sábado, 1 de março de 2025

OPERA MUNDI: MODERNO AMOR, MODERNA ARTE

Por Samuel da Costa (Itajaí, SC) e Clarisse Cristal (Balneário Camboriú, SC)

 

Naquela manhã de aragem fresca,

De vento feliz,

Só o vento podia tocá-la,

Se bem que eu queria, mas ela não quis.

Fazia alguns meses que ela partira,

Num dia tristonho de sol morno até,

Se partira, ou estava enganando,

Quem poderia dizer? Quem é? Quem é?

Agora volta, não sei se com vontade,

De ser a beldade que o amor consagrou,

Trazendo consigo a paz verdadeira,

Ou a grande esperança que ao partir deixou”

Vivaldo Terres 

             

Ao cair da noite abissal de outono, Cacilda caminhava pela viela sul do Beco do Brooklyn, ela experimentou das melhores e das piores sensações possíveis e imagináveis, por seres humanos. Então Cacilda, passou ao largo, de um homem maltrapilho, que estava embriagado e sentado na calçada do beco escuro. O homem andrajoso, levou um cachimbo improvisado, até a boca e com um isqueiro barato, acendeu o cachimbo. A pequena chama amarela, iluminou a face do estrapilho, o homem, extasiado pelos vapores, desabou lentamente.

 — Não voe tão perto de Aldebaran e das Híades, negro anjo decadente da noite! Tu podes cair e se afogar no lago de Hali — Sussurrou Cacilda, a exuberante deusa de ébano, ao se abaixar e chegar bem perto do homem, os sedosos cabelos negros reluzentes, tocaram pelo peito do homem esfarrapado. O homem entrou em coma, e Camilla, vestida com um vaporo vestido negro, foi ao êxtase supremo. Ela deu um beijo, na testa do homem, depois se levantou e seguiu seu rumo. Cacilda lembrou do Hastur, o rei em farrapos, o rei de amarelo e em todas as extensões dos seus poderes cósmicos.

   A excelsa e vaporosa Camilla, caminhava tranquilamente pela viela norte do Beco do Brooklyn, ela parou a poucos metros de uma garota de programa. A mulher, a dama noite, estava encostada em muro alto, ela chorava baixo, a maquiagem barata escória pelo rosto magro. A angustiada dama da noite, estava com saudades, da filha pequena, que havia tempo, que ela não colocava os olhos. Camilla, se comoveu com a dama da noite, se aproximou e sussurrou no ouvido dela: — Não chore assim, minha querida, pois a noite te pertence!

 A meretriz, secou as lágrimas e refez a maquiagem, se compôs e foi à caça de seus clientes. Camilla, com o sorriso nos lábios carnudos, ao longe viu a dona da noite, esvaecer em meio à densa bruma noturna.

  As duas irmãs, foram se encontrar, próximas a entrada da galeria do Beco do Brooklyn, ao lado de um estacionamento privado. Elas estavam felizes e cheias de expectativas. Fazia um certo tempo, que elas não se deliciavam, com as criaturas da noite. Era a primeira vez que estavam, no mal-fadado Beco das Perdições, só sentiram por não se divertirem mais, com as figuras decadentes, que se arrastavam no entorno do Beco do Brooklyn.

— Então? Chegamos até aqui! — Disse Cacilda entusiasmada.   

— Não estamos aqui, para a nossa diversão maninha querida! Até parece que és mais nova que eu! — Respondeu Camilla e continuou. — Por hora, temos um encontro marcado, com os nossos destinos, às diversões ficam para depois.

    As duas foram em direção da galeria, o som que ecoava pelo corredor da galeria, chegou nas duas irmãs, como se fosse uma valsa vienense medieval, a expectativa de ambas era altíssima. Ao passarem ao lado de uma lanchonete, que estava lotada de jovens, com os seus cabelos coloridos, calças rasgadas, lenços cobrindo as testas, bonés virados para trás, camisas de flanelas, alguns com seus esqueites estilizados a tiracolo. Cacilda e Camilla passaram incólume a cena e ao som estridente, de uma música moderna explodindo em caixas de sons no alto das paredes da lanchonete.  

  Elas caminharam poucos passos e chegaram ao limiar de um Pianos bar, a energia que emanava do lugar, surpreendeu as duas irmãs. Elas ligaram os alertas ao máximo possível, quando um casal de meia idade, bem vestidos cambaleando passou ao lado delas. O casal, estava sorrindo e cantarolando uma canção florentina medieval, era uma versão com uma melodia pós-moderna. As duas irmãs se entreolharam, era só o começo, pensaram elas em uníssono, a figura de Madalena, surgiu na mente das duas simultaneamente.

— Quem está fulana afinal? — Perguntou Cacilda, não escondendo a preocupação.

— Não estamos aqui para investigar nada! — Respondeu Camilla a mais prática das irmãs.  

      As duas deram pouco passo e na distância segura, viram o espetáculo de Madalena ao piano nos fundos do pianos bar, ela estava vestida como uma gueixa, com os cabelos soltos desgrenhados, vestia um sofisticado quimono vermelho de seda, um delicado leque estava em cima do piano.

  Madalena executava uma música popular irlandesa, Uísque no jarro, em inglês, com um forte sotaque dublinense do século XVII. Com copos e taças erguidas, a plateia embriagada, fazia um coro, a cantoria inundava o ambiente.

   — Então é esta a nossa Madame Butterfly e sua ária triunfal? Faminta como uma loba e sonhadora como uma vampira! Um salve para o grande Calibor — Disse Camilla como quem comemora um triunfo.  

    — Está mais para uma opereta barata bufa, em um pub irlandês de quinta categoria da era moderna, minha irmãzinha querida! — Retrucou Cacilda, reticente e apontou para a plateia e emendou — Olha como o campesinato se diverte, gente patética. Tolas criaturas com vidas patéticas.  

 As duas sentiram as presenças de outras duas criaturas da noite, Agnes e Cigana. As duas estavam no fundo do pianos bar, e não estavam sozinhas, as duas estavam acompanhadas por dois senhores, de meia idade, os dois homens pareciam altos executivos. Eles usando os seus ternos e gravatas caras, eles fumavam os seus charutos caribenhos. Agnes e Cigana, as duas damas da noite, apreciavam o espetáculo dantesco de Madalena, elas se comportavam como se fossem duas fãs fanáticas.

  — Então irmãzinha Camilla! A Madame Butterfly é toda sua, meu bem! Eu fico com as duas saltitantes mariposas soturnas! — Disse Cacilda, tomando as rédeas da situação.  

  — As ordens! Eu quero ver mais de perto, o que a tal Madame Butterfly tem para oferecer. — Disse Camilla cheia de expectativas.

     Em uma sincronia perfeita, as duas se dividiram, a irmã mais nova sorrindo se dirigiu em direção a Madalena e a irmã mais velha, foi em direção aos fundos do piano bar, foi ver mais de perto os dois casais.

Madalena sentiu um forte olor de jasmim e um zunido baixo, que foi se elevando e se acumulando. A pianista parou de tocar, sentiu o gosto de sangue putrefato na boca, ela olhou para trás e depois para cima. E encarou uma exuberante mulher negra, que simplesmente sorria, para a atônita Madalena. O vestido vaporoso, os cabelos negros reluzentes e longos, pequenos e rasgados olhos negros, os olores que dela exalavam, liberdade, luxúria e maldade, que atingiram a pianista profundamente.  

     — Temos alguns assuntos a resolver, querida Madame Butterfly! Mas, deixemos estas tolas criaturas, para trás e vamos para um lugar mais reservado. — Falou Camilla sem abrir a boca. A fala atingiu a futanari como um tsunami astral.

***

  Na última fileira de mesas, as duas damas da noite sentiram náuseas, ânsias, sentiram fragrâncias de rosas e lilases e um cósmico assobio breve e gélido. Um astral vento álgido, percorreu os corpos das duas mulheres.

    — Boa noite, senhoritas! Nós precisamos ficar a sós, com a querida Madame Butterfly! Digam adeus as suas companhias e vão embora! Agora! — A voz pausada de Cacilda, com suas vestes ebúrneas, gelou os corações das damas da noite, elas pegaram as suas respectivas bolsas e partiram. Os dois homens, que estavam fazendo companhia estavam congelados, o medo da morte, materializado na figura daquela mulher, em pé na frente deles.

     — Gêmeos idênticos creio eu? — Falou Cacilda, sem sequer abrir a boca e contínuo — As vossas senhorias conhecem o Hellfire Club senhores?

    Os dois homens sorriram para Cacilda, em pé na frente deles, ela estava vestida e se comportava como se fosse uma nobre dama europeia, agia como se fosse uma medieval condessa italiana, perdida na pós-modernidade, no novo mundo.

***

  Madalena, acordou como quem acorda de um pesadelo ruim, violento e horrível. Ela teve a sensação de estar nua e deitada em uma confortável e ampla cama de casal. A sensação de ter fortes braços inumanos envolvendo-a chegou na mente de Madalena, como se fossem pesadas e grossas correntes. E flashes começaram a inundar a mente dela, da pequena e delicada mulher trans. Eram colossais, titânicas ondas tórridas e luxuriantes, que envolviam os dois corpos nus e desproporcionais, que em chamas se entrelaçaram.

     A pergunta: — Do que tu tens fome e sede? — Se repetia e se repetia e Madalena, tentou abrir os olhos e não pode, tentou se mover e não pode e tentou falar e não pode.

    — Durma! Não é hora de despertar, durma e escute somente. Temos um servicinho para você. Depois tu podes voltar a se deliciar e voltar a consumir aquelas tolas criaturas insignificantes! — Disse Camilla com uma voz inumana.  

   Madalena abriu os olhos, virou a cabeça e viu em uma cadeira a poucos centímetros um uniforme de hussardo dobrado, era um pomposo uniforme de patente intermediário. Era um uniforme militar de gala e ao lado no criado mudo, uma pistola Tokarev, com mira a laser, um silenciador acoplado e um pente de balas.

Fragmento do livro: Em perpétuos ciclos, por Samuel da Costa, novelista, poeta e contista em Itajaí, Santa Catarina.

Argumento de Clarisse Cristal, bibliotecária, contista, novelista e poetisa em Balneário Camboriú, Santa Catarina.  

 

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