano de fundo, eram homens e mulheres, pessoas escravizadas com os seus rostos desfigurados.

— Ladrões, mentirosos, assassinos, hipócritas, bastardos — Gritaram em uníssono as pessoas escravizadas.

Aeron Bale, Robert Wordsworth, Christian O'Brien e John MacPherson se viram sozinhos no teatro e sentiram um líquido viscoso e quente cobrindo os pés dos quatro cavalheiros que sentiram um forte cheiro de cobre. E um quadro se formou na mente dos cavalheiros, uma mulher elegante com um lenço na cabeça. Ela de costa na proa a bombordo de navio, os icebergs retratados denotaram que a cena retratada era um dos gelados pólos terrestres. A mulher retratada ganhou vida e se virou, tinha uma criança nos braços, era uma mulher eslava e carregava uma criança oriental nos braços, era uma menina. A mulher sorriu e um braço de um homem surgiu, todos quatro homens reconheceram a abotoadura em madrepérola de Marfim do jornalista e chefe de redação Aeron Bale. O braço empurrou a mulher eslava e o bebê, eles bateram na amurada caíram e foram tragados pelo mar gélido.   

— Bastardo e psicopata. Ladrão! Mentiroso! — Bradaram em uníssono as pessoas escravizadas que estavam na beira do palco, enquanto o ator principal continuava com o seu monólogo inadiável.

Uma figura sinistra encapuzada, seguiu na mente dos cavalheiros, os olhos verdes levemente estrábicos e sorriso denunciavam que era o advogado Robert Wordsworth. O sorriso bem conhecido das partidas de poker, com uma mão Texas Hold'em, possui as melhores cartas. A figura sinistra encapuzada, um carrasco afiava uma espada, enquanto sorria caminhava por um cadafalso, repousou a espada uma bainha encostada em um barril. Homens, mulheres e crianças encapuzadas com laços nos pescoços, eles choravam e balbuciavam clamando por perdão e clemência e o carrasco acionou uma alavanca e o alçapão se abriu. Os corpos em frenesi se mexiam, eles queriam gritar, mas não conseguiram enquanto uma multidão se regozijava.     

— Ladrões! Mentirosos! Nós não vamos acreditar nas suas mentiras! — Gruniram em uníssono as pessoas escravizadas, que estavam na beira do palco, enquanto o ator principal sussurrava o seu monólogo inadiável.

A quadro de um jovem homem, elegantemente bem vestido tomando café em um restaurante europeu o rosto do engenheiro naval Christian O'Brien, mais jovem. O cabelo negro, repartido, engomado e brilhos, sorveu uma xícara de café fumegante e uma pequena valise de médico estranhamente estava em cima da mesa. O homem se levanta, joga algumas notas de dinheiro na mesa e se retira. Na porta o homem se depara com casal de meia idade com uma criança, o homem se curva e faz um terno carinho no pequeno menino e a mulher faz menção de não gostar do ato. Uma garçonete vem limpar a mesa, percebe as notas na mesa e a valise, pega o dinheiro e conta as notas. A jovem pega a valise e se dirige para a porta, uma explosão e um enorme estrando, gritos e choros são ouvidos. Enquanto na rua o homem sorri!        

— Ladrões! Covarde! Assassinos! Em meio às escuridões nós rastejamos! — Berram em uníssono as pessoas escravizadas.

— Um outro quadro se formou na mente dos quatro cavalheiros, um militar de alta patente, em um portentoso uniforme militar de gala, que segurava uma fina taça de champanhe em um brinde, então os quartos homens angustiados, reconheceram o subdelegado John MacPherson. O quadro ganha vida e se expande, um enorme salão de festas, a elite militar se diverte, felizes comem e bebem. Uma pequena orquestra executa uma valsa escandinava, a cena se expande de novo, anões e anãs elegantemente trajados valsam enquanto a elite militar observa sorrindo. A cena muda e as pessoas pequenas, caminhavam lentamente em um complexo industrial, estavam sendo escoltados por militares de patente intermediária. Adentraram um a câmara, a porta de aço se fechou e o gás foi liberado.

O som de uma vassoura, varrendo o chão inundou o teatro, Aeron Bale, Robert Wordsworth, Christian O'Brien e John MacPherson levantaram as cabeças e viram uma senhora de idade avançada. Uma arrumadeira, usando um uniforme de um hotel de luxo, lentamente fazia o seu serviço, a senhora parou de varrer e olhou para o teatro vazio, ou quase. Quatro senhores estavam olhando para a senhora, eles decrépitos, barbas longas, olhos vazios, bocas abertas, parecia que estavam ali a muito tempo. Jogados na vacuidade de um tempo atemporal, até eles baixarem a cabeça, soluços, choros e risos desesperados ressoavam no teatro para se perderem na infinitude cósmica.   

    

Fragmento do livro: Do diário de uma louca, texto de Clarisse Cristal, poetisa, contista, novelista e bibliotecária em Balneário Camboriú, Santa Catarina.

Nenhum comentário:

Postar um comentário