Por Tiago Martins Koeler (Brasília, DF)
Ubaldo
era velho pescador das cercanias da Ilha do Governador. Caboclo calado,
introvertido, carranca fechada. O tempo, de fato, não fora generoso com ele; a
vida, a propósito, também não. Tez castigada pelos inumeráveis dias exposto a
causticante sol, enquanto suas mãos, cujos grossos calos, quais estigmas,
denunciavam as incontáveis ocasiões que aquele homem guarneceu a rede, horas
antes da alvorada, para garantir sustento dos seus. Temperamento rústico, o
velho pescador era daqueles que não se apropriava dos insultos recebidos.
Herdara o ofício do pai e, ao que parece, feitio similar. Raramente algum
desaforo ficava sem justa resposta, mormente quando se deparava com um ou outro
comerciante de conduta inescrupulosa, nas oportunidades que negociava o pescado
no mercado municipal.
Nascera
no berço da república. A propósito, conta-se, afeto ao seu nascimento, que sua
genitora, digna lavadeira, tivera gestação conturbada. Nesse período,
dedicara-se, com maior ardência, ao santo de sua devoção. Todas as noites,
terminados os afazeres, a gestante depositava singela vela em improvisado
castiçal de barro. Acendida a mecha, inclinava-se, genuflexa, diante da sacra
imagem e, entregue às súplicas sinceras, dentre outras, exortava:
¾ Ó, São Pedro! Santo da minha devoção... Valha-nos!
Conversa-nos a saúde; e, nascendo menino, teu nome será o nome do rebento meu.
E dona
Laurina permanecia com o rogo até que a última lágrima de cera escorresse e o
pavio, qual suspiro derradeiro, expirasse a última chama.
Porém, assim não sucedeu.
Em que pese a criança ter nascido
saudável e a parturiente ter ficado bem, o recém-nato recebera outro nome
quando levado à pia batismal.
José de Arimatéia, esposo de Dona
Laurina, pai do menino, em conduta monocrática, escolhera, insensível às
súplicas da companheira, outro nome para criança. Resoluto, em homenagem ao
fundador da colônia de pescadores, registrara o pequenino como Ubaldo. E assim,
o esperado Pedro, chamou-se Ubaldo.
Não obstante, São Pedro, por
ostensiva e ardente influência materna, sempre se fizera presente na vida
daquele pescador, desde a tenra idade, de maneira que Ubaldo tornara-se leal
devoto do pescador de Cafarnaum.
As homenagens que o filho de
Laurina consagrava a São Pedro, sobretudo aos vinte e nove de junho, eram
surpreendentes. Organizava singela, porém, ardorosa procissão em honra ao
santo, culminando, por fim, na distribuição, entre os menos favorecidos, do pescado
angariado naquele dia.
Todavia, como dantes relatado, a
vida fora longe de ser generosa com aquele velho pescador.
Por cerca de cinquenta desgastantes
anos, Ubaldo despertava antes mesmo do concerto galináceo. Entre as mãos,
tomava velha caneca de ágata, abastecida de pingado, consistindo, nisso, o seu
desjejum. Osculava Ana Emília, a adorável esposa, e Raquel e Júlia, as doces
filhinhas, todas, ainda, sob o jugo de Morfeu. Ausentava-se do casebre e, na
companhia dos demais pescadores, dirigia-se às barcas.
Pés descalços sobre a gélida areia
praiana, embainhava as pernas da calça pouco abaixo dos joelhos para que as
marolas da Guanabara , a banhar-lhe os pés, também não encharcasse a
vestimenta.
A lua, não raro, era solitária
companheira daqueles homens. Testemunha sem voz, o astro projetava reflexo
argentino nas águas mansas da baía que, suavemente, ondulavam ao sabor de
moderada brisa. E na companhia da silenciosa companheira, a colônia
apropriava-se de varas e tarrafas, carretilhas e molinetes, e, ao comandando do
esposo de Ana Emília, embarcava.
Alta madrugada, os pescadores
lançavam redes à Guanabara e punham-se a esperar. A barca cedia ao brando
ondear das águas, caturrando amenamente. Nessas circunstâncias, esforçavam-se
para não ceder aos apelos de Hipnos, que insistia em envolver-lhes entre suas
asas, ao passo que o murmúrio das águas assemelhava-se à sinfonia de sua
flauta, a conduzi-los, quase que irresistivelmente, ao sono necessário.
Por volta das oito da matina
estavam de regresso. Por vezes as águas eram generosas. Enchiam muitos cestos
com o pescado recolhido. Contudo, não raro, eles voltavam da labuta desprovidos
de um peixe sequer.
Naquelas ocasiões, Ubaldo divagava
em suas esperanças. Apesar do caminhar errante, rememorava, quase sempre, a
pesca milagrosa, quando o apóstolo Pedro, transcorrido o insucesso daquela
madrugada, recebera o amparo do Cristo. Desejava, como sucedeu a Pedro, ouvir o
doce verbo do Mestre Galileu a ordenar-lhe: “...desce as vossas redes...”.
Malgrado tão árdua luta, o
pescador, recolhido em seu temperamento, não se entregava aos lamentos,
guardando a fé que lhe preenchia a alma.
Findado o labor, regressava ao
ninho doméstico, sendo acolhido entre os braços e os abraços filiais.
E assim transcorreram-se os dias
por muito tempo. No entanto, uma tragédia silenciosa e repentina fora
anunciada.
Certa ocasião, quando desembaraçava
as redes para faina da madrugada vindoura, surpreendera-se com a presença da
caçula, que trêmula, requisitava urgentemente a presença do pai no templo
domiciliar. Ubaldo não hesitara. Abandonando as redes aos cuidados dos
companheiros de lida, debandou, aflito, em companhia da menina, rumo à singela
morada.
Célere, em breves minutos
atravessara o limiar da choupana. Adentrando imediatamente em apertado
aposento, vislumbrou a esposa querida deitada ao leito sob os cuidados da
primogênita que, diligente, depositava lenço úmido sobre a fronte da mãe, que
transpirava em abundância.
Lançando-se junto à cabeceira, o
esposo, instintivamente, conduziu a destra ao rosto da acamada, tocando-lhe
levemente às maçãs com o dorso da mão, constatando o estado febril.
Voltando os olhos para àquela que
acudia, indagou das circunstâncias que a levaram àquele estado. A jovenzinha
cientificou-o que a genitora acordara bem e de nada se queixara. Como de
rotina, imprimia esforços na execução dos serviços domésticos.
Há três semanas, entretanto, que
Ana Emília sustentava tosse incomum, acompanhada de dores no peito.
Providenciara-se a visita de algum
galeno. No princípio da tarde, o médico apresentou-se àquela residência.
Minutos a fio o profissional examinara minuciosamente a paciente, aportando em
determinada prognose:
- Tuberculose – afirmara o doutor.
- Quê!?... – Ubaldo rebatera,
atordoado.
Em um dos cantos do dormitório, as
jovenzinhas abraçavam-se aflitas.
- Sim. Tuberculose – tornara a
afirmar. Trata-se de prognóstico. Receio, porém, que ela seja diagnosticada
nesse sentido. Os sintomas nos conduzem a essa direção.
E depois de breve intervalo,
prosseguiu:
- Amanhã regressarei. Tratarei de
algumas providências e, caso o estado da paciente se agrave, a internarei no
sanatório. Necessário evitar contato. Apenas um dos três mantenha vigília.
A família estava estarrecida.
O esculápio ausentou-se.
Escoaram-se as horas. Finalmente a
noite estendera seu manto sobre o páramo, lançando o breu na atmosfera. As
estrelas ocultavam o brilho e a lua manifestava timidez singular.
Não obstante a inexistência de
apetite, a condição da consorte de Ubaldo manteve-se estável. Entre os familiares,
um misto de esperança e angústia estrangulava-lhes os corações. E embora a
estabilidade apresentada, o clima noturno não fora gentil com a paciente. No
princípio da madrugada, a tosse intensificara, enquanto o peito era tomado por
fortes dores. A febre não apartara. Ana Emília suava fartamente.
Na manhã seguinte, o estado de
saúde da paciente agravara-se consideravelmente. Não havia escolhas. A
internação era condição inalienável. A tísica a atingira substancialmente.
A enferma fora conduzida ao
sanatório localizado na região serrana do Estado. De imediato, recebera toda a
assistência necessária. Foram intensos os recursos aplicados, mas a paciente
não respondia às expectativas. Ao longo dos dias, a situação piorara sobremodo.
Ana Emília apresentava excessiva fraqueza. As terapêuticas adotadas não
alcançaram os efeitos esperados, de forma que ao término da terceira semana
asilada, a esposa do pescador não resistira, falecendo, afinal.
O
tempo, resoluto, qual rio a percorrer o leito, tomou o seu curso. O velho
pescador, apesar do escoar da ampulheta, jamais voltara a ser o mesmo.
Prosseguira labutando, naturalmente, mas raramente envergava um riso na face, e
quando sorria, não conseguia esconder a tonalidade melancólica que o desbotava.
Raquel e Júlia deram rumos aos
destinos. A primeira estabelecera residência no litoral paulista, após desposar
um Alferes. A segunda, posteriormente à desilusão amorosa, elegera o hábito,
devotando-se ao noviciado em um antigo convento carmelitano.
Passaram-se os anos. A alvura
impunha-se ao cabelo de Ubaldo, qual neve acumulada no pico de um monte.
E a despeito de nenhum
acontecimento merecer atenção pormenorizada, conta-se que, em uma madrugada de
límpido firmamento, o velho pescador, antecipando-se aos companheiros de luta,
tomara a barca e pôs-se a navegar. Os demais pescadores, em virtude da ausência
do viúvo, debandaram à baía. Certificando-se da subtração de uma das
embarcações, os colonos ainda puderam visualizar, ainda que distante, o gurupés
e diminutas cãs.
O fato é que, sucedido o episódio,
o ancião nunca mais fora visto, e inúmeros mitos foram construídos em torno do
ocorrido.
Alguns afirmaram que o velho
pescador, dirigindo-se ao alto-mar, depara-se com violenta tempestade, sem que
nada pudesse fazer; outros alegaram que provavelmente fora envolvido pelo
encanto do canto de Iara. Reduzida parcela asseverou que o senil, deparando-se
com São Pedro, rejeitara o regresso ao continente. Os demais, contudo, não
hesitavam em assertar que Ubaldo vira o próprio Cristo andar sobre as águas na
companhia de Ana Emília, tendo indo ao encontro de ambos.
Com efeito, nunca se chegou à conclusão do que teria acontecido. Sabe-se, todavia, que o velho pescador jamais fora esquecido. Ele deixara uma lacuna irreparável naquela colônia, não restando dúvidas que aquele homem, ante os mares encapelados que lhe agitaram a existência, era muito mais que um ordinário pescador, pois que ele sabia lançar as redes no vasto e imprevisível mar da vida, arrastando para si muitos corações amigos.
Sobre o autor: Tiago Martins Koeler, ocupa a cadeira nº 57, da Academia de Letras do Brasil, Seccional Distrito Federal - ALB/DF.
São Pedro... Foi no dia dele que se deu o início da compra da nossa casa. Gratidão sempre!
ResponderExcluirAdorei o conto, orgulho de vc!♥️
Muito obrigado! 💕
ExcluirADOREI SEU MODO DE ESCREVER. SUA ESCRITA ME FAZ DESEJAR CONTINUAR LENDO SEM INTERROMPER. ESPERO TAO LOGO,TER MAIS UM TEXTO PARA DESFRUTAR DA SUA BELA ESCRITA.PARABÉNS E SUCESSO.BJS!
ResponderExcluirQue bom que gostou. Fico muito honrado. Muito obrigado! 💕
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