Por Clarisse Cristal (Balneário Camboriú, SC)
‘’O vento me guia.
Sofri muito no passado,
Mas afinal, o que o passado nos reserva?
Nada, pois é apenas passado! ’’
Fabiane Braga Lima
O clima era tenso, notícias perturbadoras vindas da capital, eram rumores que
davam conta, de uma mais que possível e inevitável guerra civil, que se
avizinhava dali a pouco. Alheio ao que ocorria, nos bastidores do pequeno
teatro, na esquina da Broadway com a Prince Street, uma peça era montada, que
seria encenada dali há algumas horas. Era o ensaio geral e a plateia seleta,
começava a ocupar as poltronas, eles estavam curiosos, pois os elegantes
convites, foram entregues em mãos. Convites para a pré-estreia da desconhecida
peça teatral, convites de última hora e com poucas informações sobre a peça
teatral Madame Macmillan.
O irlandês Ian Mcfadden, jovem diretor e produtor
teatral, um europeu desconhecido no novo mundo, o artista irlandês olhou para a
seleta audiência, não se deu ao trabalho de abrir as cortinas de palco, porque
elas não existiam, assim sempre o fazia antes de iniciar um espetáculo para
conferir o ânimo da plateia. Era um ritual que fazia antes de começar os
espetáculos que produzia. Os aderecistas e os contrarregras, arrastavam,
martelavam, estendiam e serravam os adereços e mobiliários do palco. Nos bastidores
do teatro, no modesto camarim, o protagonista e os dois antagonistas,
repassavam os textos, eles estavam caracterizados, sincronizando os textos da
peça. O proto agonístes, o deutero agonístes, o tríto agonístes, fluíam bem o
Ágon. Naquela peça teatral, os cacos, não eram sequer cogitados, pela direção e
produção da peça. Os demais membros da obscura trupe teatral, estranhamente de
forma mecânica, trabalhavam em um silêncio glacial.
Na arquibancada, as seletas elites financeiras,
comerciais e industriais estavam curiosas, depois que receberam os sofisticados
convites em um papel amarelado áspero. Saltavam aos olhos, a tipologia elegante
e desconhecida, do convite e o fato de estarem impressas em ouro. O convite
pouco dizia, somente dando local e horário da pré-estreia da peça teatral
Madame Macmillan.
***
Aeron Bale, Robert Wordsworth, Christian O'Brien e
John MacPherson eram homens distintos, ricos filhos de elite rural do sul, há
muito tempo integrados nas elites financeiras e industriais yankee e londrina.
Eles apesar de ocuparem posições sociais intermediárias, na sociedade nova
iorquina e nem de longe, eram apreciadores de peças teatrais. Os quatro
herdeiros de vastas fazendas de algodão, a muito não visitava o sul e tinha
acabado de vender as partes que lhe cabiam das propriedades rurais, para um complexo
conglomerado têxtil fabril e comercial.
Os aristocráticos cavalheiros, de ascendência
sulistas, pouco se importavam com a questão escravocrata, um debate intenso,
que assolava o país. Contudo eles não estavam alheios, aos debates e os seus
efeitos no mundo das finanças, fabris e no dia a dia da sociedade. Então vender
as propriedades, alforrias aos escravos e pagar indenizações aos trabalhadores
forçados, foi uma imposição dos proprietários, para escaparem de futuras
implicações legais. Foi a opção prática, para muitos na mesma situação, se livrar
o quanto antes, de futuros incômodos, de todas as ordens.
Os nobres cavalheiros de descendência sulista, se
acomodaram na frente do palco italiano, o pequeno teatro estava quase vazio e
aos poucos a audiência se acomodou nas outras poltronas. Os elegantes homens
vestidos de fraques, com os seus chapéus e as suas bengalas e portentosas
mulheres com as suas sombrinhas, elegantes vestidos de seda e chapéus
chamativos, pois não havia uma chapelaria na antessala do teatro.
— Senhores! Que lugar chinfrim é este! — Sussurrou
o jornalista e chefe de redação Aeron Bale.
— Eu não nem sabia que esta pocilga existia — Falou
o advogado Robert Wordsworth.
— Concordo cavalheiros — Afirmou o engenheiro naval
Christian O'Brien.
— Senhores! Poderemos que às vezes, temos que dar
chances ao azar e ver o que acontece! — Falou o subdelegado John MacPherson.
As poltronas ocupadas na plenitude, os
contrarregras e os aderecistas, terminaram de aprontar o palco, os
trabalhadores saíram do palco, andavam de forma mecânica, parecia marchar. E um
silêncio glacial tomou conta do pequeno teatro. A audiência, teve a impressão
que o palco se adensou e se expandiu, olhos se semicerrou e perceberam que ao
fundo um ciclorama foi descerrado. O enorme pano de fundo, chamou a atenção da
audiência, era uma enorme pintura, era um campo de algodão, com homens e
mulheres negras trabalhando, ao fundo uma enorme mansão. A agonia dos
trabalhadores e trabalhadoras forças angustiaram a audiência e chamou a atenção
a enorme e magnífica construção vitoriana.
Um cântico mavioso emanou do ciclorama, uma lamúria
em uma língua desconhecida, o bel canto emocionou a audiência, o ator principal
adentrou no palco, os pés esmagando as folhas secas parecia que finos cristais
estavam sendo triturados. O ator principal, um homem saindo da meia idade e
adentrando para a velhice, como seu as suas desgrenhadas costeletas suíças,
cabelo ruivo volumoso e desleixado, vestido como um lorde inglês com roupas
abarrotadas. O ator principal se arrasta até a beira do palco e o monólogo se
inicia.
— Eu não posso acreditar, do longo caminho que
percorri! Pois dos muitos passos que dei para chegar até aqui! Hoje eu
compreendo tudo que sinto e o que me faz falta. Penso na vida que eu não tive,
do que tiver que abrir mão, das pessoas amadas que se foram e se distanciaram.
Eu queria acreditar que alguém pode ver que eu tentei fazer o meu melhor! E
como parar? Pois agora estou eu tão vago e tão anulo, vivendo entre a álgidas
luzes e negras sombras! Agora posso dizer que estou alquebrado e lançado ao chão
e o tempo que se foi e não voltará. Agora que estou sóbrio e muito melhor! Eu
vou lutar para ser uma outra pessoa, um outro alguém que eu nunca fui...
A plateia então compenetrada no monólogo, percebeu
que o ciclorama, se movimentar, as figuras ganharam vida, uma brisa morna
soprou e o vento fez os galhos e folhas balançarem. Gaitas de foles irlandesas,
passaram a ser tocadas e um cântico em um idioma desconhecido foi entoado, as
pessoas sentadas nas poltronas, angustiadas tentaram abandonar o teatro e não
conseguiram. Tentaram gritar e não conseguiram, estupefatos viram os
trabalhadores forçados desenhados no pano de fundo ganharem vida. O ator principal,
mexe os lábios com uma voz inaudível, perfilado ao lado do ator, as figuras que
saíram do pano de fundo, eram homens e mulheres, pessoas escravizadas com os
seus rostos desfigurados.
— Ladrões, mentirosos, assassinos, hipócritas,
bastardos — Gritaram em uníssono as pessoas escravizadas.
Aeron Bale, Robert Wordsworth, Christian O'Brien e
John MacPherson se viram sozinhos no teatro e sentiram um líquido viscoso e
quente cobrindo os pés dos quatro cavalheiros que sentiram um forte cheiro de
cobre. E um quadro se formou na mente dos cavalheiros, uma mulher elegante com
um lenço na cabeça. Ela de costa na proa a bombordo de navio, os icebergs
retratados denotaram que a cena retratada era um dos gelados pólos terrestres.
A mulher retratada ganhou vida e se virou, tinha uma criança nos braços, era
uma mulher eslava e carregava uma criança oriental nos braços, era uma menina.
A mulher sorriu e um braço de um homem surgiu, todos quatro homens reconheceram
a abotoadura em madrepérola de Marfim do jornalista e chefe de redação Aeron
Bale. O braço empurrou a mulher eslava e o bebê, eles bateram na amurada caíram
e foram tragados pelo mar gélido.
— Bastardo e psicopata. Ladrão! Mentiroso! —
Bradaram em uníssono as pessoas escravizadas que estavam na beira do palco,
enquanto o ator principal continuava com o seu monólogo inadiável.
Uma figura sinistra encapuzada, seguiu na mente dos
cavalheiros, os olhos verdes levemente estrábicos e sorriso denunciavam que era
o advogado Robert Wordsworth. O sorriso bem conhecido das partidas de poker,
com uma mão Texas Hold'em, possui as melhores cartas. A figura sinistra
encapuzada, um carrasco afiava uma espada, enquanto sorria caminhava por um
cadafalso, repousou a espada uma bainha encostada em um barril. Homens,
mulheres e crianças encapuzadas com laços nos pescoços, eles choravam e balbuciavam
clamando por perdão e clemência e o carrasco acionou uma alavanca e o alçapão
se abriu. Os corpos em frenesi se mexiam, eles queriam gritar, mas não
conseguiram enquanto uma multidão se regozijava.
— Ladrões! Mentirosos! Nós não vamos acreditar nas
suas mentiras! — Gruniram em uníssono as pessoas escravizadas, que estavam na
beira do palco, enquanto o ator principal sussurrava o seu monólogo inadiável.
A quadro de um jovem homem, elegantemente bem
vestido tomando café em um restaurante europeu o rosto do engenheiro naval
Christian O'Brien, mais jovem. O cabelo negro, repartido, engomado e brilhos,
sorveu uma xícara de café fumegante e uma pequena valise de médico
estranhamente estava em cima da mesa. O homem se levanta, joga algumas notas de
dinheiro na mesa e se retira. Na porta o homem se depara com casal de meia
idade com uma criança, o homem se curva e faz um terno carinho no pequeno
menino e a mulher faz menção de não gostar do ato. Uma garçonete vem limpar a
mesa, percebe as notas na mesa e a valise, pega o dinheiro e conta as notas. A
jovem pega a valise e se dirige para a porta, uma explosão e um enorme
estrando, gritos e choros são ouvidos. Enquanto na rua o homem
sorri!
— Ladrões! Covarde! Assassinos! Em meio às
escuridões nós rastejamos! — Berram em uníssono as pessoas escravizadas.
— Um outro quadro se formou na mente dos quatro
cavalheiros, um militar de alta patente, em um portentoso uniforme militar de
gala, que segurava uma fina taça de champanhe em um brinde, então os quartos
homens angustiados, reconheceram o subdelegado John MacPherson. O quadro ganha
vida e se expande, um enorme salão de festas, a elite militar se diverte,
felizes comem e bebem. Uma pequena orquestra executa uma valsa escandinava, a
cena se expande de novo, anões e anãs elegantemente trajados valsam enquanto a
elite militar observa sorrindo. A cena muda e as pessoas pequenas, caminhavam
lentamente em um complexo industrial, estavam sendo escoltados por militares de
patente intermediária. Adentraram um a câmara, a porta de aço se fechou e o gás
foi liberado.
O som de uma vassoura, varrendo o chão inundou o
teatro, Aeron Bale, Robert Wordsworth, Christian O'Brien e John MacPherson
levantaram as cabeças e viram uma senhora de idade avançada. Uma arrumadeira,
usando um uniforme de um hotel de luxo, lentamente fazia o seu serviço, a
senhora parou de varrer e olhou para o teatro vazio, ou quase. Quatro senhores
estavam olhando para a senhora, eles decrépitos, barbas longas, olhos vazios,
bocas abertas, parecia que estavam ali a muito tempo. Jogados na vacuidade de um
tempo atemporal, até eles baixarem a cabeça, soluços, choros e risos
desesperados ressoavam no teatro para se perderem na infinitude cósmica.
Fragmento
do livro: Do diário de uma louca, texto de Clarisse Cristal, poetisa, contista,
novelista e bibliotecária em Balneário Camboriú, Santa Catarina.
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