sexta-feira, 1 de janeiro de 2021

O VELHO PESCADOR

Por Tiago Martins Koeler (Brasília, DF)

Ubaldo era velho pescador das cercanias da Ilha do Governador. Caboclo calado, introvertido, carranca fechada. O tempo, de fato, não fora generoso com ele; a vida, a propósito, também não. Tez castigada pelos inumeráveis dias exposto a causticante sol, enquanto suas mãos, cujos grossos calos, quais estigmas, denunciavam as incontáveis ocasiões que aquele homem guarneceu a rede, horas antes da alvorada, para garantir sustento dos seus. Temperamento rústico, o velho pescador era daqueles que não se apropriava dos insultos recebidos. Herdara o ofício do pai e, ao que parece, feitio similar. Raramente algum desaforo ficava sem justa resposta, mormente quando se deparava com um ou outro comerciante de conduta inescrupulosa, nas oportunidades que negociava o pescado no mercado municipal.

Nascera no berço da república. A propósito, conta-se, afeto ao seu nascimento, que sua genitora, digna lavadeira, tivera gestação conturbada. Nesse período, dedicara-se, com maior ardência, ao santo de sua devoção. Todas as noites, terminados os afazeres, a gestante depositava singela vela em improvisado castiçal de barro. Acendida a mecha, inclinava-se, genuflexa, diante da sacra imagem e, entregue às súplicas sinceras, dentre outras, exortava:

¾ Ó, São Pedro! Santo da minha devoção... Valha-nos! Conversa-nos a saúde; e, nascendo menino, teu nome será o nome do rebento meu.

E dona Laurina permanecia com o rogo até que a última lágrima de cera escorresse e o pavio, qual suspiro derradeiro, expirasse a última chama.

Porém, assim não sucedeu.

Em que pese a criança ter nascido saudável e a parturiente ter ficado bem, o recém-nato recebera outro nome quando levado à pia batismal.

José de Arimatéia, esposo de Dona Laurina, pai do menino, em conduta monocrática, escolhera, insensível às súplicas da companheira, outro nome para criança. Resoluto, em homenagem ao fundador da colônia de pescadores, registrara o pequenino como Ubaldo. E assim, o esperado Pedro, chamou-se Ubaldo.

Não obstante, São Pedro, por ostensiva e ardente influência materna, sempre se fizera presente na vida daquele pescador, desde a tenra idade, de maneira que Ubaldo tornara-se leal devoto do pescador de Cafarnaum.

As homenagens que o filho de Laurina consagrava a São Pedro, sobretudo aos vinte e nove de junho, eram surpreendentes. Organizava singela, porém, ardorosa procissão em honra ao santo, culminando, por fim, na distribuição, entre os menos favorecidos, do pescado angariado naquele dia.

Todavia, como dantes relatado, a vida fora longe de ser generosa com aquele velho pescador.

Por cerca de cinquenta desgastantes anos, Ubaldo despertava antes mesmo do concerto galináceo. Entre as mãos, tomava velha caneca de ágata, abastecida de pingado, consistindo, nisso, o seu desjejum. Osculava Ana Emília, a adorável esposa, e Raquel e Júlia, as doces filhinhas, todas, ainda, sob o jugo de Morfeu. Ausentava-se do casebre e, na companhia dos demais pescadores, dirigia-se às barcas.

Pés descalços sobre a gélida areia praiana, embainhava as pernas da calça pouco abaixo dos joelhos para que as marolas da Guanabara , a banhar-lhe os pés, também não encharcasse a vestimenta.

A lua, não raro, era solitária companheira daqueles homens. Testemunha sem voz, o astro projetava reflexo argentino nas águas mansas da baía que, suavemente, ondulavam ao sabor de moderada brisa. E na companhia da silenciosa companheira, a colônia apropriava-se de varas e tarrafas, carretilhas e molinetes, e, ao comandando do esposo de Ana Emília, embarcava.

Alta madrugada, os pescadores lançavam redes à Guanabara e punham-se a esperar. A barca cedia ao brando ondear das águas, caturrando amenamente. Nessas circunstâncias, esforçavam-se para não ceder aos apelos de Hipnos, que insistia em envolver-lhes entre suas asas, ao passo que o murmúrio das águas assemelhava-se à sinfonia de sua flauta, a conduzi-los, quase que irresistivelmente, ao sono necessário.

Por volta das oito da matina estavam de regresso. Por vezes as águas eram generosas. Enchiam muitos cestos com o pescado recolhido. Contudo, não raro, eles voltavam da labuta desprovidos de um peixe sequer.

Naquelas ocasiões, Ubaldo divagava em suas esperanças. Apesar do caminhar errante, rememorava, quase sempre, a pesca milagrosa, quando o apóstolo Pedro, transcorrido o insucesso daquela madrugada, recebera o amparo do Cristo. Desejava, como sucedeu a Pedro, ouvir o doce verbo do Mestre Galileu a ordenar-lhe: “...desce as vossas redes...”.

Malgrado tão árdua luta, o pescador, recolhido em seu temperamento, não se entregava aos lamentos, guardando a fé que lhe preenchia a alma.

Findado o labor, regressava ao ninho doméstico, sendo acolhido entre os braços e os abraços filiais.

E assim transcorreram-se os dias por muito tempo. No entanto, uma tragédia silenciosa e repentina fora anunciada.

Certa ocasião, quando desembaraçava as redes para faina da madrugada vindoura, surpreendera-se com a presença da caçula, que trêmula, requisitava urgentemente a presença do pai no templo domiciliar. Ubaldo não hesitara. Abandonando as redes aos cuidados dos companheiros de lida, debandou, aflito, em companhia da menina, rumo à singela morada.

Célere, em breves minutos atravessara o limiar da choupana. Adentrando imediatamente em apertado aposento, vislumbrou a esposa querida deitada ao leito sob os cuidados da primogênita que, diligente, depositava lenço úmido sobre a fronte da mãe, que transpirava em abundância.

Lançando-se junto à cabeceira, o esposo, instintivamente, conduziu a destra ao rosto da acamada, tocando-lhe levemente às maçãs com o dorso da mão, constatando o estado febril.

Voltando os olhos para àquela que acudia, indagou das circunstâncias que a levaram àquele estado. A jovenzinha cientificou-o que a genitora acordara bem e de nada se queixara. Como de rotina, imprimia esforços na execução dos serviços domésticos.

Há três semanas, entretanto, que Ana Emília sustentava tosse incomum, acompanhada de dores no peito.

Providenciara-se a visita de algum galeno. No princípio da tarde, o médico apresentou-se àquela residência. Minutos a fio o profissional examinara minuciosamente a paciente, aportando em determinada prognose:

- Tuberculose – afirmara o doutor.

- Quê!?... – Ubaldo rebatera, atordoado.

Em um dos cantos do dormitório, as jovenzinhas abraçavam-se aflitas.

- Sim. Tuberculose – tornara a afirmar. Trata-se de prognóstico. Receio, porém, que ela seja diagnosticada nesse sentido. Os sintomas nos conduzem a essa direção.

E depois de breve intervalo, prosseguiu:

- Amanhã regressarei. Tratarei de algumas providências e, caso o estado da paciente se agrave, a internarei no sanatório. Necessário evitar contato. Apenas um dos três mantenha vigília.

A família estava estarrecida.

O esculápio ausentou-se.

Escoaram-se as horas. Finalmente a noite estendera seu manto sobre o páramo, lançando o breu na atmosfera. As estrelas ocultavam o brilho e a lua manifestava timidez singular.

Não obstante a inexistência de apetite, a condição da consorte de Ubaldo manteve-se estável. Entre os familiares, um misto de esperança e angústia estrangulava-lhes os corações. E embora a estabilidade apresentada, o clima noturno não fora gentil com a paciente. No princípio da madrugada, a tosse intensificara, enquanto o peito era tomado por fortes dores. A febre não apartara. Ana Emília suava fartamente.

Na manhã seguinte, o estado de saúde da paciente agravara-se consideravelmente. Não havia escolhas. A internação era condição inalienável. A tísica a atingira substancialmente.

A enferma fora conduzida ao sanatório localizado na região serrana do Estado. De imediato, recebera toda a assistência necessária. Foram intensos os recursos aplicados, mas a paciente não respondia às expectativas. Ao longo dos dias, a situação piorara sobremodo. Ana Emília apresentava excessiva fraqueza. As terapêuticas adotadas não alcançaram os efeitos esperados, de forma que ao término da terceira semana asilada, a esposa do pescador não resistira, falecendo, afinal.

       O tempo, resoluto, qual rio a percorrer o leito, tomou o seu curso. O velho pescador, apesar do escoar da ampulheta, jamais voltara a ser o mesmo. Prosseguira labutando, naturalmente, mas raramente envergava um riso na face, e quando sorria, não conseguia esconder a tonalidade melancólica que o desbotava.

Raquel e Júlia deram rumos aos destinos. A primeira estabelecera residência no litoral paulista, após desposar um Alferes. A segunda, posteriormente à desilusão amorosa, elegera o hábito, devotando-se ao noviciado em um antigo convento carmelitano.

Passaram-se os anos. A alvura impunha-se ao cabelo de Ubaldo, qual neve acumulada no pico de um monte.

E a despeito de nenhum acontecimento merecer atenção pormenorizada, conta-se que, em uma madrugada de límpido firmamento, o velho pescador, antecipando-se aos companheiros de luta, tomara a barca e pôs-se a navegar. Os demais pescadores, em virtude da ausência do viúvo, debandaram à baía. Certificando-se da subtração de uma das embarcações, os colonos ainda puderam visualizar, ainda que distante, o gurupés e diminutas cãs.

O fato é que, sucedido o episódio, o ancião nunca mais fora visto, e inúmeros mitos foram construídos em torno do ocorrido.

Alguns afirmaram que o velho pescador, dirigindo-se ao alto-mar, depara-se com violenta tempestade, sem que nada pudesse fazer; outros alegaram que provavelmente fora envolvido pelo encanto do canto de Iara. Reduzida parcela asseverou que o senil, deparando-se com São Pedro, rejeitara o regresso ao continente. Os demais, contudo, não hesitavam em assertar que Ubaldo vira o próprio Cristo andar sobre as águas na companhia de Ana Emília, tendo indo ao encontro de ambos.

Com efeito, nunca se chegou à conclusão do que teria acontecido. Sabe-se, todavia, que o velho pescador jamais fora esquecido. Ele deixara uma lacuna irreparável naquela colônia, não restando dúvidas que aquele homem, ante os mares encapelados que lhe agitaram a existência, era muito mais que um ordinário pescador, pois que ele sabia lançar as redes no vasto e imprevisível mar da vida, arrastando para si muitos corações amigos.

Sobre o autor: Tiago Martins Koeler, ocupa a cadeira nº 57, da Academia de Letras do Brasil, Seccional Distrito Federal - ALB/DF.

4 comentários:

  1. São Pedro... Foi no dia dele que se deu o início da compra da nossa casa. Gratidão sempre!
    Adorei o conto, orgulho de vc!♥️

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  2. ADOREI SEU MODO DE ESCREVER. SUA ESCRITA ME FAZ DESEJAR CONTINUAR LENDO SEM INTERROMPER. ESPERO TAO LOGO,TER MAIS UM TEXTO PARA DESFRUTAR DA SUA BELA ESCRITA.PARABÉNS E SUCESSO.BJS!

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    1. Que bom que gostou. Fico muito honrado. Muito obrigado! 💕

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