Revista literária virtual de divulgação de escritores, poetas e amantes das letras e artes. Editor: Paccelli José Maracci Zahler Todas as opiniões aqui expressas são de responsabilidade dos autores. Aceitam-se colaborações. Contato: cerrado.cultural@gmail.com
terça-feira, 1 de outubro de 2024
A DENTADURA VOADORA QUE FOI PARA O BELELÉU
Por Valéria A Gurgel (Nova Lima, MG)
Fim
de tarde, muito calor, quase 38 graus e ameaças de tempestades.
Ponto
de ônibus lotado! Na dura volta para casa em plena sexta feira, exatamente na
hora de pico! Dezessete horas e quinze minutos. Cíntia havia matado a última
aula de português. Queria chegar mais cedo em casa para sair com seu namorado,
o Fred. Queriam ir juntos ao aniversário de um colega.
Mas
parecia naquele dia, que todas as pessoas haviam saído de casa e tentavam
voltar ao mesmo tempo e todas dentro daquele mesmo coletivo, velho, que exalava
um forte odor de borracha e combustível queimados
Depois
de uma dura espera de mais de quarenta minutos na fila, enfim a porta se abriu
e o trocador tentava controlar o empurra-empurra na incansável disputa por um
lugar na janela, não ao sol!
A
jovem com uma gigantesca mochila nas costas, esperta e acostumada passar por
aquela aventura todos os dias, não se importava em ser quase triturada naquele
coletivo que mais parecia uma máquina de espremer carne humana.
Assim,
depois de alguns minutos torturantes, ela conseguiu se sentar bem lá atrás! E
ainda dividia o lugar no banco ao lado, com uma mulher com três crianças
pequenas sentadas uma em cada um de seus joelhos e um bebezinho no colo. A
mulher carregava uma bolsa enorme que entornava um caldo insuportavelmente
podre, parecia ser de peixe! E ainda tentava amamentar o bebê! O pobre estava
todo coberto por um manto azul, e com roupas de lã azul e branco parecia mais
uma bandeira do Cruzeiro!
Não
dava para entender como aquele indefeso ser, ainda conseguia respirar com
aquele calor infernal dentro do ônibus. E o pobrezinho envolto a tantas roupas
inalando um forte odor que a mulher trazia escondido embaixo de seus sovacos!
Mal
o coletivo deu partida, já parava no sinal vermelho e podia-se ouvir a galera
gritando aflita:
-Vão
motô! Anda depressa e não pára mais não! Pois não cabe mais ninguém nessa
espelunca!
Mas,
infelizmente, ele devia cumprir ordens da empresa e a cada ponto que parava,
subia dez e descia um! A coisa foi ficando feia e naquele anda pára, pára anda,
sobe e desce, e desce e sobe, eis que entrou uma senhora idosa, bem velhinha
que foi logo encarando a Cíntia! Intimidando-a com os olhos, à ceder o seu
mísero lugar ao sol! Direito do idoso claro!
E
a pobre jovem já nem sabia mais dizer se era melhor sentada, que de pé! Nem
pensou, quando pôde perceber que a idosa já entrou no busão, completamente
pálida, quase verde e prestes a desmaiar de tanto calor, foi logo dizendo:
-
Minha senhora, -disse ela educadamente - Senta aqui! -Logo foi aquela confusão
para a outra passageira se levantar da poltrona do corredor, para Cíntia sair e
poder dar o lugar para a idosa.
Foi
cutucão de guarda-chuva, lambada de bolsa de plástico, caldo de peixe
escorrendo em seu tênis branco, menino entornado refrigerante no banco do
ônibus e picolé de uva derretendo no seu cabelo... E seguia o coletivo pelas
avenidas da grande capital...
Quando
o veículo pegou um pequeno trecho de estrada de terra, e tudo começou a
sacudir, a pobre idosa, num gesto abrupto, abriu a janela de uma vez entrando
uma fumaça de poeira que todos se engasgaram! E numa ânsia de vômitos ela
“chamou o Juca” pela janela! Começou a vomitar, a pobre senhora!
Mas
o pior estava por vir... a sua dentadura saiu voando pelos ares!
E
a coitada, começou a gritar:
-
Socorro!!! Socoooorrro!!! Parem o ônibus! Parem o ônibus!!! Por favor!
Mas,
ninguém sabia ao certo o que estava acontecendo! Todos apavorados, estavam
pensando que alguém ali dentro tinha sofrido um piripaque no coração! O
motorista então parou e perguntou:
-
O que está acontecendo aí atrás? - A velhinha apavorada dizia chorando:
-
A minha dentadura, senhor, voou pela janela!
Foi
aquela rizaria dentro do ônibus! E ela desceu desesperada para procurar!
Procurava daqui... Procurava dali... Procurava de lá, procurava acolá... E nada
de encontrar a sua dentadura! O povo começou a reclamar:
-
Vamos embora motô! Que eu tô com fome!
-
Hoje é sexta feira, motô, bora ai, cara!
-
Tenho que tomar a minha loura gelada logo mais!
-
Bora aí, motô! Se demorar ai parado eu perco o meu segundo ônibus para chegar
em casa!
E
a confusão se instalou dentro daquele ônibus! Muitos com pena, resolveram
descer para ajudá-la a procurar a dentadura que havia desaparecido no meio do
mato!
Começava
a escurecer e nada da dentadura aparecer! Como a situação ficava cada vez pior
com o povo xingando, crianças chorando... Cíntia desceu também para ajudar
encontrar a dentadura de Dona Maria Balbina.
Depois
de quase meia hora parados no meio do mato daquela estrada de terra, a jovem
encontrou a dentadura daquela senhora, caída no meio de uma poça d’água suja!
Muito agradecida, dona Maria entrou no ônibus, mas não tinha coragem de colocar
de volta a dentadura suja na boca!
O
veículo seguiu viagem e chegou ao seu destino.
Para
surpresa de Cíntia, seu namorado estava esperando-a no ponto final.
Ela
muito constrangida pelo atraso e pela sujeira em que estava por ter caminhado
no meio do barro à procura da dentadura da dona Maria Balbina foi logo se
justificando! Mas na verdade, o seu namorado estava preocupado era com a avó
dele, que havia saído cedo para ir ao médico e ainda não havia voltado! Para
seu espanto ela veio a descobrir que a Dona Maria Balbina era a avó de seu
namorado! Então, eles resolveram acompanhá-la até a casa que morava.
Lá
chegando, Dona Maria lavou a dentadura. Lavou... Lavou... Passou água
sanitária, vinagre, ferveu com detergente e bicarbonato, pois ficou com muito
nojo do que acontecera!
Mas
ela só não esperava que sua dentadura depois de passar por tantos processos de
higienização e fervura, pudesse entortar!
Não
conseguia mais encaixar a prótese dentro da boca! Quanto mais insistia, mais
vômito fazia! Até que correu para o banheiro e... vlópt!!! A dentadura desceu
por água abaixo no vaso sanitário e foi para o beleléu!
O MISTÉRIO DO PADRE ISIDORO
Por Valéria A Gurgel (Nova Lima, MG)
Não era nem cinco horas da manhã e o
sino da capela da pacata cidadezinha do interior das Minas Gerais, já tocava
intermitentemente, causando certo desconforto em padre Isidoro, que era
obrigado a se levantar, com o frio da madrugada, para conferir se realmente o
sino da igreja estava tocando à uma hora daquela?!
Ele acordava com o tinido estridente,
dos dois velhos e pesados sinos de bronze, envelhecidos pelos quase duzentos
anos de existência. Parava para ouvir e nada! Então o velho pároco, acordava o
ermitão para saber se ele também havia escutado os sinos tocando. Mas ele
afirmava não estar ouvindo nada. Um silêncio medonho se fazia. Logo que o padre
ia se deitar e vestia novamente seu camisolão branco, suas meias e sua touca de
lã, retirando os seus óculos e...
Novamente os sinos soavam e logo em
seguida, paravam! Isso prevaleceu por vários dias e noites seguidas e no fim de
quase um mês, um fato curioso começou também a acontecer por ali. Eis que as
hóstias da sacristia e o vinho, estavam desaparecendo, causando tamanho
embaraço para o padre e o ermitão que se tornaram os principais suspeitos de
estar consumindo o corpo e o sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo em hora
indevida, fora dos rituais da igreja.
Como não conseguiam mais dormir direito,
eles bocejavam o tempo inteiro durante as missas. Todos imaginavam que estavam
fazendo festinhas às escondidas nos fundos da sacristia, a altas horas da
madrugada e se embebedando de vinho! Todo esse equívoco, se agravou ainda mais
quando as beatas das redondezas começaram a fazer fila na porta da igreja, em
plena madrugada, para não mais correrem o risco de ficar sem a comunhão, visto
que as hóstias agora, nunca davam para ser repartidas com todos os fiéis na hora
do ofertório. E o velho padre ficava ainda mais constrangido.
Já insatisfeito e muito intrigado com
aquele mistério que rondava a sua paróquia, padre Isidoro, resolveu convocar
todos os fiéis para uma reunião extraordinária na igreja. Tentando descobrir o
que poderia estar ocorrendo e explicar às senhoras religiosas, que não mais
precisavam chegar tão cedo à igreja, pois ele ia pedir para as freiras do
convento, aumentar a fabricação das hóstias e do vinho!
Mas as beatas afirmavam que ouviam os
sinos tocando de madrugada e a cada dia mais cedo, imaginavam que era o padre
que estava chamando a todos, para a missa, em horas inconvenientes. Teve uma
que confirmou ter ouvido os sinos soando em plena três horas da madrugada,
chamando os fiéis para rezar!
O padre, completamente transtornado,
suspeitou que pudesse ter alguém escondido nos fundos da sacristia, querendo
fazer uma brincadeira de mau gosto com todos. Assim, ele pediu ao coronel
Camargo, que falasse com o xerife, para enviar alguns dos seus soldados para
dar uma busca e tentar desvendar todo aquele mistério. Porém, nada fora
encontrado e a situação foi ficando caótica por ali quando se espalhou a
notícia de que a igreja do padre Isidoro era mal-assombrada e que estava
possuída por um espírito maligno!
Por fim, nem o próprio padre e nem o
ermitão queriam mais dormir ou entrar na igreja.
E as missas, as confissões, as novenas,
as quermesses, as procissões, os casamentos, os batizados, as coroações e até
as missas de corpo presente, foram todos os rituais sagrados, canceladas sem
previsão de quando voltariam a acontecer. Também, a limpeza da igreja. Pois nem
as beatas queriam lá entrar com medo do que podiam ver!
E a vida dos moradores passou a se
tornar monótona e sem graça, visto que o único movimento que se via por ali se
resumia dentro e aos arredores da igreja. O coronel da cidadezinha, muito
nervoso com aquela história que já estava repercutindo pelas redondezas e sendo
motivos de críticas e deboches por parte dos religiosos de outras crenças e até
mesmo pelos fiéis de outras comunidades, resolveu levar ao conhecimento do
bispo que ordenou que enviassem um padre exorcista para resolver o problema!
Foram meses de muito suspense e desgosto
naquela cidade, até que o padre exorcista chegou. Ele veio de longe, para pôr
fim de vez naquela história estranha e mal explicada. Mas infelizmente, nada
adiantou! Então, o coronel Camargo, decretou que viessem os pais de santo, o
benzedeiro de todos os terreiros para resolver o problema e a guerra se
instalou na cidade. Depois de meses de brigas, bate bocas, revoltas,
manifestações de diversas formas, como gente fazendo jejuns e desmaiando na
porta da igreja, carregando cruzes pelas ruelas da pacata cidadezinha, mulheres
depositando flores e velas pelas escadarias da porta da pequena capela,
crucifixos pregados por todos os lados, gente jogando sal e água benta aos
arredores e beatas vestidas de preto em protesto; enfim, o mistério foi
desvendado!
Os fiéis, o padre, o ermitão, o coronel
e o xerife juntamente com os seus seis soldados, da velha delegacia, não mais
suportando aquela situação pavorosa em que se transformou a cidade; que antes
pacata, agora se tornara uma das mais agitadas da região, decidiram tomar
coragem e subir até o campanário para ver se tinha alguém escondido por lá.
Visto que misteriosamente, o sino tocava estridentemente em plena duas horas da
manhã!
E eis que descobriram uma família de
macacos prego fazendo uma tremenda algazarra, se balançando nas cordas dos dois
sinos, comendo as hóstias e bebendo do vinho da igreja. Colocando assim um
ponto final naquela história fantasmagórica que mexeu com a cabeça de todos os
moradores.
O único problema é que depois do
ocorrido, padre Isidoro, não conseguia mais espantar aquela família ousada que
sempre que ouvia os sinos da igreja tocando, vinha todos, correndo para a
igreja!
A mãe, o pai e os três filhotes,
assentavam-se no primeiro banco da capela, bem à frente na primeira fileira,
assistiam a missa e na hora da comunhão, ficavam à espera do pão e do vinho que
já estavam viciados a beber!
Site Literário: www.valleriagurgel.com
Instagram: @valeriacristinagurgel
SOCOOOOOOOORRO!!! O DEFUNTO SE LEVANTOU!
Por Valéria A Gurgel (Nova Lima, MG)
Numa
cidadezinha pacata, no interior das Minas Gerais, tão logo o dia começava a
clarear, o pároco da pequena igrejinha local ligava seu ruidoso megafone
instalado no alto da torre. As paredes que sustentavam aquele aparato antigo,
eram de pedras encardidas de mofo e estavam bastante obstruídas pelo tempo. As
paredes da capelinha pintadas de amarelo fosco e portas de madeira tosca, azul
grená.
Padre
Juvenil seguia mais de meia hora, todas as manhãs regulando o volume do
megafone para então, anunciar a lista dos falecimentos da madrugada. E lá
naquele caderno amarelecido, estava escrito o nome do Sr. Eteovaldo, mais
conhecido como Zé Cuberta.
O
Zé ganhara esse apelido inusitado pela velha mania de sair caminhando pelas
ruelas geladas e escuras daquele, digamos, vilarejo, enrolado em um velho
cobertor, deixando somente os olhos e o nariz de fora, para se proteger do frio
estarrecedor dos períodos de inverno, ano pós ano por ali.
O
carismático padre, já bastante idoso e quase careca, com seu par de óculos de
fundo de garrafa, caído sobre o afilado nariz, punha para tocar uma musiquinha
fúnebre, conhecida como “O silêncio”, para provocar aquela nostálgica tristeza
local.
Depois
de deixar a música tocar por alguns minutos e comover a população, ele começava
a ler a relação dos nomes dos mortos.
-
Nota de falecimento e convite! A família do senhor, Eteovaldo Pereira da Silva,
mais conhecido como Zé Cuberta, informa aos parentes e amigos o seu falecimento
ocorrido ontem e convida para o seu sepultamento a realizar-se hoje às dez
horas no Cemitério local. O velório se realizará à rua Tocantins número 147,
bairro Morro Velho.
Voltamos
a informar o falecimento do senhor Eteovaldo…
Mas
ninguém ainda imaginava o que tinha acontecido por volta das cinco e meia da
madrugada, na casa do falecido e que depois do ocorrido, aquele lugar nunca
mais seria o mesmo!!!
Dona
Geni, acordou por volta das dez e trinta da noite, desesperada, ao sentir que o
seu marido estava gelado, intacto, de olhos abertos e bem arregalados por
sinal, rijo, espichado de barriga para cima, na cama, bem do seu lado!
Ela
não se conteve e se pôs a gritar! Tão logo a velha casa de esquina encheu-se de
gente! Todos vieram para acudir o homem! Mas fora em vão. Morrera dormindo,
aquele pobre cristão!
A
recente viúva, após confirmar a morte repentina do marido, pediu a um moleque,
filho do verdureiro, para correr até a casa paroquial para o Padre Juvenil ir
encomendar a alma do falecido, mas ele não o atendeu.
Naquela
época e ainda se tratando de uma cidadezinha muito pobre e sem recursos, era de
praxe os próprios vizinhos dar banho, secar, vestir e arrumar o defunto em casa
mesmo. Enquanto a família do enlutado ficava à espera do caixão, que sempre
demorava chegar, porque vinha de outra cidade a alguns quilômetros.
Sendo
assim, o velório transcorria com o morto deitado em uma cama de solteiro,
coberto por um lençol branco e arrastada para o centro da sala de visitas. Até
que amanhecesse e algum conhecido pudesse ir até a funerária da cidade mais
próxima, buscar a urna, o véu e uma coroa de flores, com uma modesta faixa
preta escrita assim: “Funenária Santa Maria, a sua morte é a nossa alegria.
Uuuppss!!! Nossa melancolia, quis dizer!
Não
havia evento mais divertido para os homens da região, pois conseguiam um
pretexto para sair de casa à noite e passar a madrugada bebendo o defunto e
falando pelos cotovelos.
Era
por volta das quatro e meia da madrugada, os parentes já dormiam recostados
pelos cantos da casa, três homens, encostados no parapeito de uma pequena
janela de madeira tosca, jogavam cartas e bebiam cachaça para espantar o frio
que apertava. Quando um pergunta bem cismado para o outro:
-
Você não viu? Parece que o Zé se mexeu!!! - Cê tá variando, cumpade Piriá! O Zé
tá morto e geladim, coitado! - Comentou o Compadre Juquinha. - Cê bebeu demais
e tá ficando doido, home?!
-
Bebi não, cumpade Manél! Eu juro que vi o defunto se mexê debaixo do lençor! -
Resmungou o homem, cabreiro, cuspindo um pedaço de fumo mascado.
Um
clima tenso se fez. Lá pelas cinco e meia da manhã, já quase com o dia
clareando, um gemido confundido com ronco fez com que os três homens se
entreolhassem e parassem de gritar truco, para ouvir. Mas não era nada! O
defunto continuava lá, estirado sobre a cama! E eles seguiram, jogando cartas e
bebendo cachaça para esquentar.
Inesperadamente,
aquela cama fez um barulho estranho! Parecia se ranger com o peso do corpo.
Parecia reclamar e avisar que alguém estava se mexendo...
O
Zé descobriu-se do lençol, de uma só vez, levantando-se e perguntando:
-
Ocêis tão me oiando por causa de quê? Onde está a minha cuberta?
Vão
me servir uma dose da marvada aí, ou nu vão? Tá um frio excomungado hoje! Tô
inté achando que morreu o capeta mais veio do inferno!
Os
três homens, sendo um deles perneta, saltaram pela minúscula e única janela
daquela sala ao mesmo tempo!
Foi
por muito pouco que aquele pobre homem era sepultado vivo! Depois do incidente
ocorrido, dizem que ele foi tido como morto e acordou mais duas vezes! Numa
delas, chegou a ter cortejo fúnebre, mas, o próprio defunto foi caminhando,
enrolado em sua coberta, até que todos perceberam que carregavam um caixão
vazio!
Nem
mais o Padre acreditava nos prenúncios de falecimento do Zé Cuberta e não mais
aceitou anunciar as suas supostas mortes em seu megafone.
Assim,
quando morreu enfim, de vez, o pobre cortês, ninguém das redondezas foi velá-lo!
Da
quarta vez, ele morreu mesmo, enfim! Mas Padre Juvenil, muito sem fé, se negou
a dar a encomendação da alma do falecido.
Até
hoje, ele não se levantou de sua tumba, nem se despertou para assustar ninguém.
Mas, ainda assim, há quem passe em frente o cemitério e diz ver o Zé Cuberta
sentado em cima do muro, puxando um trago em seu cigarrinho de palha, baforando
fumaça pelas ventas, enrolado em seu velho cobertor sujo de terra, dando
risadas, com seus dois únicos dentes cariados e pedindo com o velho gesto dos
dedos, uma dose da branquinha!
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A PESSOA IDOSA E OS JOGOS DE AZAR
Por Paulo Cezar S. Ventura (Nova Lima, MG)
Em tempos de má distribuição de renda o jogo vira uma pandemia. E a pessoa idosa é mais uma vítima.
Vivendo
e aprendendo a jogar
Nem sempre ganhando
Nem sempre perdendo
Mas aprendendo a jogar.
(Guilherme Arantes)
Estive no Correio de minha
cidade para usar sua prestação de serviços de transporte de mercadorias. Sou
frequentador assíduo, felizmente, pois por ali viajam meus livros para os
queridos leitores. De repente, o funcionário me oferece um tipo de jogo, registrado
e patrocinado pela Empresa de Correios e Telégrafos (ECT).
Eu respondo: como posso fazer
uma militância política em prol de uma melhor distribuição de renda e
apostar em um sistema que tira dinheiro de muitos e entrega a uns poucos? E
quem ganha são exatamente aqueles que podem apostar muito.
Desculpe-me, Sr. Arantes,
apesar do sucesso de sua música, que teve como uma de suas intérpretes a
fabulosa Elis Regina, nem sempre se aprende a jogar. Na maioria dos casos
vicia-se em jogar. Em tempos de má distribuição de renda e de uma grande faixa
da população na pobreza, o jogo vira uma epidemia. Melhor dizendo, uma
pandemia, pois o vício se espalha pelo mundo. E, mais uma vez, pessoas idosas
são vítimas, vulneráveis.
Sete anos depois da decretação
de legalidade das apostas online no Brasil, a quantidade de casas de apostas
aumentou consideravelmente e o Brasil já é o segundo país do mundo em número de
apostadores e de volume de dinheiro consumido em apostas. Imagino que muitos de
nós conhecemos pessoas que estão se perdendo no vício de apostas. Irei relatar
um caso que muito me chocou.
Dona Geralda (nome fictício
por razões óbvias) é uma pessoa de minha vizinhança, dona de um belo sorriso e
muita alegria. Ou melhor, era. Perdeu a alegria e o sorriso em consequência.
Pessoa idosa, com uns sessenta e cinco anos, vivia em uma casa pequena na
periferia da cidade. Moradora de uma daquelas três ou quatro casas construídas
em um mesmo lote. Os filhos, já maduros, não eram visitas frequentes. Tinha um
grupo de amigas, colegas das rezas e novenas, vivendo, portanto, em uma bolha
de contatos.
Seu salário de aposentada era
bem controlado, apenas o suficiente para sobreviver, sendo impossível se
regalar com passeios, roupas melhores, jantar fora de casa, entre outros
regalos. Vivia em sua bolha de grupos de WhatsApp, vítima das falsas notícias e
das publicidades televisivas que contribuem para a degeneração mental dos
telespectadores.
Foi no intervalo da novela que
ela assistiu vários ídolos dos esportes e aquele famoso locutor anunciar:
profetiza, mas com moderação. Ela não se conteve: quem sabe estava ali a saída
de sua vida miserável? Quem sabe ela não poderia fazer parte daquele grupo de
pessoas felizes e sorridentes que a televisão mostra nos enredos das novelas e
nos intervalos para publicidade?
Pegou seu aparelho de
telefone, usou o leitor do código que aparecia na tela e entrou naquele
universo fantástico dos jogos. Bastavam uns cliques em seu aparelho de
telefone, uma de suas amigas, “entendida” em internet a ajudou nos primeiros
acessos e logo, logo, estava participando dos jogos. Era também uma bela
maneira de se conectar com seu time de futebol de coração. E como ganhou um bom
dinheiro da primeira vez, continuou jogando.
Os jogos de futebol são mais
espaçados, mas a plataforma apresentava outras possibilidades. De repente, ela
tinha uma Las Vegas inteira em seu pequeno aparelho celular. A vida vai
melhorar, ah como vai!
E Dona Geralda se acostumou,
se apaixonou, se viciou. Como compensar as perdas acumuladas? “Nem sempre
ganhando”, quase sempre perdendo, não aprendeu a jogar. Mas a adrenalina do
jogo, aquela sensação de poder ganhar, “agora vai”, ela nunca teve em sua vida
de empregada de serviços gerais nas empresas em que trabalhou.
Aos poucos foi se endividando,
aos poucos foi vendendo o pouco que tinha, de repente perdeu a casa, de repente
quase perdeu a vida. A dose de veneno de rato que ingeriu não foi suficiente
para suprimir sua vida, mas a deixou em péssimas condições de saúde. Os filhos
não tiveram condições de socorrê-la, mas conseguiram, com uma ação judicial,
que Dona Geralda fosse recolhida por uma ILPI onde, pelo menos, estava acolhida
por profissionais.
Infelizmente, esse é o jogo,
aquele que apaga a luz dos olhos das pessoas, algumas nem tanto idosas, antes
da hora. A vida pode ser também cenário para os Jogos Mortais. Neste caso ela é
cruel, pois não se conhece as regras. Em jogos de “vale tudo” não se aprende a
jogar. No entanto, é uma questão de escolha. Façamos a escolha certa: não
jogar.
“O envelhecer é uma maratona dura. Requer foco, disciplina, amor-próprio, treino mental, treino físico e espiritual.
Mesmo sabendo que na reta final ninguém vai subir ao pódio, temos que dar o nosso melhor, porque a velhice é sobre o processo e não sobre o findar a jornada”.
(Cláudia S Franco)
JANELAS DA VIDA
Por Elisa Augusta de Andrade Farina* (Teófilo Otoni, MG)
Janelas sempre foram para mim
possibilidade de liberdade e pontos de observação. Gosto de me colocar num
lugar outro para olhar o mundo e as pessoas.
Quanta novidade se pode
aprender quando você deixa seus olhos dormitando na caixinha dos segredos,
procurando ver as pessoas com um olhar de entendimento, numa troca de
(in)segurança e até de humildade. No átimo de troca, você descobre que não é
melhor do que ninguém e a gratidão invade todo o seu ser.
As janelas fecham-se e
abrem-se na objetividade a que foram constituídas. Diz o adágio popular:
“quando uma janela se fecha, outras se abrem”.
É preciso abrir janelas,
muitas delas! A vida oferece muito mais aos que aprendem a sair de si mesmos e
se arriscam na direção dos outros, numa mão única de desejos e concretude.
Abrir as janelas é, também,
expandir fronteiras, aprender novas vivências, degustar outros sabores e vencer
os obstáculos. E debruçada nas janelas da vida, permaneço sobrevoando,
desejando um dia ser e muito ver.
A vida sempre me ensinou como
eu poderia ser forte, mas exigiu de mim atitudes mais potentes em momentos em
que acreditei que só existia fraqueza no meu viver. Com o tempo aprendi a
escutar o que o meu silêncio tinha o que me dizer — certifiquei-me que ele diz
muita coisa. Aprendi a reconhecer o que é de verdade, principalmente os
sentimentos. Aprendi também a fazer as pazes com o que não foi necessariamente
uma perda. E o mais magnifico: que viver é um ciclo eterno de recomeços e que a
melhor universidade é a felicidade de viver.
Assim, vou abrindo janelas,
recolhendo conhecimentos e alegria de viver de forma solidária, coesa e cônscia
dos que têm certeza do que querem e precisam para recolher momentos indeléveis
e mágicos na grande vereda chamada vida.
________________________
* Elisa Augusta de
Andrade Farina é escritora, presidente da Academia de Letras de Teófilo
Otoni e integrante da turma Manoel de Barros, da Vivência Novos Autores, Árvore
das Letras
ESPELHOS
Por Leandro Bertoldo Silva (Padre Paraíso, MG)
Aquilo
que chamam “morrer” não é senão
acabar de viver e o que chamam “nascer” é começar
a morrer. E aquilo que chamam “viver” é morrer
vivendo. Não esperamos pela morte: vivemos com
ela perpetuamente.
–
Jean Baudrillard –
Ele havia lido em um livro de
Mia Couto um diálogo que o impressionou bastante:
— Pai, a mãe morreu?
— Quatrocentas vezes.
— E ela está enterrada onde?
— Ora, em toda parte. *
Ficou imaginando como isso seria possível. Quatrocentas partes de sua mãe em
quatrocentos lugares diferentes… Isso, além de impossível, era grotesco! Logo
desviou seu pensamento para algo que lhe pareceu mais apropriado: se a lei do
reencontro estivesse certa, estaria explicada a questão… Mas não acreditava
nisso! Sua igreja não permitia, e era isso, para ele, muito mais cômodo, pois
evitava mirar os espelhos de sua alma… Porém, nada disso teria importância se
uma profunda sensação de se sentir incompleto não persistisse em sua vida, como
se os mesmos espelhos, estando a quebrar, lançassem seus cacos a refletir
tempos escusos, o que lhe trouxe ainda mais angústia, pois, a partir daquele
momento, pôs-se a procurar por ele mesmo…
* Antes de nascer o mundo – Mia Couto.
ALDRAVIAS
Por Hélio Begliomini (São Paulo, SP)
CICLO VITAL
Penetração
Existência
Claridade
Desenvolvimento
Decadência
Ausência
DESTINO
Amor
Seu
Destino
Inexoravelmente
Meu
Destino
PÁTRIA AMADA
Falação
Corrupção
Embromação
Estagnação
Inflação
Brasil
FEITIÇO DE MULHER
Por Hélio Begliomini (São Paulo, SP)
Lábios finamente desenhados
Olhar astutamente penetrante
Nariz delicado
Orelhas tímidas
escondidas entre longo cabelos
coroam rosto angelical
Pele lisa
Tez serena
Postura régia
Movimento harmônico
Desenvoltura olímpica
Contorno atraente
Silhueta altiva
Curvas sinuosas
Sinalização proibida
Olhares na contramão
Miragem...? - Não
Obra-prima
Ingredientes extasiantes
Fórmula inebriante
Feitiço de mulher
Sobre o autor: Hélio Begliomini é médico, escritor, poeta, membro titular da Academia Cristã de Letras - ACL , cadeira nº 10, patronesse Marie Barbe van Langendonck, da qual foi presidente.
O "MENO" TINHA RAZÃO OU QUEM INVENTOU O TELEFONE?
Por Humberto Pinho da Silva (Porto, Portugal)
Na cidade de Curitiba (Brasil,)
existe o bairro de Bigorrilho. Elegante zona turística, onde abundam magníficos
restaurantes e pisarias.
Nesse pitoresco e elegante
bairro, encontra-se, na Alameda Princesa Isabel, a famosa igreja dos "
Passarinhos".
Templo moderno, de teto em
madeira, conhecido pelas gaiolas de passarinhos, que enfeitam o altar-mor - parece-me
que já os retiraram, - que trilhavam, para regalo dos fiéis, durante o culto.
Tinha a igreja sacerdote
dinâmico, que certa ocasião pensou levar uma mula para o templo, em procissão,
de homenagem a nossa Senhora das Dores. Não o fez, porque os fiéis discordaram
da original ideia.
O Padre Gabriel Figura foi,
durante anos, diretor do: " Passarinho", periódico que se editava em
Bigorrilho, jornal, em que fui colaborador, a convite do sacerdote.
Conta o Professor Sergio
Kirdziej, no " Passarinho", que acompanhado pelo Maestro Oswaldo
Hohmann, visitaram o amigo Ottorino de Meucci, o " Meno", como
carinhosamente era tratado.
Nessa ocasião, Ottarino,
contou-lhes que seu tio António Santi Giuseppe, que estudara na Academia de
Belas-Artes, na Toscana, e cursara, paralelamente, Engenharia Química e
Industrial, fora o verdadeiro inventor do telefone, e não Bell.
O tio, nascido em Florença, a
13 de abril de 1808, emigrara para os Estados Unidos, em 1850. Sentindo
necessidade de ligar o escritório ao quarto, tanto matutou, que acabou por
surgir o telefone.
Realizada a descoberta,
registo-a provisoriamente, por dificuldade financeira; acabando, mais tarde, de
a vender a Bell, que a registou definitivamente, em Março de 1876, em seu nome.
Escreve o Professor, que o
" Meno" difundia, pelo bairro, a todos que o quisessem ouvir, que
fora seu tio António que inventara o telefone, mas ninguém o levava a sério,
até havia quem se risse, à socapa, dele.
Mas...a 11 de junho de 2002,
pelo Congresso dos Estados Unidos, foi reconhecido Meucci, como o verdadeiro
inventor do telefone.
O
"Meno" tinha razão...
A CRISE AUTORIZADA, NA FAMÍLIA E NA SOCIEDA
Por Humberto Pinho da Silva (Porto, Portugal)
Ao folhear, ao
acaso, o livro de Daniel Leste: " Confúcio" - Ed. Estudos Cor,
deparei os curiosos: " Diálogos de Confuso".
Um, atraiu-me a
minha atenção: " O sábio Yeu disse: " Aquele que é respeitador
de seu pai e da sua mãe e do irmão mais velho, não decidirá, senão raramente, a
desobedecer às autoridades. Não se encontrará um homem que tendo respeito pelos
grandes, participe numa revolta. Um homem nobre estuda a raiz das coisas. Se
ele a encontrou, a sua torna-se florescente. O respeito pelo pai, pela mãe e
pelos mais velhos, é a raiz do bem" – D.C.-I-2
Cresce de forma
descomunal, na decadente sociedade, o desrespeito pela – autoridade: pais,
professores e governantes.
É frequentíssimo,
nas últimas décadas, em manifestações populares, escutarem-se palavras
incongruentes, injuriosas e impróprias e gente educada.
E na escola – que
devia ser local de respeito, – docentes são desfeiteados na própria sala de
aula; e são frequentes os abusos entre alunos.
Recordo – e com que
saudade! - do longínquo tempo da minha mocidade, quando a via publica era
segura e tranquila; e ninguém pensaria que fosse possível agredir o professor,
de modo a ter de recorrer ao serviço hospitalar.
Quantas vezes fui
ao cinema da meia-noite, só e acompanhado, e nunca senti qualquer receio de ser
assaltado; e por motivos profissionais; fui obrigado, durante anos, a
deambular, a pé, pelas artérias da minha cidade, a horas mortas, de madrugada,
e jamais fui incomodado, nem sentia qualquer temor. Confiava, inteiramente, na
polícia.
Bons tempos!...
Agora todos andamos com o credo na boca, receando que em cada canto e recanto,
em cada esquina ou portal, surja perigoso malfeitor.
E por que acontece
isso?
Porque há muito
quem ensine, mas não há quem eduque.
Educar não é
ensinar; mas inculcar: conceitos, valores e respeito. Poucos são, infelizmente,
os que sabem educar a alma, para que se torne temente a Deus e cidadã exemplar.
A maioria – quando o faz, – limita-se a comportamentos e rudimentares regras de
etiqueta.
Lamentam-se as mães
que os jovens andam transviados. Todavia esquecem-se, que em parte, a culpa é
delas, porque não sabem ou não souberam incutir nos filhos preceitos que os
tornassem em honrados e honestos cidadãos.
A REVOLTA DOS TOUROS
Por Dias Campos (São Paulo, SP)
De todos os incidentes
internacionais de que tive notícia nesses meus longos anos dedicados ao serviço
diplomático, nenhum deles se comparou ao que a imprensa madrilena resolveu
noticiar como “A revolta dos touros”.
Foi
em 1935, um ano depois da entrada em funcionamento de Las Ventas, a maior Praça de Touros da Espanha.
Os
espanhóis acorriam como formigas atraídas pelo mel. As touradas
popularizavam-se cada vez mais, cresciam em importância e em público, e
elevavam os toureiros ao patamar de verdadeiros heróis.
É
claro que, de vez em quando, um ou outro desses heróis talvez preferisse ser
lembrado como um covarde vivo... Mas como esse infortúnio foi sempre exceção,
nenhuma morte jamais inibiu que outros continuassem a buscar a glória nos
estimulantes “Olés!”, no tremular dos lenços brancos, nas rosas deitadas aos
seus pés, e, se tudo saísse perfeito, no prêmio máximo de levar consigo as
orelhas e o rabo do touro decepados na hora.
Como embaixador, fui naturalmente
convidado para a tourada inaugural. E como não pudesse fazer desfeita,
confirmei minha presença e para lá me dirigi.
Acabei
sentando bem ao lado do embaixador mexicano. E se bem que ele não se cansasse
de parabenizar o governo espanhol pela imponência daquela Praça, não deixou de
passar adiante, mesmo que a baixa voz, que um dia seu país construiria uma
Praça de Touros ainda maior.
Não
que já não soubesse como se desenrola uma tourada... Mesmo assim, presenciar um
espetáculo desses não foi nem um pouco agradável. A cultura de um povo é sempre
respeitável. Mas, como pensa a maioria dos brasileiros, o que vi poderia ser
classificado como uma ode à carnificina.
Não
vou negar que no último tercio da
tourada, onde o toureiro pratica as evoluções com suas capas vermelhas (passes
com a muleta), todos ficamos
empolgados. Aí se aferem a coragem, a destreza, o bailado.
Mas
quando, no primeiro tercio, entraram
os picadores, cuja função é atiçar a raiva do touro e minar as suas forças,
espetando em seu dorso a ponta das lanças em forma de T, daí senti muita dó, e
um tanto de náusea. Aliás, o enjoo só não se intensificou porque foi amenizado
pela revolta que em mim crescia. Afinal, enquanto os picadores ferem sem
piedade o animal, ficam a salvo em cima dos seus cavalos, que sequer sofrem as
chifradas da pobre vítima, pois que envolvidos por lonas grossas que os
protegem.
A
ânsia tornou a crescer, todavia, quando, no segundo tercio, os banderilleros
passaram a agir. A sua performance, sem dúvida mais arriscada que a dos
picadores, consiste em encarar o touro de frente, ficar na ponta dos pés,
levantar um par de banderillas
coloridas sobre as próprias cabeças, apontando os seus espetos para o que ainda
resta do lombo, e, como se fora um louva-a-deus, precipitá-las sobre o alvo,
cravando-as para deleite dos espectadores e saindo ilesos do revide dos
chifres.
O
touro, já de língua de fora e com o sangue a escorrer em profusão, nada mais
pode fazer senão tentar atacar quem ainda vê caminhando na arena. Reação
alucinada de quem talvez pressinta a morte.
Daí
retorna o toureiro, que evoluciona mais um pouco para dar o golpe final.
Deitando
a capa ao chão, pega a sua espada, fica diante daquele que um dia foi
considerado campeão, como a mostrar grande coragem, aponta a lâmina para o seu
dorso, e, com um golpe certeiro, crava-a por inteiro até atingir a aorta.
E
enquanto o matador passa tranquilo por sua vítima, aguardando os hurras, o
touro cospe sangue, convulsiona, e tomba já sem vida.
Bem
diferente foi a minha reação se comparada à euforia do meu colega mexicano, bem
como a da quase unanimidade dos espectadores.
Pois
foi aproveitando dessa extrema alegria que me levantei sem alarde e saí de
fininho.
Devo
confessar, contudo, que se fiquei enjoado e entristecido pelo resto daquela
tarde, continuo carnívoro e um bom garfo. Apenas que, como sabia que o destino
daqueles touros era o açougue, tive um pouco mais de respeito às suas memórias
antes de devorar um filé à Chateaubriand no almoço do dia seguinte.
Nos meses subsequentes, recebi
convites para assistir a outras touradas; e sempre na Tribuna de Honra. Mas
deles declinei com a diplomacia de praxe.
Tudo teria ficado por isso mesmo,
não fosse uma carta que recebi do Brasil...
Meu
irmão, que já não via há um bom par de anos e por quem nutro grande estima,
escreveu-me dizendo de sua saudade. E como minha sobrinha, Ana, completara nove
anos, gostaria de presenteá-la, e à sua esposa, com uma viagem para a Europa,
começando pelo país onde o tio Olegário estava acreditado. Terminava
perguntando se poderiam ficar hospedados na residência do embaixador.
A carta apertou este velho
coração... Afinal, desde que nossos pais se foram, como não tive a graça de
casar e constituir família, meu irmão, minha cunhada e a pequena Ana eram o que
de mais feliz me sobrava.
Nem pestanejei. Escrevi que os
receberia com toda a alegria do mundo e que não se preocupassem com a
hospedagem, pois a residência do embaixador estaria à sua disposição. E
terminava dizendo que viessem o mais rápido possível e que ficassem por pelo
menos duas semanas, tempo suficiente para que pudesse mostrar as principais
belezas da terra de Cervantes. E despachei pelo malote oficial.
Quando o navio aportou, fui eu quem
primeiro os vi. E esquecendo toda e qualquer reserva a que um embaixador sempre
estará sujeito, acenei como fazem os pais à vista do filho que retorna da
guerra, tamanha a emoção que de mim se apossava.
Não sei a quem mais abracei, se ao
meu irmão ou cunhada. Só sei que saí com minha sobrinha no colo, cobrindo-a de
beijos e elogios, enchendo-a de perguntas e revelando que muitos presentes a
aguardavam na embaixada.
Depois que meus parentes foram
devidamente instalados, de abertos os presentes a Ana – confesso que acertei na
escolha, pois seus olhinhos brilhavam a cada embrulho desfeito –, e de trocadas
as lembranças entre os adultos, passamos ao jantar e aos mais diversos
assuntos. Tinha tanto que perguntar, e que contar!... As saudades precisavam
ser satisfeitas, não importando se a entrada ou o prato principal esfriassem.
A pouco e pouco nossos corações
serenaram. Foi quando ouvi de Ângelo um pedido que, se era natural a um
turista, para mim tornava-se no mínimo espinhoso. Meu irmão queria levar a
filha para assistir a uma tourada.
Minhas sobrancelhas levantaram-se.
Afinal, como imaginar minha sobrinha assistindo àquela atrocidade? E fiquei sem
saber o que dizer.
Como percebessem o meu retraimento,
meu irmão e cunhada anteciparam-se. Aquele, dizendo que não via nada de mal,
pois, ao que sabia, os espanhóis também levavam os filhos às touradas, meninos
ou meninas, e ninguém saía traumatizado. E Patrícia, pondo-se veementemente
contra, pois uma garotinha de nove anos não poderia presenciar tamanha
selvajaria, o que a deixaria, sim, traumatizada para o resto da vida.
E como apreendesse, pela divergência
nos semblantes, que os pais já tinham se debruçado sobre essa questão ainda no
Brasil, alternativa não tive senão a de me esquivar desse impasse com um
diplomático “Vamos passar ao fumoir?...”
No dia seguinte, iniciamos nosso
passeio pelas alamedas e recantos da capital. E posso me orgulhar de ter sido
um cicerone exemplar. Pudera! Além do roteiro não ter sido preparado por mim,
e, sim, por minha experiente e prestativa assessoria, minhas credenciais
franqueavam lugares antes vedados aos madrilenos, o que deixava eletrizados os
meus parentes.
É verdade que Las Ventas não foram esquecidas. E como nesse dia não houvesse
touradas, não achei mal mostrar a Plaza
deserta à minha família, na esperança de que meu irmão se satisfizesse em sua
grandiosidade e abandonasse a ideia de levar Ana ao mortífero espetáculo.
Minhas credenciais, como sempre,
foram suficientes a que entrássemos. E assim que descortinamos, lá de cima, a
“pequenina” arena, lá embaixo, meus parentes ficaram impressionados!
Até minha cunhada teve que ceder
ante a sua imponência, não deixando de comentar, à voz maravilhada, o tamanho
da balbúrdia que deveria ser se todos os lugares estivessem ocupados.
E quando respondi, pelo que me
lembrava das conversas que travara, que a capacidade do edifício é para mais de
vinte mil espectadores, Patrícia franziu a testa.
Não deixei de reparar que meu irmão,
que segurava Ana no colo, procurava passar à filha como deveria ser empolgante
estar no meio de milhares de pessoas arrepiando-se com o touro enfurecido,
vibrando com a coragem do toureiro e gritando “Olé!” a uma só voz.
Por
óbvio que a pequenina não alcançava tudo o que o pai tentava retratar. No
entanto, ela era toda atenção, e empolgação, reações naturais a uma filha ao
ouvir o seu primeiro herói.
Patrícia,
por sua vez, aproximou-se sorrindo de ambos e, com aquele jeitinho materno que
nunca falhava, retirou sem dificuldades a filha dos braços do pai. Em seguida,
passou aos contra-argumentos, buscando desfazer qualquer encanto que aquelas
cativantes palavras pudessem ter produzido.
Como
antevisse um novo impasse, encontrei na brisa que incomodava e nas nuvens que
assomavam a saída oportuna. E sugeri suspendêssemos o passeio e retornássemos
para a embaixada.
No
entanto, como fazia muito tempo que não viajavam, e como estavam encantados com
a capital, meu irmão e cunhada não queriam perder um só segundo. Daí que ambos
desdenharam da ameaça de chuva e insistiram para que continuássemos. Se a chuva
sobreviesse, que nos metêssemos em algum Café e a esperássemos passar,
ocupando-nos com suas delícias.
Não
me opus, e prosseguimos.
Como
aos meus parentes tudo era novidade, e encantamento, nem se deram conta de que
a brisa ficava cada vez mais fria. E se desprezaram essa advertência, nem por
isso atrasaram a anunciada. E a chuva nos pegou em cheio.
E
como ninguém pensara em guarda-chuvas, a alegria por encontrarmos um Café
fez-se menos pelo que consumiríamos do que pelo aconchego de um abrigo.
É
verdade que os cafés ajudaram a que nos aquecêssemos. E, de igual forma, que os
doces e a conversação contribuíram para que o tempo passasse sem tédio.
No
entanto, tínhamos nos molhado muito, e nossas roupas não secavam.
E
se bem que ficássemos apreensivos quanto à saúde de Ana, dela só ouvimos alguns
espirros, e nada mais.
Quanto
a Patrícia, porém...
É
que minha cunhada já chegara do Brasil com a garganta arranhando. Daí que se a
manhã seguinte amanhecia ensolarada, ela seria a única que não a aproveitaria,
preferindo sacrificar um dia de passeio, prevenindo-se de uma gripe, a estragar
toda a viagem, internando-se em um hospital.
Mas
como estivesse bem acomodada na embaixada, sob os cuidados da governanta e do
nosso médico particular, Patrícia não quis que Ana e o marido se privassem dos
passeios. Que saíssem e depois contassem cada detalhe.
E
tanto insistiu, que aceitaram.
Assim,
lá fomos nós três pelas ruas de Madri; desta vez, porém, munidos de
guarda-chuvas.
Apreciamos
fontes e monumentos, entramos em mais uma das muitas igrejas e almoçamos no
icônico Sobrino de Botín. – Ângelo
prometeu voltar com a esposa tão logo ela se recuperasse.
Mas
como insistisse para que fôssemos à minha confeitaria predileta, que ficava a
uma boa distância de onde estávamos, tive a ideia de alugar uma charrete, o que
divertiria ainda mais minha sobrinha.
Só
que a Praça de Touros ficava no
trajeto...
Quando
a viu de longe, os olhos do meu irmão brilharam. E como ele soubesse, porque já
se informara na embaixada, que as touradas aconteciam neste exato momento, não
pensou duas vezes e sugeriu que fôssemos assistir a pelo menos uma, antes de
fecharmos o dia com chave de ouro, na confeitaria.
Fiquei
sem palavras, pois sabia que Patrícia não gostaria que sua filha entrasse.
Minha
indecisão, contudo, não perduraria. É que Ana também pedia para que
assistíssemos à tourada; e com tal graciosidade que dobraria até o mais austero
dos puritanos. E como Ângelo garantiu que assumiria toda a responsabilidade...
Dava
para ouvir os “Olés!” já de fora, o que evidenciava a habilidade do toureiro e
uma Plaza lotada.
E,
com efeito, parecia que Madri inteira elegera o domingo para se comprimir. Não
fosse minha credencial, e certamente não passaríamos do portão de entrada.
Rumamos
para a área reservada às autoridades, talvez o único lugar em que ainda
sobrasse espaço.
Realmente,
só havia mais dois assentos disponíveis.
Meu
irmão pegou a pequenina no colo para que ela pudesse ver alguma coisa. Sua
alegria era visível, não só porque atiçada pela euforia da multidão, mas,
também, pela grande expectativa que Ângelo ajudara a construir.
O
toureiro, moço ainda desconhecido, exibia um talento promissor. Sua postura era
garbosa, e a destreza com que manuseava a capa fazia do touro marionete e
levava o público ao delírio.
Ana
perguntou ao pai se o touro estava suando muito.
Ângelo
não entendeu a pergunta.
A
menina insistiu, referindo-se às costas do animal. – ela confundia suor com o
sangue que escorria e se espalhava pelo lombo, depois da intervenção dos
picadores, e que se evidenciava sob a ação dos raios solares.
Meu irmão, então, buscando uma justificativa
que a contentasse, respondeu que como o touro ia e vinha com muita rapidez,
naturalmente suava muito nas costas.
Ocorre
que o tercio de matar caminhava para
o ápice...
E
como a visão a todos aprisionava, ninguém teve a ideia de colocar Ana no chão
para que não a presenciasse.
O
toureiro perfilou-se defronte ao touro, apontou a espada, e arremeteu com
precisão. E saiu para os aplausos...
Ana acompanhou toda a tragédia,
incluindo o consequente cuspir do sangue, o rápido estrebuchar, e o tombar
fatal.
E ao mesmo tempo em que Las Ventas iam ao delírio, Ana abria o
berreiro; e não porque tomasse um susto com a troada que explodia, mas, sim,
porque sua pureza se chocara com a brutal realidade.
Ângelo tentou em vão afagar a filha,
dizendo, entre outras bobagens, “Não foi nada, não foi nada...” e “Calma, já
vai passar...”
Mas
ela continuava a soluçar.
Uma
das autoridades que estavam ao nosso lado, porque já tivesse extravasado o seu
júbilo, percebeu o choro compulsivo e se aproximou preocupada.
Não
sei se isso foi decisivo, mas o fato é que ela foi se acalmando, se
acalmando... e parou de chorar.
E
quando todos já sorríamos, minha sobrinha soltou esta frase, dita na mais pura
ingenuidade:
-
“Vou pedir pro menino Jesus pra nunca mais o touro morrer.”
Mesmo
falando em português, o espanhol compreendeu a frase. E nós três nos
compadecemos dela.
O
melhor a fazer, portanto, seria irmos embora. E partimos na direção da minha
confeitaria preferida.
Lá,
a vermelhidão nos seus olhinhos sumiria e daria lugar a um cativante sorriso,
pois Ângelo prometera à filha tudo o que ela quisesse, mas com a condição de
não contar à mãe o fato de termos ido às touradas.
E
não é que a menina aceitou!...
Ana
cumpriu o prometido, o que nos deixou bem junto a Patrícia.
No
dia seguinte, como já estivesse bem melhor do mal que lhe acometera, minha
cunhada não se fez de rogada e foi logo perguntando aonde iríamos.
Como
já verificara o itinerário traçado por minha equipe, não titubeei e recomendei
o Parque del Retiro. Assim, nós
passearíamos, Ana brincaria, e depois almoçaríamos ali perto, em um pequeno
restaurante que, segundo as mesmas fontes, preparava a melhor paella da cidade.
Quando
caminhávamos às margens do Estanque
Grande, o grande lago, demos com um banco convidativo, pois era sombreado e
o sol já incomodava.
Ana
preferiu correr atrás das pombas, mas com a promessa de não ir muito longe; se
bem que Patrícia não lhe desgrudasse os olhos.
Mas
quando nossa conversa deu uma pausa, percebemos uma discussão entre dois
senhores, sentados em banco próximo.
Pelo
que ouvia, comentavam uma notícia de primeira página. Um, revoltava-se, pois
não acreditava que o principal jornal da Espanha tivesse a coragem de publicar
tamanha asneira; o outro, dele discordava, pois ouvira de fontes confiáveis que
o fato tinha realmente acontecido. E gesticulavam, e defendiam os seus pontos
de vista. Até que se levantaram e foram embora.
Como
o meio-dia se aproximava, Ana já reclamava de fome. E fomos à nossa maravilhosa
paella.
Quando
chegamos ao restaurante, que estava cheio, mas não lotado, percebemos um
alvoroço. É que aquela notícia já se espalhara por toda a cidade e não havia um
só homem ou mulher que não a estivesse comentando ou procurando mais notícias
nos periódicos.
O
maître nos conduziu a uma mesa e não
perdeu a oportunidade de perguntar se já sabíamos do acontecido.
E
como disséssemos que não, ele, muito solícito, tratou de providenciar um
exemplar para que nos inteirássemos.
Porque
estivéssemos bastante curiosos, resolvi traduzir rapidamente a chamada para os
meus parentes. E li em voz alta estas letras garrafais:
“Criança
brasileira suplica a Jesus. E os touros se revoltam!”
Não preciso dizer que assim que terminei, e me
dei conta do que acabara de ler, meus olhos se arregalaram e minha face ficou
vermelha.
E
também é desnecessário acrescentar que assim que levantei a cabeça, procurando
meu irmão, seus olhos e face estavam em pior situação.
Minha
cunhada percebeu a nossa reação – se bem que até um cego perceberia... – e,
desconfiada, insistiu para que eu lesse toda a reportagem em voz alta.
Ainda
bem que Ana, pequenina que era, não deu importância à notícia. Até porque, como
estivesse faminta, toda a sua atenção convergia para o jamón cerrado que pedimos como entrada.
Segundo
a notícia, que resumirei com minhas palavras, depois da tourada a que tínhamos
assistido, estavam programadas outras duas. Ocorre que, assim que o portão foi
aberto, ao invés de surgir um monstro enfurecido, como fazem os campeões, Las Ventas viu entrar, a trote manso, um
bicho meio apagado, nada atemorizante, e que parou no meio da arena, deitou-se,
e lá ficou. E por mais que os peones,
os assistentes do toureiro, tentassem açular o animal com suas capas, o touro
permanecia impassível, como se recusasse a investir contra quem quer que fosse.
Mesmo quando os picadores resolveram intervir para enfurecê-lo, o máximo que
ele fazia era mugir de dor, mas não se levantava.
E
enquanto o matador testemunhava, estarrecido, a inacreditável cena, as vaias
começaram a pipocar e logo tomaram conta de toda a Plaza.
O
jeito foi laçar o animal e puxá-lo para fora da arena com o auxílio das mulas.
O
mesmo fato aconteceu ao touro seguinte, o que deixou a arquibancada furiosa, os
assistentes, sem saberem o que fazer, e os toureiros, envergonhados e de unhas
roídas.
Mas
ao mesmo tempo em que o público começava a abandonar Las Ventas, um boato se espalhava mais rápido do que rastilho
aceso: Alguém teria ouvido da boca de uma menininha brasileira, que chorava
muito, um pedido para que o menino Jesus interviesse e nunca mais permitisse
que os touros morressem.
E
a reportagem terminava dizendo que, pelo visto, a súplica daquela “santinha”
tinha sido atendida.
O
silêncio imperou na mesa por alguns segundos. E só foi quebrado porque Ana, que
pensávamos não tivesse ouvido nada, soltou esta pérola, enquanto mastigava uma
fatia de presunto:
-
O menino Jesus meu ouviu. – E deu uma risadinha.
Ainda
bem que minha cunhada sempre primou pela compostura. Mas que ela disse ao
marido que depois teriam uma bela conversa, ah! isso ela disse!...
Tudo
teria acabado neste particular, que tiveram na mesma noite, não fosse o fato de
a embaixada ter sido cercada na manhã seguinte...
Sim,
centenas de espanhóis cercaram a nossa embaixada, e gritavam para que a
“santinha” desfizesse o pedido ao menino Jesus!
Ao
que parecia, aquele alto funcionário espanhol, que conosco dividira a Tribuna
de Honra, não só deu causa ao boato, estupefato que ficou assim que fomos
embora, como, também, deduzindo onde Ana estava hospedada, provavelmente por
ter me reconhecido, não se aguentou e forneceu aos jornais a maior das
manchetes.
Ficamos
sitiados até que a polícia chegasse e fizesse debandar os cidadãos.
Mas
isso estava longe de terminar. Como os touros de Las Ventas permaneciam revoltados, inúmeros jornalistas acamparam
defronte à embaixada, vários romeiros já tinham cruzado os limites da cidade, a
Igreja ameaçou excomungar minha sobrinha, e o Alcaide, em pessoa, requereu a mim uma audiência, e com urgência!
Mas
como desgraça pouca é bobagem, é óbvio que essas notícias cruzaram o Atlântico
e foram todas bater às portas do gabinete de Sua Excelência, o Presidente da
República.
Pois
não é que recebi um telefonema do próprio Getúlio Vargas, cobrando-me
explicações!
No
pé em que estávamos, a presença dos meus parentes, que só deveria trazer
alegrias, já se transformara em um terrível pesadelo, um verdadeiro incidente
internacional, com cobranças de todos os lados e, o que é pior, com a
possibilidade de sermos todos declarados personae
non gratae!
E
como minha carreira estava por um fio, chutei o meu positivismo, amordacei o
meu agnosticismo, e, engolindo o meu orgulho, também fui suplicar – às
escondidas, que fique bem claro – à minha sobrinha para que pedisse ao menino
Jesus para que tudo voltasse ao normal.
E
não é que a meninota revelou-se intransigente, e, desta vez, insubornável!
Mas
se até então não acreditava em milagres, fiz questão de agradecer aos céus pela
notícia que li semanas depois, e que foi estampada nos principais jornais do
país. – Depois de minuciosas análises, uma equipe de renomados veterinários
descobriu certa substância química que jamais fizera parte da dieta regular dos
touros, sendo essa a verdadeira causa da sua apatia.
Daí
que os animais passaram a ser alimentados com o melhor dos fenos, e sob a
fiscalização governamental. – A par disso, um inquérito policial foi instaurado
para apurar se aquela adulteração foi ou não criminosa.
Passado
o período necessário à recuperação, e os touros voltaram a reagir como
verdadeiros campeões.
Quando a poeira abaixou, nem se
pensou em almoço ou jantar de despedidas. Meus parentes arrumaram as malas,
saíram discretamente da embaixada, e partiram direto para o Brasil. – Aposto
que nunca mais pisarão na Espanha.
Os
jornais logo se esqueceram da “santinha” e da “Revolta dos touros”; até porque,
o generalíssimo Franco ocuparia as manchetes por um bom tempo ainda.
Eu
me aposentei três anos depois, e retornei ao Brasil.
E basta que nós quatro nos reunamos
para que aquele episódio volte à tona. E nos desmanchamos de tanto rir.
No fundo, eu até gostaria que minha
sobrinha tivesse mesmo o privilégio de pedir a Jesus e ser por Ele
imediatamente atendida. Não digo isso só pelos touros. É que, segundo me
confidenciaram amigos do Itamaraty, neste início de 1939, os ânimos lá na Europa
andam um tanto beligerantes...