sexta-feira, 1 de janeiro de 2021

O DELEGADO E O LOBISOMEM (UM CASO BRASILEIRO)

Por Manoel Neto   (Brasília, DF)          

            Era uma daquelas pacatas cidades do interior, onde o povo simples e humilde vivia sem a agitação da cidade grande. Aos domingos, missa na igreja; depois, o programa preferido e talvez o único: ficar na praça contando histórias. Foi nesse clima de interior, em que as pessoas ainda respeitavam as tradições e lendas, que se passou este caso: o encontro do delegado de polícia e o lobisomem.

            Idos de 1930: em Joanópolis — cidade que fica ao pé da Serra da Mantiqueira e cercada pelas altas montanhas da Serra do Lopo — ocorre um fato que deixa a pequena cidade em pânico. Vários animais mortos começaram a aparecer, misteriosamente, sem que ninguém soubesse a explicação. Alguns, mais curiosos, diziam ter visto um grande homem peludo com cabeça de lobo atacar as ovelhas e os cachorros do vilarejo.

            O clima de medo foi crescendo, e a polícia, apenas um velho cabo e um soldado, passou a investigar o caso. Zé Bento, como era conhecido o cabo, juntamente com seu assistente, o soldado Manelão, montaram guarda durante a noite nas ruas de Joanópolis para tentar identificar e prender o tal bicho. O cabo Zé Bento tinha fama de valentão e de ser cabra-macho; botava moral em qualquer um e mantinha a ordem no lugar, tanto que a última ocorrência registrada na cidade era um simples furto de um leitão, caso que o prefeito da cidade mandou abafar. Desde aqueles tempos, a polícia já sofria intervenções políticas.

            Certo dia, uma sexta-feira de lua cheia, os dois policiais, ao passarem por uma encruzilhada, lá pelas tantas horas da madrugada, ouviram um uivo estridente que vinha do mato.

            O cabo Zé Bento, tremendo até os ossos, ordenou ao soldado Manelão que fosse à frente verificar do que se tratava. Quando o soldado Manelão seguia em direção ao mato, um segundo uivo ainda mais alto e mais aterrorizador ecoou vindo da escuridão. Foi nesse momento que o soldado saiu em desabalada carreira rumo à delegacia, seguido pelo cabo Zé Bento, que gritava:

            — Volte aqui, seu insubordinado... Volte aqui!

            Logo que a notícia de que o tal lobisomem tinha colocado os dois policiais para correr se espalhou pela cidade, o prefeito, pressionado pelos moradores, teve que tomar uma decisão. Comunicou, então, o fato à Capital e pediu ajuda para resolver o problema.

            O presidente Washington Luís, temendo ser o início de uma rebelião e, com base na chamada Lei Celerada, datada de 1927, que permitia a repressão a atividades políticas e sindicais operárias, tratou de enviar um delegado de polícia para cuidar do assunto. O delegado era um jovem, reconhecido como sendo livre e de bons costumes, formado em Direito pela renomada Universidade do Largo do São Francisco.

            A essas alturas, os rumores e as histórias aumentavam a cada dia. Um senhor afirmou ter visto o tal lobisomem durante a noite em seu quintal; outra senhora relatou tê-lo visto enquanto voltava da igreja; e uma mulher que trabalhava em uma casa noturna afirmou ter visto bem o bicho enquanto ele tomava uma cervejinha e que, além de cabeludo, tinha as partes enormes, além de outras qualificações e apetrechos que não vale nem a pena contar.

            Na cidade não se falava em outra coisa, mas, além do lobisomem, outra novidade chegaria à pequena Joanópolis: o tal delegado de polícia. Alguns moradores chegavam a arriscar a descrever como seria esse tal delegado. Uns diziam ser um homem todo de branco como um ser encantado e com poderes mágicos; outros diziam usar uma estrela brilhante no peito, como os xerifes do Velho Oeste americano.

            No dia previsto para a chegada da tal autoridade, o prefeito ordenou que se fizesse uma festa para recepcionar o ilustre visitante. Aliás, Joanópolis é uma cidade que surgiu de uma festa realizada em meados de 1878; portanto as festas eram comuns, mas esta era especial. A banda de música da cidade foi convocada e o palanque foi montado, tudo isso para homenagear a chegada da autoridade policial, enviada especialmente pelo Presidente da República.

            Ao entardecer, na hora prevista, um automóvel aponta no horizonte de Joanópolis. Só podia ser o tal delegado, pois automóveis não eram comuns naquela região: apenas as charretes dividiam o espaço com as bicicletas. O carro aproximou-se, parando em frente ao palanque oficial; a multidão, alvoroçada, acenava com as bandeirinhas em suas mãos e gritava:

            — Viva o delegado! Viva!!!

            Foi quando a porta do carro se abriu e de lá saiu um homem de terno preto, camisa branca, gravata lisa e chapéu também na cor preta, que olhou com o semblante sério para multidão, sem um sorriso sequer em seu rosto. O silêncio foi geral; aquela figura toda de preto não era nem de longe parecida com aquilo que haviam imaginado. Logo o prefeito aproximou-se e deu as boas vindas à autoridade, que se limitou apenas a dizer:

            — Justo!

            E, perguntando onde ficava a delegacia de polícia e sem mais nada a dizer, entrou novamente no veículo, seguindo rumo às instalações policiais. O povo ficou estarrecido: era um sujeito de poucos sorrisos e de pouca prosa, talvez fossem os ossos do ofício, afinal, qualquer um poderia ser o lobisomem, até o prefeito.

            Na delegacia, cabo Zé Bento e o soldado Manelão davam duro para tirar a poeira do local, com vistas a recepcionar a autoridade policial, que, assim que chegou, foi logo dizendo:

            — Eu sou o Doutor Abdias Isaías dos Santos, delegado de polícia da Capital, e estou aqui a mando do Chefe de Polícia, sob as ordens do Presidente, Washington Luís.  Ao dizer isso, o delegado foi logo sentando-se em uma mesa, enquanto cabo Zé Bento e o soldado Manelão o observavam, encantados.

            O delegado retirou alguns objetos de sua mala; entre eles, uma máquina de datilografar e um Código Criminal da República, editado em 11 de outubro de 1890, em substituição ao antigo Código Criminal do Império. Em seguida chamou o cabo Zé Bento e, após qualificá-lo, disse-lhe:

            — Você está sob o compromisso de dizer a verdade. Ordeno que me conte tudo o que sabe sobre esse tal lobisomem, quem é ele e o que pretende. Enquanto o cabo ia respondendo as perguntas, o delegado ia, pacientemente, como é característico dos delegados, datilografando o seu depoimento e reduzindo tudo a termo. Ao final, determinou ao cabo Zé Bento que assinasse seu termo de declaração e que instaurasse procedimento policial para apurar os fatos. Talvez este seja o embrião do inquérito policial que foi inserido anos depois em nosso Código de Processo Penal, de 1941.

            Na mesma noite, a praça da cidade estava lotada. Todos estavam a fazer as suas apostas: o delegado ou o lobisomem? Quem venceria o duelo? Foi quando o carro do delegado apontou no fim da rua; era gente correndo pra tudo que é lado; dizem que até o aleijadinho, que ficava na praça, saiu que nem um foguete para dentro da mercearia do seu Tião. As janelas e portas fechavam-se, todos se trancavam, só os mais curiosos deixavam uma pequena fresta na janela para ver o que estava acontecendo.

            O delegado passou lentamente pela praça e se dirigiu ao local onde o tal lobisomem tinha feito sua última aparição. Após várias diligências e entrevistas, voltou à delegacia para confeccionar o seu primeiro relatório sobre o caso, o qual seria endereçado ao Chefe de Polícia, na Capital e cujo pequeno trecho foi assim descrito:

 

Excelentíssimo Sr. Chefe de Polícia.

Em cumprimento à missão que me foi incumbida  por V. Exa., passo a relatar as primeiras informações sobre o caso de Joanópolis. Assim que cheguei ao local, determinei a instauração de procedimento investigatório para apurar o ocorrido. Trata-se de um tal de lobisomem, que dizem morar na Serra do Lopo, cujo pico tem cerca de 1.730 metros de altitude. O tal bicho tem várias descrições, sendo a mais comum: sujeito peludo com cara de lobo. O "modus operandi" é sempre atacar em noites de lua cheia. (...) Até o momento não verifiquei focos de rebelião que venham a colocar em risco a Segurança Nacional (...)

 

            Após despachar o relatório, o delegado foi organizar as próximas diligências. No dia seguinte, à noite, as mulheres faziam novena, pedindo proteção contra o bicho. Lá fora, o delegado, juntamente com cabo Zé Bento e soldado Manelão, patrulhavam as ruas desertas em busca da tal aparição. De repente, o silêncio da noite foi quebrado por um uivo estridente e medonho, ouvido por toda cidade, que deixou os moradores em polvorosa. Já o delegado nem titubeou e foi logo gritando aos quatro cantos do local:

            — Apareça, coisa ruim! Deixa de ser covarde!

            A cada grito do delegado, cabo Zé Bento e soldado Manelão ficavam aterrorizados. E se o bicho atendesse ao chamado, como ficariam? O armamento dos dois resumia-se a um bacamarte e um velho revólver, já enferrujado e com apenas duas munições. Mas o que deixava cabo Zé Bento mais calmo era a arma que o delegado portava; isso sim é que era arma de polícia: uma pistola semiautomática cromada, armamento pesado para aquela região, quem sabe até municiada com projéteis de prata. Porém, a noite acabou e o tal lobisomem não apareceu. O delegado deu por encerradas as diligências, contudo não se deu por vencido.

            Diante do fracasso da diligência, o delegado, sabendo que no outro dia era noite de lua cheia, tratou de esquematizar uma campana, mas, desta vez, ao pé da Serra do Lopo, por onde se suspeitava que o tal bicho descia. Cabo Zé Bento e soldado Manelão, ao saberem dos planos do delegado, correram para entregar as patentes, dizendo que não iriam de jeito nenhum ao pé da serra, nem se tivessem que enfrentar um Tribunal Militar. O delegado, por sua vez, disse não aceitar tal desistência e que a baixa só seria concedida nos casos previstos em lei; e, após aplicar um belo sermão aos dois, fez com que eles colocassem a farda e o seguissem na terrível empreitada: o encontro com o lobisomem.

            Na cidade, o vigário reuniu os moradores para que, juntos, rezassem em favor dos bravos policiais, que estavam a arriscar suas vidas contra o mal, pela comunidade e pelo Brasil. Após horas de caminhada mata adentro, chega a noite e junto dela um nevoeiro que se forma ao pé da serra, fenômeno comum naquela região. Cabo Zé Bento e soldado Manelão tremiam como vara verde, não se sabe se de frio ou de medo. Mais à frente ia o delegado, destemido homem da lei, com seu terno preto e chapéu, não via a hora de se encontrar com o tal lobisomem. Por um momento, o delegado ouve sussurros e para de caminhar, sendo que, ao olhar para trás, vê cabo Zé Bento e soldado Manelão ajoelhados, rezando o terço; a cada oração, pediam para que o bicho desaparecesse. O delegado então gritou:

            — Tratem de se levantar, bando de cabra frouxo! Honrem o juramento que fizeram quando ingressaram na corporação policial.

            Após outro sermão (apesar de não ser padre, o delegado fazia excelentes sermões), a autoridade policial, já aborrecida com a falta de coragem de seus assistentes, seguiu ainda mais determinado a encontrar o tal lobisomem e acabar de vez com aquela situação. Almejava voltar o mais rápido para a Capital, pois a situação do país era instável e corriam boatos de que o presidente Washington Luís estava para sofrer um golpe.

            A diligência prosseguiu e, já de madrugada, acampados ao pé da serra, ficaram à espreita, esperando o lobisomem. Foi quando, de repente, o já costumeiro uivo ecoou no meio do nevoeiro. Porém, desta vez, deu pra ver aquele vulto enorme se movendo em direção aos policiais. Era ele, o tal bicho! Cabo Zé Bento e soldado Manelão tentaram correr, mas lhes faltaram as pernas. O delegado, logo de pronto, sacou de sua arma e fez a visada, aguardando o momento certo para disparar. Homem corajoso, não tremia um milímetro sequer e, com seu aguçado tirocínio policial, percebeu que havia algo de estranho naquela aparição. O vulto vinha de uma direção, mas o uivo de outra; por um momento, pensou tratar-se de dois lobisomens, mas logo o mistério seria desvendado.

            O vulto aproximava-se e cabo Zé Bento e soldado Manelão trataram logo de se fechar na barraca, tamanho era o pavor que sentiam. O delegado viu que estava sozinho: era ele e o lobisomem. Finalmente iriam estar frente a frente. Os uivos aumentavam e o vulto continuava a se aproximar. Foi quando o delegado gritou a clássica frase:

            — Pare... em nome da lei! É a polícia!

            Depois do grito, o delegado ainda teve tempo de pensar: será que lobisomem sabe o que é polícia? Pelo sim e pelo não, tratou logo de disparar um tiro certeiro que atingiu o pé do lobisomem. De repente, uma voz corta todo o clima:

            — Ai... meu pé...

            O delegado logo percebeu que suas suspeitas tinham fundamento; pelo que consta, lobisomem não fala. Então, a estranha voz continuou:

            — Não atirem... por favor!

            O delegado aproximou-se e viu, caído ao chão, Tenório, empregado da mercearia do Tião, o qual já tinha visto pela cidade. Ele usava uma pele de animal sobre os ombros e estava com as mãos sobre o pé ensanguentado. Então, perguntou o delegado à maneira policial, uma espécie de pergunta e afirmação ao mesmo tempo:

 — Então é você o tal lobisomem...

            Tenório, sem saber se o delegado perguntava ou afirmava, foi logo confessando e contando tudo. Disse que se passava por lobisomem por motivos de vingança e que matava os animais para alimentar o pequeno filhote de lobo que levava consigo e que era quem fazia os uivos que tanto afugentavam os moradores.  Disse também, que, no momento em que se aproximava dos policiais, o filhote de lobo, que estava em seus braços, assustou-se com o grito do delegado e pulou para dentro do mato. Isto explica por que o vulto vinha de uma direção e o uivo de outra: estava solucionado o mistério.

            Agora, o trabalho do delegado era conseguir tirar cabo Zé Bento e soldado Manelão de dentro da barraca. Foi difícil, mas para quem tem uma pistola nas mãos as coisas se simplificam. E, ao primeiro disparo da arma, saíram os dois em desabalada carreira, escondendo-se atrás de uma grande pedra, que ficou conhecida como a "pedra do medo". Após prestarem os primeiros socorros ao preso, seguiram rumo à cidade.

            A chegada à cidade foi triunfante. O povo corria pelas ruas acompanhando os bravos policiais, porém não entendiam ainda por que Tenório estava algemado e onde estaria o tal lobisomem.

            O prefeito foi comunicado e, após as providências de praxe, logo toda a cidade já sabia das novidades. Quem diria... Tenório, o lobisomem!

            A cidade estava em festa. O prefeito havia decretado feriado e, em homenagem ao delegado, uma grande festa seria realizada. Mas antes da realização da festa, o delegado partiu rumo à Capital, pois havia recebido uma nova missão e tinha que se apresentar urgentemente ao Chefe de Polícia: ossos do ofício. O delegado não quis nem ficar para as homenagens, coisas de um homem livre e de bons costumes, que não espera, nem deseja retribuições, apenas a consciência tranquila do dever cumprido diante da lei, do esquadro e do compasso.

            À noite, durante a festa, a alegria era contagiante. Todos comemoravam e riam com as histórias do lobisomem, quando, lá pela meia-noite, um uivo estridente ecoou pela cidade vindo da serra. O silêncio foi geral: será que havia outro lobisomem? Que nada! Era apenas o pequeno lobo que havia feito sua morada na Serra do Lopo.

            Até hoje os moradores de Joanópolis dizem ouvir, de vez em quando, um uivo vindo do pico da serra. Será o lobisomem?

            Quem desejar descobrir é só visitar a cidade de Joanópolis em São Paulo – SP - Brasil.

 

 

Sobre o autor: Manoel Neto é escritor, professor e teólogo. É membro da Academia de Letras do Brasil, Seccional Distrito Federal - ALB-DF, cadeira nº 56)

 

(Revisão: Prof. Filemon) 

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