sexta-feira, 1 de janeiro de 2021

REVISTA CERRADO CULTURAL, DEZ ANOS (2011-2021)

 Por Paccelli José Maracci Zahler (Brasília, DF)

Parece que foi ontem, mas já se passaram dez anos de edição ininterrupta da Revista Cerrado Cultural. Não é preciso dizer da emoção que sinto em fazer desta uma edição comemorativa. É claro que houve dificuldades, todas superadas com muita determinação.

Para falar a verdade, a Revista foi criada em 2010, entretanto, por divergências com o proprietário do site que a hospedava, foi retirada do ar de um dia para outro, e extinta. A frustração foi imediata e passei a ver com desconfiança aquelas páginas que oferecem facilidades aos autores, depois começam a falar em custos, despesas extras, vem a anuidade e, em caso de atraso de pagamento, tudo é retirado do ar de uma hora para outra. 

Eu queria uma revista que nada custasse aos autores, mas faltava-me conhecimento de criação de páginas na internet. Felizmente, as páginas começaram a ficar mais intuitivas e para encontrar o Blogger foi um pulinho.

Criada a página, foi uma declaração de independência; e foi um custo resgatar os trabalhos publicados em 2010 e, felizmente, a maioria foi encontrada e republicada. Depois, foi o desafio de encontrar autores que quisessem colaborar com a revista. Porém, como todos já estavam escaldados das armadilhas da internet, ficavam desconfiados e, para mim, não teria sentido criar uma revista para publicar somente os meus trabalhos. Seria uma atitude muito egoísta e eu não conseguiria revelar os talentos literários - uma das propostas da Revista - divulgar escritores, poetas e amantes das Letras e das Artes.

Hoje, a Revista Cerrado Cultural conta com colaboradores do Brasil e do exterior (Portugal, Cuba, Grécia), é lida em pelo menos dez países, segundo o "Flag Counter", principalmente dos Estados Unidos. Ainda completamos com 1830 colaborações e mais de 118 mil acessos. 

Como editor, quero agradecer a todos que colaboraram, colaboram, apoiam, incentivam e divulgam a Revista Cerrado Cultural, sem esse trabalho voluntário não teria sido possível chegar aos dez anos.

Agradeço ao Blogger também por ter hospedado a Revista Cerrado Cultural sem custos.

Desejo um Feliz Ano Novo a todos e uma boa leitura!

A TAPERA DA "VÉIA ZECA"

Por Severino Moreira (Bagé, RS) 

Na ocasião deste causo, eu já era um gurizito taludo, de “doze p´ra treze” anos, e como sempre fui meio entonado, “balaqueava” o meu bocado, e uma das coisas que sempre dizia, era que de assombro eu não corria, embora na verdade me “cagaceasse” de medo de um dia me topar com alguma alma do outro mundo.

Por “balaqueiro” que eu era, é que se deu o causo que conto, pois tanto me gloriei da minha suposta coragem, que tive que agüentar a “pataquada” e passar uma noite solito na “tapera da véia Zeca”. Segundo diziam, uma tapera assombrada, lá na beira do Cerro da Ronda. Uma toca de morcegos, ratos e, cruzeiras.

Pois saibam que, realmente, existiu a “Véia Zeca”, a alguns anos atrás lá naqueles “cafundós” onde me criei, e eu próprio a conheci quando já era viúva, a uma dúzia de anos e devia andar por “noventa e pico” de idade Seu nome Maria José, mas conhecida, apenas por “Véia Zeca”. A bruxa da costa do cerro. “A Véia benzedeira”.

Era magra como uma taquara, alta como um “jerivá”, meia corcunda e nariz de cocóta, e como, naquele tempo, viúvas usavam “luto fechado”, andava de preto, desde o chinelinho de pano até o lenço na cabeça, e por isso, para a gurizada, era vista mesmo, como uma bruxa pois, além disso tudo, vivia solita, com um gato preto, até o dia que o “Patrão Velho” a chamou para a querência grande, tendo ficado a beira do cerro, apenas a tapera, com os “cacarecos” da pobre velha.

Era na verdade, uma boa pessoa, serviçal e habilidosa no “aparo” do piazedo, mas a aparência e todos aqueles rituais de benzedura que usava, provocava um certo medo na gurizada, pois não faltava quem assustasse a gente afirmando que a velha era mesmo uma bruxa, e que em noites de lua cheia voava “de a cavalo”, em uma vassoura de chirca e, que roubava as crianças, de uma mãe para entregar a outra, quando fazia parto.

Com a morte da velha, nasceu a crença de que sua alma não abandonara o ranchinho de torrão e santa-fé, e até aumentavam dizendo que lá do ranchinho sua alma benzia quebranto, cobreiro, mau olhado, bicheira, e até tormentas, e não eram poucas as pessoas que afirmavam terem visto a imagem de uma velha toda de preto, rondando o rancho.

Na verdade, ninguém se arriscava a anoitecer perto da tapera, pois diziam que se apagava o fogo, a cavalhada se soltava da soga, e aconteciam muitas outras coisas que ninguém até hoje encontrou explicação, e tampouco, provou ser verdade.

Pois, como lhes disse, foi na tapera da “Véia Zeca”, que aconteceu esse causo que agora eu conto, e tudo começou, porque de tanto eu “balaquear”, o Emerenciano Saraiva e o Deodato Rosa, que na época eram guris quase da minha idade, me fizeram provar que não tinha medo de assombro, passando uma noite solito dentro da tapera.

Foram os piores momentos da minha vida, nem queiram imaginar o pavor que senti, a cada vez que gritava uma coruja, ou corria um rato.

A noite era escura, embora a lua cheia, pois de quando em vez as nuvens pesadas encobriam a rainha da noite, o vento assobiava puxando chuva e alguns “pares” de raio pareciam rasgar o céu.

Os caibros estalavam, e as poucas janelas que restavam rangiam nas dobradiças. Até as árvores na volta pareciam gemer.

Eu escutava os sorros, os guarás, os guinchos de ratos, e todo aquele gritedo me parecia entrar nos miolos. Me faziam pensar que os bichos gritavam de medo.

 Me parecia escutar pisadas e sentia até a respiração de quem eu não conseguia enxergar. Ás vezes até me parecia vislumbrar, algum vulto, entre um “mandado” e outro.

 O frio subia pela espinha até arrepiar os cabelos, e os dentes batiam de tal jeito que me doíam as “carretilhas”, mas enfim eu precisava honrar a pataquada, e embora tremendo como vara verde, fiquei na tapera disposto pelo menos a tentar agüentar aquela noite de pavor.

 Tentando me proteger do vento e da chuva que ameaçava cair, arrastei os “cacarecos” da casa e encostei onde um dia tinham sido portas e janelas e, sem querer, tampei a porta do rancho com um guarda-roupas velho, que com o vento ficou batendo a porta, e balançando o espelho pregado nela.

O Emerenciano e o Deodato, que na verdade não ficaram cuidando para o caso de eu tentar fugir, conforme prometido, mas voltaram ao rancho e se cobriram com lençóis brancos, e ainda, fizeram máscaras de porongo e colocaram dentro, vidros cheios de vaga-lumes.

Queriam garantir o meu susto e me fazer admitir, que estava “cagado” de medo.

Quando chegaram à tapera, uma coruja, “rasgou mortalha” e o céu “véio” se riscou n´um raio, refletindo os dois no espelho da porta do guarda-roupa embalado pelo vento. Aqueles dois vultos brancos, com uma caveira luminosa em cima dos ombros, fazendo um “lusco fusco”, pelos buracos, de olhos, boca e nariz.

 Não me borrei, por que não vi nada, na verdade, nem olhava pra fora de medo, mas o Deodato e o Emerenciano, que viram, esses vultos, sem saber que era o espelho, levaram tamanho “cagaço”, que fez darem os costados no rancho em questão de minutos, sem fôlego, e brancos como “Morim quarado”.

Nunca mais me desafiaram, o que foi uma prova, de reconhecimento a minha “coragem”, mas eu com a “noite de cachorro” que passei, também deixei de ser “balaqueiro”, pois não agüentaria outro desafio igual. Además, aja sabão p´ra lavar as ceroulas depois.

 

 

*Todos os personagens deste causo, são fictícios.

 

 

 

 


Por Pedro Du Bois (Balneário Camboriú, SC)




APENAS PROFESSOR DE INGLÊS


Por Pedro Du Bois (Balneário Camboriú, SC)

Mesmo que o planeta esteja incendiado

em guerras e arda em chamas

de desconhecimento: o fragor

da batalha assume a música

e os mortos assombram o noticiário

com os  horrores bestiais

dos relacionamentos: o humano

multiplicado no extremo

civilizatório das vitórias

decompostas em terras arrasadas

no instante em que se percebe

tolo na sala a repetir a língua

estrangeira em que é formado

e responde pela alienação e fuga.

 

Você é apenas o professor de língua inglesa

- um entre tantos: o mais assustado

com o que entende no discurso

dos que chegam com verdades

exteriores das batalhas

que horrorizam a língua

e a mantém presa.




 

A POSSIBILIDADE DE UM MUNDO SEM MENTIRAS

 Por Luiz Augusto Rocha do Nascimento (Brasília, DF)

 

As crianças entram em um mundo de mentiras falando a verdade. Portanto, mentir é uma construção social, não um determinismo humano. Assim, as crianças crescerão e aprenderão, passo a passo, a omitir determinadas ideias, fatos, acontecimentos, dentre outras coisas. É um processo de desaprender a falar a verdade, de mencionar o que se pensa e o que se acha sobre tudo. É deixar de ser autêntico para ser sobrevivente.

Portanto, vimos que a mentira entrou no mundo por uma necessidade humana, uma questão de omitir fatos. Não se trata pura e simplesmente de se faltar à verdade por pura canalhice, por pura falta de ética ou de decência. É uma determinação da própria evolução humana, pois, como a Teologia mencionou, a Revelação se dá em ondas, em etapas. Por isso, nem todos possuem o preparo para encarar a verdade, a saber de tudo indiscriminadamente.

Moisés subiu ao Monte Sinais, no Êxodo, e passou quarenta dias e quarenta noite em seu interlúdio com o Grande Arquiteto do Universo, que é Deus. Ele, ao final desse período, trouxe para o povo as Tábulas da Lei. Um decálogo de regras simples para guiar o Povo Escolhido, de início, e a Humanidade, depois. As Leis vieram aos poucos, e seu conhecimento não se deu de maneira geral. O conhecimento de seu conteúdo teve sua divulgação em etapas.

Porém, apesar de trazer uma parcela de Conhecimento para todos, Moisés trouxe mais conhecimento de sua jornada. No entanto, os hebreus não estavam ainda prontos para ouvir esses vastos ensinamentos. Por isso, Deus mandou seu emissário transmitir tudo isso apenas a alguns poucos, sábios capazes de entender a Mensagem e prepara-la para divulgação. Também por etapas.

O Mestre dos Mestres disse no Evangelho que não deveríamos jogar pérolas aos porcos. Em uma interpretação livre, nem tudo de valioso se deve dar a todos, pois nem todos possuem a capacidade de apreender o que se dá. A beleza de uma pérola só terá verdadeiramente sua apreciação para aqueles que serão dignos de entender sua beleza e apreciar o seu valor. Senão, não haverá valor algum.

Daí virá que nem tudo é para ser dito, nem tudo é para ser sabido. Haverá o tempo certo de se dizer, de se mostra, de se revelar. Quando o momento chega, a verdade virá à tona e a humanidade saberá o que estava oculto. A mentira, longe de algo feio ou perverso, possui seu papel na vida da Humanidade. Ela passou a ser uma necessidade de avançar, um ponto necessário para que, um dia, todos chegarão à Verdade.

Sobre o autor: Luiz Augusto Rocha do Nascimento é membro da Academia de Letras do Brasil, Seccional Distrito Federal, ALB/DF, Brasília, DF.

O VELHO PESCADOR

Por Tiago Martins Koeler (Brasília, DF)

Ubaldo era velho pescador das cercanias da Ilha do Governador. Caboclo calado, introvertido, carranca fechada. O tempo, de fato, não fora generoso com ele; a vida, a propósito, também não. Tez castigada pelos inumeráveis dias exposto a causticante sol, enquanto suas mãos, cujos grossos calos, quais estigmas, denunciavam as incontáveis ocasiões que aquele homem guarneceu a rede, horas antes da alvorada, para garantir sustento dos seus. Temperamento rústico, o velho pescador era daqueles que não se apropriava dos insultos recebidos. Herdara o ofício do pai e, ao que parece, feitio similar. Raramente algum desaforo ficava sem justa resposta, mormente quando se deparava com um ou outro comerciante de conduta inescrupulosa, nas oportunidades que negociava o pescado no mercado municipal.

Nascera no berço da república. A propósito, conta-se, afeto ao seu nascimento, que sua genitora, digna lavadeira, tivera gestação conturbada. Nesse período, dedicara-se, com maior ardência, ao santo de sua devoção. Todas as noites, terminados os afazeres, a gestante depositava singela vela em improvisado castiçal de barro. Acendida a mecha, inclinava-se, genuflexa, diante da sacra imagem e, entregue às súplicas sinceras, dentre outras, exortava:

¾ Ó, São Pedro! Santo da minha devoção... Valha-nos! Conversa-nos a saúde; e, nascendo menino, teu nome será o nome do rebento meu.

E dona Laurina permanecia com o rogo até que a última lágrima de cera escorresse e o pavio, qual suspiro derradeiro, expirasse a última chama.

Porém, assim não sucedeu.

Em que pese a criança ter nascido saudável e a parturiente ter ficado bem, o recém-nato recebera outro nome quando levado à pia batismal.

José de Arimatéia, esposo de Dona Laurina, pai do menino, em conduta monocrática, escolhera, insensível às súplicas da companheira, outro nome para criança. Resoluto, em homenagem ao fundador da colônia de pescadores, registrara o pequenino como Ubaldo. E assim, o esperado Pedro, chamou-se Ubaldo.

Não obstante, São Pedro, por ostensiva e ardente influência materna, sempre se fizera presente na vida daquele pescador, desde a tenra idade, de maneira que Ubaldo tornara-se leal devoto do pescador de Cafarnaum.

As homenagens que o filho de Laurina consagrava a São Pedro, sobretudo aos vinte e nove de junho, eram surpreendentes. Organizava singela, porém, ardorosa procissão em honra ao santo, culminando, por fim, na distribuição, entre os menos favorecidos, do pescado angariado naquele dia.

Todavia, como dantes relatado, a vida fora longe de ser generosa com aquele velho pescador.

Por cerca de cinquenta desgastantes anos, Ubaldo despertava antes mesmo do concerto galináceo. Entre as mãos, tomava velha caneca de ágata, abastecida de pingado, consistindo, nisso, o seu desjejum. Osculava Ana Emília, a adorável esposa, e Raquel e Júlia, as doces filhinhas, todas, ainda, sob o jugo de Morfeu. Ausentava-se do casebre e, na companhia dos demais pescadores, dirigia-se às barcas.

Pés descalços sobre a gélida areia praiana, embainhava as pernas da calça pouco abaixo dos joelhos para que as marolas da Guanabara , a banhar-lhe os pés, também não encharcasse a vestimenta.

A lua, não raro, era solitária companheira daqueles homens. Testemunha sem voz, o astro projetava reflexo argentino nas águas mansas da baía que, suavemente, ondulavam ao sabor de moderada brisa. E na companhia da silenciosa companheira, a colônia apropriava-se de varas e tarrafas, carretilhas e molinetes, e, ao comandando do esposo de Ana Emília, embarcava.

Alta madrugada, os pescadores lançavam redes à Guanabara e punham-se a esperar. A barca cedia ao brando ondear das águas, caturrando amenamente. Nessas circunstâncias, esforçavam-se para não ceder aos apelos de Hipnos, que insistia em envolver-lhes entre suas asas, ao passo que o murmúrio das águas assemelhava-se à sinfonia de sua flauta, a conduzi-los, quase que irresistivelmente, ao sono necessário.

Por volta das oito da matina estavam de regresso. Por vezes as águas eram generosas. Enchiam muitos cestos com o pescado recolhido. Contudo, não raro, eles voltavam da labuta desprovidos de um peixe sequer.

Naquelas ocasiões, Ubaldo divagava em suas esperanças. Apesar do caminhar errante, rememorava, quase sempre, a pesca milagrosa, quando o apóstolo Pedro, transcorrido o insucesso daquela madrugada, recebera o amparo do Cristo. Desejava, como sucedeu a Pedro, ouvir o doce verbo do Mestre Galileu a ordenar-lhe: “...desce as vossas redes...”.

Malgrado tão árdua luta, o pescador, recolhido em seu temperamento, não se entregava aos lamentos, guardando a fé que lhe preenchia a alma.

Findado o labor, regressava ao ninho doméstico, sendo acolhido entre os braços e os abraços filiais.

E assim transcorreram-se os dias por muito tempo. No entanto, uma tragédia silenciosa e repentina fora anunciada.

Certa ocasião, quando desembaraçava as redes para faina da madrugada vindoura, surpreendera-se com a presença da caçula, que trêmula, requisitava urgentemente a presença do pai no templo domiciliar. Ubaldo não hesitara. Abandonando as redes aos cuidados dos companheiros de lida, debandou, aflito, em companhia da menina, rumo à singela morada.

Célere, em breves minutos atravessara o limiar da choupana. Adentrando imediatamente em apertado aposento, vislumbrou a esposa querida deitada ao leito sob os cuidados da primogênita que, diligente, depositava lenço úmido sobre a fronte da mãe, que transpirava em abundância.

Lançando-se junto à cabeceira, o esposo, instintivamente, conduziu a destra ao rosto da acamada, tocando-lhe levemente às maçãs com o dorso da mão, constatando o estado febril.

Voltando os olhos para àquela que acudia, indagou das circunstâncias que a levaram àquele estado. A jovenzinha cientificou-o que a genitora acordara bem e de nada se queixara. Como de rotina, imprimia esforços na execução dos serviços domésticos.

Há três semanas, entretanto, que Ana Emília sustentava tosse incomum, acompanhada de dores no peito.

Providenciara-se a visita de algum galeno. No princípio da tarde, o médico apresentou-se àquela residência. Minutos a fio o profissional examinara minuciosamente a paciente, aportando em determinada prognose:

- Tuberculose – afirmara o doutor.

- Quê!?... – Ubaldo rebatera, atordoado.

Em um dos cantos do dormitório, as jovenzinhas abraçavam-se aflitas.

- Sim. Tuberculose – tornara a afirmar. Trata-se de prognóstico. Receio, porém, que ela seja diagnosticada nesse sentido. Os sintomas nos conduzem a essa direção.

E depois de breve intervalo, prosseguiu:

- Amanhã regressarei. Tratarei de algumas providências e, caso o estado da paciente se agrave, a internarei no sanatório. Necessário evitar contato. Apenas um dos três mantenha vigília.

A família estava estarrecida.

O esculápio ausentou-se.

Escoaram-se as horas. Finalmente a noite estendera seu manto sobre o páramo, lançando o breu na atmosfera. As estrelas ocultavam o brilho e a lua manifestava timidez singular.

Não obstante a inexistência de apetite, a condição da consorte de Ubaldo manteve-se estável. Entre os familiares, um misto de esperança e angústia estrangulava-lhes os corações. E embora a estabilidade apresentada, o clima noturno não fora gentil com a paciente. No princípio da madrugada, a tosse intensificara, enquanto o peito era tomado por fortes dores. A febre não apartara. Ana Emília suava fartamente.

Na manhã seguinte, o estado de saúde da paciente agravara-se consideravelmente. Não havia escolhas. A internação era condição inalienável. A tísica a atingira substancialmente.

A enferma fora conduzida ao sanatório localizado na região serrana do Estado. De imediato, recebera toda a assistência necessária. Foram intensos os recursos aplicados, mas a paciente não respondia às expectativas. Ao longo dos dias, a situação piorara sobremodo. Ana Emília apresentava excessiva fraqueza. As terapêuticas adotadas não alcançaram os efeitos esperados, de forma que ao término da terceira semana asilada, a esposa do pescador não resistira, falecendo, afinal.

       O tempo, resoluto, qual rio a percorrer o leito, tomou o seu curso. O velho pescador, apesar do escoar da ampulheta, jamais voltara a ser o mesmo. Prosseguira labutando, naturalmente, mas raramente envergava um riso na face, e quando sorria, não conseguia esconder a tonalidade melancólica que o desbotava.

Raquel e Júlia deram rumos aos destinos. A primeira estabelecera residência no litoral paulista, após desposar um Alferes. A segunda, posteriormente à desilusão amorosa, elegera o hábito, devotando-se ao noviciado em um antigo convento carmelitano.

Passaram-se os anos. A alvura impunha-se ao cabelo de Ubaldo, qual neve acumulada no pico de um monte.

E a despeito de nenhum acontecimento merecer atenção pormenorizada, conta-se que, em uma madrugada de límpido firmamento, o velho pescador, antecipando-se aos companheiros de luta, tomara a barca e pôs-se a navegar. Os demais pescadores, em virtude da ausência do viúvo, debandaram à baía. Certificando-se da subtração de uma das embarcações, os colonos ainda puderam visualizar, ainda que distante, o gurupés e diminutas cãs.

O fato é que, sucedido o episódio, o ancião nunca mais fora visto, e inúmeros mitos foram construídos em torno do ocorrido.

Alguns afirmaram que o velho pescador, dirigindo-se ao alto-mar, depara-se com violenta tempestade, sem que nada pudesse fazer; outros alegaram que provavelmente fora envolvido pelo encanto do canto de Iara. Reduzida parcela asseverou que o senil, deparando-se com São Pedro, rejeitara o regresso ao continente. Os demais, contudo, não hesitavam em assertar que Ubaldo vira o próprio Cristo andar sobre as águas na companhia de Ana Emília, tendo indo ao encontro de ambos.

Com efeito, nunca se chegou à conclusão do que teria acontecido. Sabe-se, todavia, que o velho pescador jamais fora esquecido. Ele deixara uma lacuna irreparável naquela colônia, não restando dúvidas que aquele homem, ante os mares encapelados que lhe agitaram a existência, era muito mais que um ordinário pescador, pois que ele sabia lançar as redes no vasto e imprevisível mar da vida, arrastando para si muitos corações amigos.

Sobre o autor: Tiago Martins Koeler, ocupa a cadeira nº 57, da Academia de Letras do Brasil, Seccional Distrito Federal - ALB/DF.

O DELEGADO E O LOBISOMEM (UM CASO BRASILEIRO)

Por Manoel Neto   (Brasília, DF)          

            Era uma daquelas pacatas cidades do interior, onde o povo simples e humilde vivia sem a agitação da cidade grande. Aos domingos, missa na igreja; depois, o programa preferido e talvez o único: ficar na praça contando histórias. Foi nesse clima de interior, em que as pessoas ainda respeitavam as tradições e lendas, que se passou este caso: o encontro do delegado de polícia e o lobisomem.

            Idos de 1930: em Joanópolis — cidade que fica ao pé da Serra da Mantiqueira e cercada pelas altas montanhas da Serra do Lopo — ocorre um fato que deixa a pequena cidade em pânico. Vários animais mortos começaram a aparecer, misteriosamente, sem que ninguém soubesse a explicação. Alguns, mais curiosos, diziam ter visto um grande homem peludo com cabeça de lobo atacar as ovelhas e os cachorros do vilarejo.

            O clima de medo foi crescendo, e a polícia, apenas um velho cabo e um soldado, passou a investigar o caso. Zé Bento, como era conhecido o cabo, juntamente com seu assistente, o soldado Manelão, montaram guarda durante a noite nas ruas de Joanópolis para tentar identificar e prender o tal bicho. O cabo Zé Bento tinha fama de valentão e de ser cabra-macho; botava moral em qualquer um e mantinha a ordem no lugar, tanto que a última ocorrência registrada na cidade era um simples furto de um leitão, caso que o prefeito da cidade mandou abafar. Desde aqueles tempos, a polícia já sofria intervenções políticas.

            Certo dia, uma sexta-feira de lua cheia, os dois policiais, ao passarem por uma encruzilhada, lá pelas tantas horas da madrugada, ouviram um uivo estridente que vinha do mato.

            O cabo Zé Bento, tremendo até os ossos, ordenou ao soldado Manelão que fosse à frente verificar do que se tratava. Quando o soldado Manelão seguia em direção ao mato, um segundo uivo ainda mais alto e mais aterrorizador ecoou vindo da escuridão. Foi nesse momento que o soldado saiu em desabalada carreira rumo à delegacia, seguido pelo cabo Zé Bento, que gritava:

            — Volte aqui, seu insubordinado... Volte aqui!

            Logo que a notícia de que o tal lobisomem tinha colocado os dois policiais para correr se espalhou pela cidade, o prefeito, pressionado pelos moradores, teve que tomar uma decisão. Comunicou, então, o fato à Capital e pediu ajuda para resolver o problema.

            O presidente Washington Luís, temendo ser o início de uma rebelião e, com base na chamada Lei Celerada, datada de 1927, que permitia a repressão a atividades políticas e sindicais operárias, tratou de enviar um delegado de polícia para cuidar do assunto. O delegado era um jovem, reconhecido como sendo livre e de bons costumes, formado em Direito pela renomada Universidade do Largo do São Francisco.

            A essas alturas, os rumores e as histórias aumentavam a cada dia. Um senhor afirmou ter visto o tal lobisomem durante a noite em seu quintal; outra senhora relatou tê-lo visto enquanto voltava da igreja; e uma mulher que trabalhava em uma casa noturna afirmou ter visto bem o bicho enquanto ele tomava uma cervejinha e que, além de cabeludo, tinha as partes enormes, além de outras qualificações e apetrechos que não vale nem a pena contar.

            Na cidade não se falava em outra coisa, mas, além do lobisomem, outra novidade chegaria à pequena Joanópolis: o tal delegado de polícia. Alguns moradores chegavam a arriscar a descrever como seria esse tal delegado. Uns diziam ser um homem todo de branco como um ser encantado e com poderes mágicos; outros diziam usar uma estrela brilhante no peito, como os xerifes do Velho Oeste americano.

            No dia previsto para a chegada da tal autoridade, o prefeito ordenou que se fizesse uma festa para recepcionar o ilustre visitante. Aliás, Joanópolis é uma cidade que surgiu de uma festa realizada em meados de 1878; portanto as festas eram comuns, mas esta era especial. A banda de música da cidade foi convocada e o palanque foi montado, tudo isso para homenagear a chegada da autoridade policial, enviada especialmente pelo Presidente da República.

            Ao entardecer, na hora prevista, um automóvel aponta no horizonte de Joanópolis. Só podia ser o tal delegado, pois automóveis não eram comuns naquela região: apenas as charretes dividiam o espaço com as bicicletas. O carro aproximou-se, parando em frente ao palanque oficial; a multidão, alvoroçada, acenava com as bandeirinhas em suas mãos e gritava:

            — Viva o delegado! Viva!!!

            Foi quando a porta do carro se abriu e de lá saiu um homem de terno preto, camisa branca, gravata lisa e chapéu também na cor preta, que olhou com o semblante sério para multidão, sem um sorriso sequer em seu rosto. O silêncio foi geral; aquela figura toda de preto não era nem de longe parecida com aquilo que haviam imaginado. Logo o prefeito aproximou-se e deu as boas vindas à autoridade, que se limitou apenas a dizer:

            — Justo!

            E, perguntando onde ficava a delegacia de polícia e sem mais nada a dizer, entrou novamente no veículo, seguindo rumo às instalações policiais. O povo ficou estarrecido: era um sujeito de poucos sorrisos e de pouca prosa, talvez fossem os ossos do ofício, afinal, qualquer um poderia ser o lobisomem, até o prefeito.

            Na delegacia, cabo Zé Bento e o soldado Manelão davam duro para tirar a poeira do local, com vistas a recepcionar a autoridade policial, que, assim que chegou, foi logo dizendo:

            — Eu sou o Doutor Abdias Isaías dos Santos, delegado de polícia da Capital, e estou aqui a mando do Chefe de Polícia, sob as ordens do Presidente, Washington Luís.  Ao dizer isso, o delegado foi logo sentando-se em uma mesa, enquanto cabo Zé Bento e o soldado Manelão o observavam, encantados.

            O delegado retirou alguns objetos de sua mala; entre eles, uma máquina de datilografar e um Código Criminal da República, editado em 11 de outubro de 1890, em substituição ao antigo Código Criminal do Império. Em seguida chamou o cabo Zé Bento e, após qualificá-lo, disse-lhe:

            — Você está sob o compromisso de dizer a verdade. Ordeno que me conte tudo o que sabe sobre esse tal lobisomem, quem é ele e o que pretende. Enquanto o cabo ia respondendo as perguntas, o delegado ia, pacientemente, como é característico dos delegados, datilografando o seu depoimento e reduzindo tudo a termo. Ao final, determinou ao cabo Zé Bento que assinasse seu termo de declaração e que instaurasse procedimento policial para apurar os fatos. Talvez este seja o embrião do inquérito policial que foi inserido anos depois em nosso Código de Processo Penal, de 1941.

            Na mesma noite, a praça da cidade estava lotada. Todos estavam a fazer as suas apostas: o delegado ou o lobisomem? Quem venceria o duelo? Foi quando o carro do delegado apontou no fim da rua; era gente correndo pra tudo que é lado; dizem que até o aleijadinho, que ficava na praça, saiu que nem um foguete para dentro da mercearia do seu Tião. As janelas e portas fechavam-se, todos se trancavam, só os mais curiosos deixavam uma pequena fresta na janela para ver o que estava acontecendo.

            O delegado passou lentamente pela praça e se dirigiu ao local onde o tal lobisomem tinha feito sua última aparição. Após várias diligências e entrevistas, voltou à delegacia para confeccionar o seu primeiro relatório sobre o caso, o qual seria endereçado ao Chefe de Polícia, na Capital e cujo pequeno trecho foi assim descrito:

 

Excelentíssimo Sr. Chefe de Polícia.

Em cumprimento à missão que me foi incumbida  por V. Exa., passo a relatar as primeiras informações sobre o caso de Joanópolis. Assim que cheguei ao local, determinei a instauração de procedimento investigatório para apurar o ocorrido. Trata-se de um tal de lobisomem, que dizem morar na Serra do Lopo, cujo pico tem cerca de 1.730 metros de altitude. O tal bicho tem várias descrições, sendo a mais comum: sujeito peludo com cara de lobo. O "modus operandi" é sempre atacar em noites de lua cheia. (...) Até o momento não verifiquei focos de rebelião que venham a colocar em risco a Segurança Nacional (...)

 

            Após despachar o relatório, o delegado foi organizar as próximas diligências. No dia seguinte, à noite, as mulheres faziam novena, pedindo proteção contra o bicho. Lá fora, o delegado, juntamente com cabo Zé Bento e soldado Manelão, patrulhavam as ruas desertas em busca da tal aparição. De repente, o silêncio da noite foi quebrado por um uivo estridente e medonho, ouvido por toda cidade, que deixou os moradores em polvorosa. Já o delegado nem titubeou e foi logo gritando aos quatro cantos do local:

            — Apareça, coisa ruim! Deixa de ser covarde!

            A cada grito do delegado, cabo Zé Bento e soldado Manelão ficavam aterrorizados. E se o bicho atendesse ao chamado, como ficariam? O armamento dos dois resumia-se a um bacamarte e um velho revólver, já enferrujado e com apenas duas munições. Mas o que deixava cabo Zé Bento mais calmo era a arma que o delegado portava; isso sim é que era arma de polícia: uma pistola semiautomática cromada, armamento pesado para aquela região, quem sabe até municiada com projéteis de prata. Porém, a noite acabou e o tal lobisomem não apareceu. O delegado deu por encerradas as diligências, contudo não se deu por vencido.

            Diante do fracasso da diligência, o delegado, sabendo que no outro dia era noite de lua cheia, tratou de esquematizar uma campana, mas, desta vez, ao pé da Serra do Lopo, por onde se suspeitava que o tal bicho descia. Cabo Zé Bento e soldado Manelão, ao saberem dos planos do delegado, correram para entregar as patentes, dizendo que não iriam de jeito nenhum ao pé da serra, nem se tivessem que enfrentar um Tribunal Militar. O delegado, por sua vez, disse não aceitar tal desistência e que a baixa só seria concedida nos casos previstos em lei; e, após aplicar um belo sermão aos dois, fez com que eles colocassem a farda e o seguissem na terrível empreitada: o encontro com o lobisomem.

            Na cidade, o vigário reuniu os moradores para que, juntos, rezassem em favor dos bravos policiais, que estavam a arriscar suas vidas contra o mal, pela comunidade e pelo Brasil. Após horas de caminhada mata adentro, chega a noite e junto dela um nevoeiro que se forma ao pé da serra, fenômeno comum naquela região. Cabo Zé Bento e soldado Manelão tremiam como vara verde, não se sabe se de frio ou de medo. Mais à frente ia o delegado, destemido homem da lei, com seu terno preto e chapéu, não via a hora de se encontrar com o tal lobisomem. Por um momento, o delegado ouve sussurros e para de caminhar, sendo que, ao olhar para trás, vê cabo Zé Bento e soldado Manelão ajoelhados, rezando o terço; a cada oração, pediam para que o bicho desaparecesse. O delegado então gritou:

            — Tratem de se levantar, bando de cabra frouxo! Honrem o juramento que fizeram quando ingressaram na corporação policial.

            Após outro sermão (apesar de não ser padre, o delegado fazia excelentes sermões), a autoridade policial, já aborrecida com a falta de coragem de seus assistentes, seguiu ainda mais determinado a encontrar o tal lobisomem e acabar de vez com aquela situação. Almejava voltar o mais rápido para a Capital, pois a situação do país era instável e corriam boatos de que o presidente Washington Luís estava para sofrer um golpe.

            A diligência prosseguiu e, já de madrugada, acampados ao pé da serra, ficaram à espreita, esperando o lobisomem. Foi quando, de repente, o já costumeiro uivo ecoou no meio do nevoeiro. Porém, desta vez, deu pra ver aquele vulto enorme se movendo em direção aos policiais. Era ele, o tal bicho! Cabo Zé Bento e soldado Manelão tentaram correr, mas lhes faltaram as pernas. O delegado, logo de pronto, sacou de sua arma e fez a visada, aguardando o momento certo para disparar. Homem corajoso, não tremia um milímetro sequer e, com seu aguçado tirocínio policial, percebeu que havia algo de estranho naquela aparição. O vulto vinha de uma direção, mas o uivo de outra; por um momento, pensou tratar-se de dois lobisomens, mas logo o mistério seria desvendado.

            O vulto aproximava-se e cabo Zé Bento e soldado Manelão trataram logo de se fechar na barraca, tamanho era o pavor que sentiam. O delegado viu que estava sozinho: era ele e o lobisomem. Finalmente iriam estar frente a frente. Os uivos aumentavam e o vulto continuava a se aproximar. Foi quando o delegado gritou a clássica frase:

            — Pare... em nome da lei! É a polícia!

            Depois do grito, o delegado ainda teve tempo de pensar: será que lobisomem sabe o que é polícia? Pelo sim e pelo não, tratou logo de disparar um tiro certeiro que atingiu o pé do lobisomem. De repente, uma voz corta todo o clima:

            — Ai... meu pé...

            O delegado logo percebeu que suas suspeitas tinham fundamento; pelo que consta, lobisomem não fala. Então, a estranha voz continuou:

            — Não atirem... por favor!

            O delegado aproximou-se e viu, caído ao chão, Tenório, empregado da mercearia do Tião, o qual já tinha visto pela cidade. Ele usava uma pele de animal sobre os ombros e estava com as mãos sobre o pé ensanguentado. Então, perguntou o delegado à maneira policial, uma espécie de pergunta e afirmação ao mesmo tempo:

 — Então é você o tal lobisomem...

            Tenório, sem saber se o delegado perguntava ou afirmava, foi logo confessando e contando tudo. Disse que se passava por lobisomem por motivos de vingança e que matava os animais para alimentar o pequeno filhote de lobo que levava consigo e que era quem fazia os uivos que tanto afugentavam os moradores.  Disse também, que, no momento em que se aproximava dos policiais, o filhote de lobo, que estava em seus braços, assustou-se com o grito do delegado e pulou para dentro do mato. Isto explica por que o vulto vinha de uma direção e o uivo de outra: estava solucionado o mistério.

            Agora, o trabalho do delegado era conseguir tirar cabo Zé Bento e soldado Manelão de dentro da barraca. Foi difícil, mas para quem tem uma pistola nas mãos as coisas se simplificam. E, ao primeiro disparo da arma, saíram os dois em desabalada carreira, escondendo-se atrás de uma grande pedra, que ficou conhecida como a "pedra do medo". Após prestarem os primeiros socorros ao preso, seguiram rumo à cidade.

            A chegada à cidade foi triunfante. O povo corria pelas ruas acompanhando os bravos policiais, porém não entendiam ainda por que Tenório estava algemado e onde estaria o tal lobisomem.

            O prefeito foi comunicado e, após as providências de praxe, logo toda a cidade já sabia das novidades. Quem diria... Tenório, o lobisomem!

            A cidade estava em festa. O prefeito havia decretado feriado e, em homenagem ao delegado, uma grande festa seria realizada. Mas antes da realização da festa, o delegado partiu rumo à Capital, pois havia recebido uma nova missão e tinha que se apresentar urgentemente ao Chefe de Polícia: ossos do ofício. O delegado não quis nem ficar para as homenagens, coisas de um homem livre e de bons costumes, que não espera, nem deseja retribuições, apenas a consciência tranquila do dever cumprido diante da lei, do esquadro e do compasso.

            À noite, durante a festa, a alegria era contagiante. Todos comemoravam e riam com as histórias do lobisomem, quando, lá pela meia-noite, um uivo estridente ecoou pela cidade vindo da serra. O silêncio foi geral: será que havia outro lobisomem? Que nada! Era apenas o pequeno lobo que havia feito sua morada na Serra do Lopo.

            Até hoje os moradores de Joanópolis dizem ouvir, de vez em quando, um uivo vindo do pico da serra. Será o lobisomem?

            Quem desejar descobrir é só visitar a cidade de Joanópolis em São Paulo – SP - Brasil.

 

 

Sobre o autor: Manoel Neto é escritor, professor e teólogo. É membro da Academia de Letras do Brasil, Seccional Distrito Federal - ALB-DF, cadeira nº 56)

 

(Revisão: Prof. Filemon) 

O CÃO DO EIXO

 Por Júlio Castelo Branco (Brasília, DF)

            Por não ter o que fazer, escreverei aqui algumas linhas sobre um cão estúpido que vez por outra observo. Não sei de onde veio, e para aonde vai depois que o esqueço. Pouco me importa isso. 

            Sou porteiro em um prédio situado diante da mais conhecida avenida de Brasília, o Eixo. Já me acostumei com o constante barulho dos veículos que trafegam intensamente todos os dias por ela. Aliás, por não ter outra opção de renda, nem inteligência que a encontre, só me restou mesmo acostumar-me. Porque boa parte da semana estou aqui, preso à guarita e à função, já guardo na lembrança alguns tristes acidentes que vi acontecer, não imediatamente, nessa avenida. A maioria quase sempre evitáveis, caso a pressa da máquina ou a inconsequência do pedestre não alterassem isso. Mas verdade seja dita, a própria inoperância pública, com passarelas distantes e por vezes impossíveis de se trafegar, também contribui bastantes para esses acidentes. No entanto, não é sobre isso que pretendo escrever, e mesmo já o disse no começo dessas linhas, mas sim sobre um cachorro abusado que notei dia desses.

            Sempre ao final da tarde, quando o sangue já não circula com a mesma fluidez, devido às intermináveis horas sentado diante do monitor, estico minhas pernas e passo o resto do expediente em pé dentro da guarita. Nesse ínterim, já ansioso pelo término do dia, fico a observar carros e pessoas que trafegam dentro e fora do Eixo. Todos os dias faço assim, como se um sentimento de culpa fosse desabar sem dúvida nenhuma sobre mim, caso eu não o fizesse. Contudo, num desses finais de tarde, iguais a tantos outros que já analisara da minha vespertina posição, me aparece um bicho que me deixou repentinamente assustado, pois como um transeunte irresponsável, fincava os pés (perdão! as patas) na ponta da calçada e já se preparava para atravessar o Eixo. O baque que senti, ao presenciar a cena, foi realmente grande, pois não acreditava que o animal conseguisse safar-se impunemente em meio a tantos veículos; mas pior ainda, não me apetecia de forma alguma vislumbrar tal coisa em tempo real.

            Preso à guarita e sem saber o que realmente deveria fazer, por alguns minutos hesitei em: ir até ele e espantá-lo para quem sabe tomasse outro rumo, ou, pegar o telefone e ligar para um desses órgãos que acolhem animais perdidos. Mas como pouco ou quase nada sou afeito a decisões repentinas, ainda mais sobre aquilo ou aquele que desconheço, não fiz nenhuma coisa nem outro. Era certo que aquele cachorro ia se dar mal! Portanto, um espanto meu – que provavelmente lhe traria com mais rapidez o fim, pois talvez se precipitasse para debaixo de um daqueles carros – ou mesmo a ligação pretendida – sendo que dificilmente os capturadores chegariam a tempo, pois é sabido a presteza dos nossos órgãos públicos – nada disso alteraria o seu malfadado destino. Logo, o que me pus a fazer foi esperar; esperar que a qualquer momento o animal estúpido fosse estraçalhado por alguma roda apressada e indiferente.

            O problema é que a espera pareceu cansar mais a mim do que a ele, acontecendo do bicho agachar-se tranquilo em suas patas, como se se desse conta da imediata impossibilidade daquilo, e aguardar a diminuição do fluxo de veículos. Com uma expressão vazia e distante, como não desse a mínima para a grande empreitada que ousava enfrentar, o cachorro vira-lata de um pêlo branco encardido e com os vestígios da necessidade no corpo, pois algumas costelas já se exibiam salientes, só vez por outra erguia a cabeça para avaliar a propícia ocasião. Permaneceu assim por uma porção significativa de tempo, até porque o finalzinho de tarde naquela pista – aliás, em qualquer pista urbana – pouca dava chance para o atrevimento pretendido. Do meu lado, já havia arrefecido o ânimo e a ideia de me deparar instantaneamente com o iminente fim do animal. Mas sabemos como ideias e ânimos são extremamente volúveis em certas ocasiões; portanto, mal eu procurei um outro tema visual que substituísse o cão, de súbito sou levado outra vez a ele, pois o vejo atirar-se bruscamente sobre a antes movimentada avenida.

            Impressionado com a presteza do bicho, notei que ele aproveitou a única possibilidade real que o trânsito lhe dera, sendo que só alguns poucos segundos depois – enquanto uma dupla de veículos moderados retinha os mais apressados – a celeuma maquinaria voltou novamente a passar. O interessante da capital do Brasil, como também é fácil perceber em algumas cidades desse nosso país imenso, é que em pleno meio urbano de quando em quando, bem diante de nós, somos presenteado por alguma árvore frondosa, e o que é melhor, frutífera, perdida por aí. Digo isso porque da posição onde estava, e ficava durante quase toda semana, eu fitava diariamente algumas enormes jaqueiras, oito para ser mais exato, que dividiam a avenida mais movimentada de Brasília. E mais uma vez o digo por que foi justamente para ficar sob uma dessas jaqueiras, que o endemoniado animal tanto perseverou na ação. Porém, ao término daquilo, quando o sol já enfraquecia e o cachorro se entregava a um tranquilo e quem sabe merecido descanso embaixo da árvore, achei-o esperto e mesmo o bicho mais interessante que já havia visto.

            Mas a verdade é que, pouco durou aquela admiração sentida pelo cão naquele finalzinho de tarde. Aliás, durou exatos vinte e quatro horas, pois no dia seguinte lá estava ele, indiferente e teimoso, tentando mais uma vez atravessar o Eixo. E o fato desse sentimento acolhedor, em relação ao bicho, se esvair assim, de mim, foi tão somente por não entender o porquê de aquele infeliz continuar com aquilo, sobretudo por saber – como ele também sabia – que outras tantas árvores existiam do lado de cá da avenida! “Mas não, era um cachorro estúpido!” pensei. Passou-se tudo da mesma maneira do dia anterior, ou seja: eu em pé na expectativa, ele deitado à espera, e, por fim, do outro lado, calmo e seguro. Mas diferentemente desses dois sentimentos, que imagino, envolviam o cão logo após a travessia, os meus, depois de mais aquele dia, seguiram caminhos totalmente oposto em relação a ele, sendo que mais furioso eu fiquei ao me deparar com o danado do bicho insistindo, agora diariamente, com aquilo.

            Passei a conjecturar ideias sobre a fixação do animal com aquele lugar, dizendo a mim mesmo, num desses absurdos que a falta do que fazer impõe, que talvez pretendesse ser enterrado ali. Mas essa minha tosca suposição não amenizava em nada o grande aborrecimento que ainda continuava sentido, chegando mesmo a desejar – ao vê-lo posicionar-se, perscrutando os veículos, e depois atirar-se para o outro lado do Eixo – que uma maldita roda acabasse de vez com ele. Claro que não era verídico tal desejo! Porém também não era mentira que mais cedo ou mais tarde tal realidade sem dúvida nenhuma iria acontecer. Esperava apenas que o fim do estúpido animal não ocorresse enquanto eu estivesse ali, trabalhando; mas como a maioria dos seres humanos, esperava não vê a desgraça com os olhos bem arregalados.

            Assim, os dias corriam, e o cão, sempre ao final da tarde, também continuou a correr para debaixo das jaqueiras. Indiferente ao perigo como ao resto do mundo, seguia sempre a mesma premissa: agachar, especular e...vuulpe, disparar para o outro lado da pista. Um dia, um simpático morador do prédio onde trabalho veio me perguntar, assustado, pois presenciou a peripécia do bicho de sua janela, se eu observara o cão que cortou desabalado o Eixo. Contei-lhe que sim, e contei-lhe também que há duas semanas, sempre naquele mesmo horário, era assaltado com sua presença audaciosa. Debatemos um pouco sobre a inteligência do animal que eu considerava estúpido, acontecendo desse simpático senhor – de conversa sempre agradável – indagar se não haveria algum jeito para que não ocorresse o pior com o infeliz. Como não encontrou solução, e eu, lerdo para resolver situações de animais pensantes ou não, também não a tivesse, deixamos de lado o assunto, até porque, no mundo veloz em que vivemos, não há tempo para pensarmos na ignorância dos outros... mesmo na de um estúpido cachorro.

            Dia desses, pois ele não havia aparecido, e até já não se arrisca com a mesma frequência, fui até as jaqueiras na tentativa de encontrar algo que dissesse um pouquinho que fosse sobre a obsessão do cachorro com aquele local. Nada encontrei, a não ser copas aconchegantes e porque não dizer belíssimas, que me acolheram exuberantes em meio a barafunda de veículos que seguiam em direções distintas, como também ensandecidos, para algum lugar.           

            “Animal esperto!” pensei.

 Sobre o autor: Júlio Castelo Branco ocupa a cadeira de nº 54, da Academia de Letras do Brasil, Seccional Distrito Federal - ALB/DF, Brasília, DF)

 

REFLEXÃO DE ANO NOVO

Por Gustavo Dourado (ATL, Taguatinga, DF)

 

Mais um ano se finda

Um novo ano que vem

Manter a cabeça erguida

Não fazer mal a ninguém

 

Perigo em cada esquina

Cuide dos seus e da rua

Fazer o bem é o caminho

A luta sempre continua...

 

Chega de ódio e mal

Melhorem a sociedade

Cultivem amor e alegria

Um basta à infelicidade

 

Ame a paz a natureza

Respeite o semelhante

O que deseja a outrem

A ti retornará adiante

 


CORDEL DO ANO NOVO

Por Gustavo Dourado (ATL, Taguatinga, DF)

Feliz 2021

 

Festival do Ano-Novo

Desde a antiguidade

Na velha Mesopotâmia

Foi grande festividade

Nos tempos de criança

Festejei tal novidade

 

2.000 a.C

Começou o Festival

Na antiga Babilônia

Foi festa primordial

Equinócio primaveril

A Lua Nova magistral

 

Festejava-se em março

Era festa de primeira

O povo aproveitava

Sacudia a pasmaceira

Saudava o Sol nascente

Depois da noite festeira

 

A 23 de setembro

Ano-Novo celebrado

Pérsia, Assíria, Fenícia

No Egito...Sol adorado

Na Grécia em dezembro

Era bem comemorado

 

Na Roma antiga o festejo

Em março era bem dado

Depois passou a janeiro

Por ser Jano cultuado

Há muito o Ano-Novo

Pelo povo é celebrado

 

Em 153 a.C:

O ano-novo romano

A festa consolidou-se

No calendário juliano

Dia 1º de janeiro

Calendário gregoriano

 

Em 25 de Março

Era o ano festejado

Chegava a primavera

No mundo do outro lado

Até primeiro de abril

Novo ano cultuado

 

Gregório XIII instituiu

O primeiro de Janeiro

Hoje é comemorado

No Ocidente inteiro

E até lá no Oriente

Já é ato costumeiro

 

Mudou-se o calendário

O povo festeja a mil

Resquício da tradição

O primeiro de abril

É o Dia da Mentira

Na Europa e no Brasil

 

Na noite de São Silvestre

O povo fica acordado

Para a virada do ano

É preciso estar ligado

Noite de dormir pouco

É costume consagrado

 

O Ano Novo chinês

É móvel no calendário

Em janeiro ou fevereiro

Li no Perpétuo Lunário

Lumes e pirotecnia

Fluem do vocabulário

 

A 19 de março

Do calendário atual

Ano-Novo esotérico

De cunho espiritual

Resgata-se a tradição

De um tempo imemorial

 

Hégira...Rosh Hashaná

Buda...Moisés...Maomé

Cristo Jesus em Belém

E o Menino de Nazaré

Harmonia para o mundo

Menos bomba, mais café

 

Pé de porco e lentilha

Gritar, correr e dançar

Bombom, bala e doce

Festejos a beira mar

Oferenda para o santo

Fogos explodem no ar

 

Para você tudo de bom

Saúde e Felicidade

Novo ano de harmonia

Luz.Solidariedade

Paz...Amor e Alegria

Sucesso...Fraternidade

 

Corte o mal pela raiz

Chega de insanidade

Viva-se a comunhão

Basta à barbaridade

É hora de ter união

Paz, amor e liberdade

 

Haja fogos, oferendas

E os gritos de alegria

Chega de guerra e terror

Fome, ódio, hipocrisia

Paz e amor para todos

Saúde e sabedoria

 

Belos fogos de artifício

Abraços e buzinada

Sonhos e esperança

Nossa alma renovada

Pelo fim da violência

Paz e amor na jornada

 

Deseje o bem a todos

Faça-se a renovação

Troque a roupa, lençóis

Alivie a sua tensão

Sorria e se ilumine

Faça uma boa ação

 

Seis, cinco, 4, 3, 2, um:

A contagem regressiva

Um adeus ao ano velho

Viva a vida progressiva

Sem guerra e atormento

Consciência reflexiva

 

Um Ano-Novo de luz

O novo sol vai brilhar

Que tudo se concretize

Possa tudo melhorar

Multiverse o dia a dia

O novo ano vai raiar

 

Depois das festividades

Volta-se à realidade

Pelejas do cotidiano

No campo e na cidade

Trabalhe com fantasia

Na busca da eternidade

 

Em tempo de pandemia

Vamos todos nos cuidar

Não transmitir o vírus

Sem ligar para o azar

Agir com consciência

Um novo ser despertar

 

Acordar para a verdade

A vil mentira evitar

Ser sábio e coerente

Saber conscientizar

Despertar cidadania

Conjugar o verbo amar

 

Novo ano que acorda

Vamos nos harmonizar

Cultivar a irmandade

Humanidade a cantar

Ser sol solidariedade

Os sonhos multiversar

 

Que o Ano-Novo ilumine

Com paz e felicidade

Que o mundo evolua

E floresça a liberdade

Que o Amor prevaleça

E haja mais boa vontade

 

Agora é pra valer

2021 logo vigora

A vida a nos guiar

Na poesia que aflora

Vamos todos navegar

Por multiversos afora

 

2020 dormiu

2021 acordou

Continuemos na luta

Novo sonho despertou

A musa renova o verso

E a poesia transmutou