Por Sérgio Moacir Pereira Fontana (Pelotas, RS)
Frederico era estudante do 8º ano no colégio dos padres em Rio Grande, RS. Tinha só 14 anos, mas já pensava em trabalhar para ajudar o pai a sustentar seus próprios estudos, aliviando desta forma o orçamento da família, enquanto "dona" Aracy, a mãe, cuidava dos dois irmãos menores e dos afazeres domésticos, como era costume na época. Ela, mesmo que quisesse, não teria tempo e, certamente, nem a permissão do marido para contribuir com trabalho remunerado fora de casa. "Seu" Agenor, o marido, costumava levar o filho mais velho aos sábados pela manhã para a repartição, onde o rapaz praticava a telegrafia, imaginando que alguns anos mais tarde poderia ser contratado pela Companhia de Navegação, espelhando-se no próprio pai que era telegrafista-chefe da empresa, e nela trabalhava desde a inauguração do Porto Novo, onde antes tinha sido estafeta. Depois, diante do conhecimento adquirido ao longo dos anos, foi galgado ao importante cargo de telegrafista.
Da ampla sala de mensagens, no último piso do edifício amarelo de três andares, com pé direito não inferior a 4,5 metros em cada andar, quase tudo podia ser avistado através das oito grandes janelas de madeira nobre, pintadas de ocre e direcionadas para o sol poente, e também das outras oito, opostas e idênticas, com vista para o estuário da Lagoa dos Patos. Mais um pouco, e se poderia ver o mar.
Já acostumado com a vista, e portanto alheio a ela, Frederico se concentrava - e muito - em seu treinamento no telégrafo. Para não interferir no trabalho desenvolvido pela empresa, não enviava mensagens, mas empenhava-se em decifrar as que chegavam, oriundas dos navios que se encontravam a poucas milhas da costa. Em casa, com um aparelho portátil, simulava enviar para alguém as mesmas mensagens que houvera decifrado anteriormente.
Quarta-feira, 13 de dezembro de 1939. Em férias escolares há quatro dias, Frederico resolveu acompanhar o pai no plantão de 18 horas, que começava às 13 horas e ia até as 07 da manhã do dia 14. Dois telegrafistas, por vez, eram destacados para o plantão; outros quatro cumpriam expediente das 07 às 13 horas; um outro entrava de folga. Em função do esgotamento mental produzido por suas atividades, a carga horária para cada um dos sete telegrafistas não deveria ultrapassar às 30 horas semanais, embora o serviço de telegrafia se mantivesse em funcionamento durante, ininterruptas, 24 horas.
Mesmo na madrugada o barulho das máquinas de telégrafo não cessava. Várias delas, sem nenhum operador, vibravam, por impulso elétrico induzido, com mensagens que nem eram dirigidas àquela estação, mas de uma embarcação para outra, nas proximidades.
Todavia, às 03:30 da manhã da madrugada do dia 14, a calmaria tomou conta do ambiente de trabalho. As mensagens - nenhuma delas urgente - foram rareando até que um silêncio, quase absoluto, predominou. Waldemar e Agenor, os telegrafistas do plantão, resolveram espantar o sono com café e biscoitos doces. A caminhada até a copa serviria também para esticar as pernas. Frederico adormeceu em uma confortável e bem torneada cadeira de carvalho, com espaldar e assento almofadado.
Quarenta e oito minutos se passaram entre a última mensagem recebida e a que começava agora a vibrar em um único aparelho de telégrafo, dentre os doze disponíveis. O sinal era fraco, mas se repetia, numa mesma seqüência, a um intervalo fixo de 60 segundos. Bateu uma, duas, três, quatro..., e provavelmente se repetiria mais vezes se não fosse uma repentina e forte "reação" de todas as máquinas de telegrafia, inclusive a que, instantes atrás, produzira os pulsos mais fracos. Os fortes sinais telegráficos matraqueavam em uníssono, acordando Frederico e alertando os plantonistas que se olharam sem nada entender. Era um código naval, mas este eles não conheciam.
Silêncio novamente. Em seguida, pulsos mais fracos começaram novamente a "cutucar" um dos aparelhos. Frederico colocou os fones de ouvido, pegou um lápis e uma folha do bloco de anotações, e começou a transcrever o que ouvia:
XERDR PGIEC FHBZE RJKGF HWQUP VEGJO UJFLL GFDHC HRHAR HGRIN LTSXT IUKKO ZLECN ZYHKV AMNFS JKSRG ZMHXB JKKEG GSHXK SVXBJ XUPEV TQWYT TLGMG TPN
E de novo:
XERDR PGIEC FHBZE RJKGF HWQUP VEGJO UJFLL GFDHC HRHAR HGRIN LTSXT IUKKO ZLECN ZYHKV AMNFS JKSRG ZMHXB JKKEG GSHXK SVXBJ XUPEV TQWYT TLGMG TPN
Atento, Waldemar, mais conhecido como "Polaco", foi ficando vermelho - talvez de nervoso que estava - e pediu para ver as anotações de Frederico. Nem bem pôs os olhos no papel, e todos os aparelhos tornaram a fazer barulho ao mesmo tempo, repetindo os sinais mais fortes.
Desta vez "seu" Agenor estava preparado. Copiou a mensagem e a comparou com a outra - a dos sinais fracos. Ambas tinham o mesmo formato-padrão, embora fossem diferentes. E nem uma, nem outra eram códigos conhecidos. Em seguida Waldemar, o polaco de quase 2 metros e mais - bem mais - de 100 Kg, sem dizer uma palavra, tratou de apagar todas luzes e ficou olhando através dos janelões, como se procurasse algo específico em algum prédio das proximidades. Só a tênue iluminação das ruas e, às vezes, o brilho da lua, quebravam a escuridão de céu semi-encoberto.
Nenhum edifício ou casa ao redor mostrava resquícios de iluminação interna. Waldemar, agora acompanhado por Agenor e Frederico, voltou-se para as janelas que davam para o lado do estuário. Viu uma fraca luz proveniente de um navio a vapor, ancorado no porto, e deve, nesse momento, ter achado o que procurava, pois desceu, correndo, as escadas de madeira que retumbaram até que ele chegasse à rua. Em seguida, tendo rodeado o prédio, reapareceu lá embaixo, caminhando, apressado, meio se esgueirando, em direção ao pequeno navio. Depois, sumiu no escuro.
Agenor reacendeu as luzes e, a partir das 5 da manhã, os serviços de mensagens voltaram ao normal, ao mesmo tempo em que os primeiros claros de manhã tentavam ultrapassar as nuvens do horizonte. Esqueceu-se, momentaneamente, de se preocupar com o Polaco, e pôs-se a trabalhar novamente, enquanto o filho, Frederico, desembaçava a janela com o punho, tentando reconhecer a silhueta de Waldemar que corria com dificuldade em direção ao edifício, trazendo, meio-envolto em um pano, um misterioso objeto que parecia ser maior e bem mais pesado do que uma máquina de escrever, embora parecesse se tratar de uma.
Extenuado, o Polaco precisou sentar-se tão logo adentrou à repartição. Lá embaixo, trancara a porta por dentro, e com a tranca de ferro.
- Está aqui a resposta! - disse ele.
- Mas o que é isto? - perguntou Agenor, com uma expressão bem assustada.
- "Isto" são as mensagens que captamos! Eu conheço muito bem esta máquina. Ela é um codificador/decodificador usado pelos nazistas há, pelo menos, uns seis anos. Meu irmão trabalhou na fábrica que a produziu inicialmente, e me ensinou como ela funciona. E antes que me perguntem, eu respondo: Sim, a máquina estava no navio; Sim, o operador está morto; e sim, nós estamos correndo perigo, mas ninguém me viu entrar ou sair de lá. Tragam-me as mensagens cifradas. Vou repetí-las na máquina, e ver o que obtemos quando mudarmos a posição do seletor para "decodificar".
Mensagem 1 (em código):
XERDR PGIEC FHBZE RJKGF HWQUP VEGJO UJFLL GFDHC HRHAR HGRIN LTSXT IUKKO ZLECN ZYHKV AMNFS JKSRG ZMHXB JKKEG GSHXK SVXBJ XUPEV TQWYT TLGMG TPN
Mensagem 1 (decodificada):
PANZERSCHIFF ADMIRAL GRAF SPEE ANNAHERUNG DER 30 PARALLELE. BERICHT MOGLICHE ANWESENHEIT DES FEINDES ENTLANG DER KUSTE.
- G-R-A-F S-P-E-E... - soletrou o Polaco.
- Que navio é este? - questionou Agenor.
- É um navio de guerra nazista. Eles querem saber se a passagem para o extremo sul do Oceano Atlântico está livre, mas eu não vou deixar que ele navegue incólume - respondeu, com raiva, o polonês. E continuou, mais vermelho do que nunca:
- Se eu puder atrasá-los um pouco, talvez a marinha inglesa consiga alcançá-lo e destruí-lo.
Mensagem 2 (em código):
CDBXR PSEEB LHNIW NPNLU NJQGJ XKBKV NCWDS GFWIH HSXUL EPZCS KLMNH LFBJO KVWML PVLIB LPABS SIILO LMXVF UGKLT KHQKP SYXAH XATCM INQYT TSCCP ZPWKA TVODP QIULV QUCSE UQZNE ZVYFJ OYWFG ZFKPJ IZYKS KSGZZ KHXED OLTBQ O
Mensagem 2 (decodificada):
IN DER NAHE FEIND SONDERN MIT REDUZIERTEM KRAFTE. KLARE WEG IN RICHTUNG SUDOSTEN SUDAMERIKA.
E complementou o polonês - vermelho de raiva:
- E "esta" é a resposta que partiu daquele navio ancorado ali, e diz mais ou menos assim: "Inimigo por perto, mas com força reduzida. O caminho está livre na costa sudeste da América do Sul".
Aparentemente, ninguém a bordo do vapor alemão tinha notado qualquer coisa de anormal. Waldemar contava com isso, mas não podia perder tempo. E antes de embrulhar a máquina com o pano e escondê-la num canto da grande repartição, ainda faltava fazer uma coisa. Poucos minutos faltavam para o término do seu expediente quando ele saiu e tratou de ir até a Delegacia de Polícia do Rio Grande. "Seu" Agenor, nervoso, esperou no local até às 7 da manhã, e quando seus colegas do turno diurno chegaram, respirou aliviado e mandou que Frederico fosse para casa. Uma hora depois a polícia veio. O sub-delegado, em exercício, um escriturário e mais dois policiais.
A máquina, reconhecida alguns anos mais tarde como sendo uma "Enigma", foi entregue às autoridades do município de Rio Grande, e o capitão e os 11 tripulantes, todos alemães, foram presos para interrogatório. Aparentemente eles estavam violando a então neutralidade do Brasil em relação à guerra.
Um pouco antes da polícia chegar, Waldemar transmitiu a seguinte mensagem ao Graf Spee:
IKHPF NBIEB VQQDY IEDJU HWQYZ ULISN QQLBX GXUVF QWHJR FAEIL EJGCD BNJTD MKNCL AIVIX VOLKN SQCZT RKIMU COCPT KSHXK SVLNZ PXTQO UJNIO VSCWA DHCOH GGDOD RKRBE IBXYN SFZIP ZAPTN LCCOO NWLDV VBDUC OMMZV PNBAE HPNMY HKJJD PMYR
A mensagem do Waldemar, decodificada grosseiramente, dizia:
FEINDLICHEN KRAFTE IN GROSSEN STUCKZAHLEN. WARTEN AUF UNBESTIMMTE ZEIT IN EINEM NEUTRALEN HAFEN.
“Forças inimigas em número muito grande. Aguarde por tempo indeterminado em porto neutro”.
Ecoou, dias depois, com grande estardalhaço nos noticiários brasileiros a notícia que o encouraçado de bolso alemão, o Graf Spee, acossado por uma incomensurável força inimiga, havia se internado no porto uruguaio de Montevidéu, e que no outro dia tinha sido afundado no Rio da Prata por seus próprios marinheiros, os quais temiam que a nau caísse, intacta, em poder dos aliados.
E assim quem, na verdade, decifrou o segredo da "Enigma", e selou o destino do grande navio de guerra alemão Admiral Graf Spee, foi o Waldemar, um simples, anônimo e vermelho - de tanta saúde que tinha - trabalhador polonês, radicado no Brasil, mais precisamente na cidade do Rio Grande, RS. Ele e "seu" Agenor viraram heróis na cidade, mas a façanha dos dois telegrafistas não repercutiu muito além dali.
O "guri", Frederico está aposentado há mais de 25 anos, e foi ele quem - com toda a calma do mundo - me contou este caso.
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