Por Samuel da Costa (Itajaí, SC) e Clarisse Cristal (Balneário Camboriú, SC)
“Naquela manhã de
aragem fresca,
De
vento feliz,
Só o
vento podia tocá-la,
Se bem
que eu queria, mas ela não quis.
Fazia
alguns meses que ela partira,
Num
dia tristonho de sol morno até,
Se
partira, ou estava enganando,
Quem
poderia dizer? Quem é? Quem é?
Agora
volta, não sei se com vontade,
De ser
a beldade que o amor consagrou,
Trazendo
consigo a paz verdadeira,
Ou a
grande esperança que ao partir deixou”
Vivaldo Terres
Ao cair da noite abissal de
outono, Cacilda caminhava pela viela sul do Beco do Brooklyn, ela experimentou
das melhores e das piores sensações possíveis e imagináveis, por seres humanos.
Então Cacilda, passou ao largo, de um homem maltrapilho, que estava embriagado
e sentado na calçada do beco escuro. O homem andrajoso, levou um cachimbo
improvisado, até a boca e com um isqueiro barato, acendeu o cachimbo. A pequena
chama amarela, iluminou a face do estrapilho, o homem, extasiado pelos vapores,
desabou lentamente.
— Não voe tão perto de
Aldebaran e das Híades, negro anjo decadente da noite! Tu podes cair e se
afogar no lago de Hali — Sussurrou Cacilda, a exuberante deusa de ébano, ao se
abaixar e chegar bem perto do homem, os sedosos cabelos negros reluzentes,
tocaram pelo peito do homem esfarrapado. O homem entrou em coma, e Camilla,
vestida com um vaporo vestido negro, foi ao êxtase supremo. Ela deu um beijo,
na testa do homem, depois se levantou e seguiu seu rumo. Cacilda lembrou do
Hastur, o rei em farrapos, o rei de amarelo e em todas as extensões dos seus
poderes cósmicos.
A excelsa e
vaporosa Camilla, caminhava tranquilamente pela viela norte do Beco do
Brooklyn, ela parou a poucos metros de uma garota de programa. A mulher, a dama
noite, estava encostada em muro alto, ela chorava baixo, a maquiagem barata
escória pelo rosto magro. A angustiada dama da noite, estava com saudades, da
filha pequena, que havia tempo, que ela não colocava os olhos. Camilla, se
comoveu com a dama da noite, se aproximou e sussurrou no ouvido dela: — Não
chore assim, minha querida, pois a noite te pertence!
A meretriz, secou as
lágrimas e refez a maquiagem, se compôs e foi à caça de seus clientes. Camilla,
com o sorriso nos lábios carnudos, ao longe viu a dona da noite, esvaecer em
meio à densa bruma noturna.
As duas irmãs, foram se
encontrar, próximas a entrada da galeria do Beco do Brooklyn, ao lado de um
estacionamento privado. Elas estavam felizes e cheias de expectativas. Fazia um
certo tempo, que elas não se deliciavam, com as criaturas da noite. Era a
primeira vez que estavam, no mal-fadado Beco das Perdições, só sentiram por não
se divertirem mais, com as figuras decadentes, que se arrastavam no entorno do
Beco do Brooklyn.
— Então? Chegamos até aqui! —
Disse Cacilda entusiasmada.
— Não estamos aqui, para a
nossa diversão maninha querida! Até parece que és mais nova que eu! — Respondeu
Camilla e continuou. — Por hora, temos um encontro marcado, com os nossos
destinos, às diversões ficam para depois.
As
duas foram em direção da galeria, o som que ecoava pelo corredor da galeria,
chegou nas duas irmãs, como se fosse uma valsa vienense medieval, a expectativa
de ambas era altíssima. Ao passarem ao lado de uma lanchonete, que estava
lotada de jovens, com os seus cabelos coloridos, calças rasgadas, lenços
cobrindo as testas, bonés virados para trás, camisas de flanelas, alguns com
seus esqueites estilizados a tiracolo. Cacilda e Camilla passaram incólume a
cena e ao som estridente, de uma música moderna explodindo em caixas de sons no
alto das paredes da lanchonete.
Elas caminharam poucos
passos e chegaram ao limiar de um Pianos bar, a energia que emanava do lugar,
surpreendeu as duas irmãs. Elas ligaram os alertas ao máximo possível, quando
um casal de meia idade, bem vestidos cambaleando passou ao lado delas. O casal,
estava sorrindo e cantarolando uma canção florentina medieval, era uma versão
com uma melodia pós-moderna. As duas irmãs se entreolharam, era só o começo,
pensaram elas em uníssono, a figura de Madalena, surgiu na mente das duas
simultaneamente.
— Quem está fulana afinal? —
Perguntou Cacilda, não escondendo a preocupação.
— Não estamos aqui para
investigar nada! — Respondeu Camilla a mais prática das irmãs.
As duas deram pouco passo e na distância segura, viram o espetáculo de
Madalena ao piano nos fundos do pianos bar, ela estava vestida como uma gueixa,
com os cabelos soltos desgrenhados, vestia um sofisticado quimono vermelho de
seda, um delicado leque estava em cima do piano.
Madalena executava uma
música popular irlandesa, Uísque no jarro, em inglês, com um forte sotaque
dublinense do século XVII. Com copos e taças erguidas, a plateia embriagada,
fazia um coro, a cantoria inundava o ambiente.
— Então é esta a
nossa Madame Butterfly e sua ária triunfal? Faminta como uma loba e sonhadora
como uma vampira! Um salve para o grande Calibor — Disse Camilla como quem
comemora um triunfo.
— Está mais
para uma opereta barata bufa, em um pub irlandês de quinta categoria da era
moderna, minha irmãzinha querida! — Retrucou Cacilda, reticente e apontou para
a plateia e emendou — Olha como o campesinato se diverte, gente patética. Tolas
criaturas com vidas patéticas.
As duas sentiram as
presenças de outras duas criaturas da noite, Agnes e Cigana. As duas estavam no
fundo do pianos bar, e não estavam sozinhas, as duas estavam acompanhadas por
dois senhores, de meia idade, os dois homens pareciam altos executivos. Eles
usando os seus ternos e gravatas caras, eles fumavam os seus charutos
caribenhos. Agnes e Cigana, as duas damas da noite, apreciavam o espetáculo
dantesco de Madalena, elas se comportavam como se fossem duas fãs fanáticas.
— Então irmãzinha
Camilla! A Madame Butterfly é toda sua, meu bem! Eu fico com as duas
saltitantes mariposas soturnas! — Disse Cacilda, tomando as rédeas da situação.
— As ordens! Eu quero
ver mais de perto, o que a tal Madame Butterfly tem para oferecer. — Disse
Camilla cheia de expectativas.
Em
uma sincronia perfeita, as duas se dividiram, a irmã mais nova sorrindo se
dirigiu em direção a Madalena e a irmã mais velha, foi em direção aos fundos do
piano bar, foi ver mais de perto os dois casais.
Madalena sentiu um forte olor
de jasmim e um zunido baixo, que foi se elevando e se acumulando. A pianista
parou de tocar, sentiu o gosto de sangue putrefato na boca, ela olhou para trás
e depois para cima. E encarou uma exuberante mulher negra, que simplesmente
sorria, para a atônita Madalena. O vestido vaporoso, os cabelos negros
reluzentes e longos, pequenos e rasgados olhos negros, os olores que dela
exalavam, liberdade, luxúria e maldade, que atingiram a pianista profundamente.
—
Temos alguns assuntos a resolver, querida Madame Butterfly! Mas, deixemos estas
tolas criaturas, para trás e vamos para um lugar mais reservado. — Falou
Camilla sem abrir a boca. A fala atingiu a futanari como um tsunami astral.
***
Na última fileira de
mesas, as duas damas da noite sentiram náuseas, ânsias, sentiram fragrâncias de
rosas e lilases e um cósmico assobio breve e gélido. Um astral vento álgido,
percorreu os corpos das duas mulheres.
— Boa
noite, senhoritas! Nós precisamos ficar a sós, com a querida Madame Butterfly!
Digam adeus as suas companhias e vão embora! Agora! — A voz pausada de Cacilda,
com suas vestes ebúrneas, gelou os corações das damas da noite, elas pegaram as
suas respectivas bolsas e partiram. Os dois homens, que estavam fazendo
companhia estavam congelados, o medo da morte, materializado na figura daquela
mulher, em pé na frente deles.
—
Gêmeos idênticos creio eu? — Falou Cacilda, sem sequer abrir a boca e contínuo
— As vossas senhorias conhecem o Hellfire Club senhores?
Os dois
homens sorriram para Cacilda, em pé na frente deles, ela estava vestida e se
comportava como se fosse uma nobre dama europeia, agia como se fosse uma
medieval condessa italiana, perdida na pós-modernidade, no novo mundo.
***
Madalena, acordou como
quem acorda de um pesadelo ruim, violento e horrível. Ela teve a sensação de
estar nua e deitada em uma confortável e ampla cama de casal. A sensação de ter
fortes braços inumanos envolvendo-a chegou na mente de Madalena, como se fossem
pesadas e grossas correntes. E flashes começaram a inundar a mente dela, da
pequena e delicada mulher trans. Eram colossais, titânicas ondas tórridas e
luxuriantes, que envolviam os dois corpos nus e desproporcionais, que em chamas
se entrelaçaram.
A
pergunta: — Do que tu tens fome e sede? — Se repetia e se repetia e
Madalena, tentou abrir os olhos e não pode, tentou se mover e não pode e tentou
falar e não pode.
— Durma!
Não é hora de despertar, durma e escute somente. Temos um servicinho para você.
Depois tu podes voltar a se deliciar e voltar a consumir aquelas tolas
criaturas insignificantes! — Disse Camilla com uma voz inumana.
Madalena abriu os
olhos, virou a cabeça e viu em uma cadeira a poucos centímetros um uniforme de
hussardo dobrado, era um pomposo uniforme de patente intermediário. Era um
uniforme militar de gala e ao lado no criado mudo, uma pistola Tokarev, com
mira a laser, um silenciador acoplado e um pente de balas.
Fragmento do livro: Em
perpétuos ciclos, por Samuel da Costa, novelista, poeta e contista em Itajaí,
Santa Catarina.
Argumento de Clarisse Cristal,
bibliotecária, contista, novelista e poetisa em Balneário Camboriú, Santa
Catarina.
Nenhum comentário:
Postar um comentário