Por Manoel Neto (Brasília, DF)
Era
uma daquelas pacatas cidades do interior, onde o povo simples e humilde vivia
sem a agitação da cidade grande. Aos domingos, missa na igreja; depois, o
programa preferido e talvez o único: ficar na praça contando histórias. Foi
nesse clima de interior, em que as pessoas ainda respeitavam as tradições e
lendas, que se passou este caso: o encontro do delegado de polícia e o
lobisomem.
Idos
de 1930: em Joanópolis — cidade que fica ao pé da Serra da Mantiqueira e
cercada pelas altas montanhas da Serra do Lopo — ocorre um fato que deixa a
pequena cidade em pânico. Vários animais mortos começaram a aparecer,
misteriosamente, sem que ninguém soubesse a explicação. Alguns, mais curiosos,
diziam ter visto um grande homem peludo com cabeça de lobo atacar as ovelhas e
os cachorros do vilarejo.
O
clima de medo foi crescendo, e a polícia, apenas um velho cabo e um soldado,
passou a investigar o caso. Zé Bento, como era conhecido o cabo, juntamente com
seu assistente, o soldado Manelão, montaram guarda durante a noite nas ruas de
Joanópolis para tentar identificar e prender o tal bicho. O cabo Zé Bento tinha
fama de valentão e de ser cabra-macho; botava moral em qualquer um e mantinha a
ordem no lugar, tanto que a última ocorrência registrada na cidade era um
simples furto de um leitão, caso que o prefeito da cidade mandou abafar. Desde
aqueles tempos, a polícia já sofria intervenções políticas.
Certo
dia, uma sexta-feira de lua cheia, os dois policiais, ao passarem por uma
encruzilhada, lá pelas tantas horas da madrugada, ouviram um uivo estridente
que vinha do mato.
O
cabo Zé Bento, tremendo até os ossos, ordenou ao soldado Manelão que fosse à
frente verificar do que se tratava. Quando o soldado Manelão seguia em direção
ao mato, um segundo uivo ainda mais alto e mais aterrorizador ecoou vindo da
escuridão. Foi nesse momento que o soldado saiu em desabalada carreira rumo à
delegacia, seguido pelo cabo Zé Bento, que gritava:
—
Volte aqui, seu insubordinado... Volte aqui!
Logo
que a notícia de que o tal lobisomem tinha colocado os dois policiais para
correr se espalhou pela cidade, o prefeito, pressionado pelos moradores, teve
que tomar uma decisão. Comunicou, então, o fato à Capital e pediu ajuda para
resolver o problema.
O
presidente Washington Luís, temendo ser o início de uma rebelião e, com base na
chamada Lei Celerada, datada de 1927, que permitia a repressão a atividades
políticas e sindicais operárias, tratou de enviar um delegado de polícia para
cuidar do assunto. O delegado era um jovem, reconhecido como sendo livre e de
bons costumes, formado em Direito pela renomada Universidade do Largo do São
Francisco.
A essas alturas, os rumores e as
histórias aumentavam a cada dia. Um senhor afirmou ter visto o tal lobisomem
durante a noite em seu quintal; outra senhora relatou tê-lo visto enquanto
voltava da igreja; e uma mulher que trabalhava em uma casa noturna afirmou ter
visto bem o bicho enquanto ele tomava uma cervejinha e que, além de cabeludo,
tinha as partes enormes, além de outras qualificações e apetrechos que não vale
nem a pena contar.
Na
cidade não se falava em outra coisa, mas, além do lobisomem, outra novidade chegaria
à pequena Joanópolis: o tal delegado de polícia. Alguns moradores chegavam a
arriscar a descrever como seria esse tal delegado. Uns diziam ser um homem todo
de branco como um ser encantado e com poderes mágicos; outros diziam usar uma
estrela brilhante no peito, como os xerifes do Velho Oeste americano.
No
dia previsto para a chegada da tal autoridade, o prefeito ordenou que se
fizesse uma festa para recepcionar o ilustre visitante. Aliás, Joanópolis é uma
cidade que surgiu de uma festa realizada em meados de 1878; portanto as festas
eram comuns, mas esta era especial. A banda de música da cidade foi convocada e
o palanque foi montado, tudo isso para homenagear a chegada da autoridade
policial, enviada especialmente pelo Presidente da República.
Ao
entardecer, na hora prevista, um automóvel aponta no horizonte de Joanópolis.
Só podia ser o tal delegado, pois automóveis não eram comuns naquela região:
apenas as charretes dividiam o espaço com as bicicletas. O carro aproximou-se,
parando em frente ao palanque oficial; a multidão, alvoroçada, acenava com as
bandeirinhas em suas mãos e gritava:
—
Viva o delegado! Viva!!!
Foi
quando a porta do carro se abriu e de lá saiu um homem de terno preto, camisa
branca, gravata lisa e chapéu também na cor preta, que olhou com o semblante
sério para multidão, sem um sorriso sequer em seu rosto. O silêncio foi geral;
aquela figura toda de preto não era nem de longe parecida com aquilo que haviam
imaginado. Logo o prefeito aproximou-se e deu as boas vindas à autoridade, que
se limitou apenas a dizer:
—
Justo!
E,
perguntando onde ficava a delegacia de polícia e sem mais nada a dizer, entrou
novamente no veículo, seguindo rumo às instalações policiais. O povo ficou
estarrecido: era um sujeito de poucos sorrisos e de pouca prosa, talvez fossem
os ossos do ofício, afinal, qualquer um poderia ser o lobisomem, até o
prefeito.
Na
delegacia, cabo Zé Bento e o soldado Manelão davam duro para tirar a poeira do
local, com vistas a recepcionar a autoridade policial, que, assim que chegou,
foi logo dizendo:
—
Eu sou o Doutor Abdias Isaías dos Santos, delegado de polícia da Capital, e
estou aqui a mando do Chefe de Polícia, sob as ordens do Presidente, Washington
Luís. Ao dizer isso, o delegado foi logo
sentando-se em uma mesa, enquanto cabo Zé Bento e o soldado Manelão o
observavam, encantados.
O
delegado retirou alguns objetos de sua mala; entre eles, uma máquina de
datilografar e um Código Criminal da República, editado em 11 de outubro de
1890, em substituição ao antigo Código Criminal do Império. Em seguida chamou o
cabo Zé Bento e, após qualificá-lo, disse-lhe:
—
Você está sob o compromisso de dizer a verdade. Ordeno que me conte tudo o que
sabe sobre esse tal lobisomem, quem é ele e o que pretende. Enquanto o cabo ia
respondendo as perguntas, o delegado ia, pacientemente, como é característico
dos delegados, datilografando o seu depoimento e reduzindo tudo a termo. Ao
final, determinou ao cabo Zé Bento que assinasse seu termo de declaração e que
instaurasse procedimento policial para apurar os fatos. Talvez este seja o
embrião do inquérito policial que foi inserido anos depois em nosso Código de
Processo Penal, de 1941.
Na
mesma noite, a praça da cidade estava lotada. Todos estavam a fazer as suas
apostas: o delegado ou o lobisomem? Quem venceria o duelo? Foi quando o carro
do delegado apontou no fim da rua; era gente correndo pra tudo que é lado;
dizem que até o aleijadinho, que ficava na praça, saiu que nem um foguete para
dentro da mercearia do seu Tião. As janelas e portas fechavam-se, todos se
trancavam, só os mais curiosos deixavam uma pequena fresta na janela para ver o
que estava acontecendo.
O
delegado passou lentamente pela praça e se dirigiu ao local onde o tal lobisomem
tinha feito sua última aparição. Após várias diligências e entrevistas, voltou à
delegacia para confeccionar o seu primeiro relatório sobre o caso, o qual seria
endereçado ao Chefe de Polícia, na Capital e cujo pequeno trecho foi assim
descrito:
Excelentíssimo Sr.
Chefe de Polícia.
Em cumprimento à missão
que me foi incumbida por V. Exa., passo
a relatar as primeiras informações sobre o caso de Joanópolis. Assim que
cheguei ao local, determinei a instauração de procedimento investigatório para
apurar o ocorrido. Trata-se de um tal de lobisomem, que dizem morar na Serra do
Lopo, cujo pico tem cerca de 1.730 metros de altitude. O tal bicho tem várias
descrições, sendo a mais comum: sujeito peludo com cara de lobo. O "modus
operandi" é sempre atacar em noites de lua cheia. (...) Até o momento não
verifiquei focos de rebelião que venham a colocar em risco a Segurança Nacional
(...)
Após
despachar o relatório, o delegado foi organizar as próximas diligências. No dia
seguinte, à noite, as mulheres faziam novena, pedindo proteção contra o bicho.
Lá fora, o delegado, juntamente com cabo Zé Bento e soldado Manelão,
patrulhavam as ruas desertas em busca da tal aparição. De repente, o silêncio
da noite foi quebrado por um uivo estridente e medonho, ouvido por toda cidade,
que deixou os moradores em polvorosa. Já o delegado nem titubeou e foi logo
gritando aos quatro cantos do local:
—
Apareça, coisa ruim! Deixa de ser covarde!
A
cada grito do delegado, cabo Zé Bento e soldado Manelão ficavam aterrorizados.
E se o bicho atendesse ao chamado, como ficariam? O armamento dos dois
resumia-se a um bacamarte e um velho revólver, já enferrujado e com apenas duas
munições. Mas o que deixava cabo Zé Bento mais calmo era a arma que o delegado
portava; isso sim é que era arma de polícia: uma pistola semiautomática
cromada, armamento pesado para aquela região, quem sabe até municiada com
projéteis de prata. Porém, a noite acabou e o tal lobisomem não apareceu. O
delegado deu por encerradas as diligências, contudo não se deu por vencido.
Diante
do fracasso da diligência, o delegado, sabendo que no outro dia era noite de
lua cheia, tratou de esquematizar uma campana, mas, desta vez, ao pé da Serra
do Lopo, por onde se suspeitava que o tal bicho descia. Cabo Zé Bento e soldado
Manelão, ao saberem dos planos do delegado, correram para entregar as patentes,
dizendo que não iriam de jeito nenhum ao pé da serra, nem se tivessem que
enfrentar um Tribunal Militar. O delegado, por sua vez, disse não aceitar tal
desistência e que a baixa só seria concedida nos casos previstos em lei; e,
após aplicar um belo sermão aos dois, fez com que eles colocassem a farda e o
seguissem na terrível empreitada: o encontro com o lobisomem.
Na
cidade, o vigário reuniu os moradores para que, juntos, rezassem em favor dos
bravos policiais, que estavam a arriscar suas vidas contra o mal, pela
comunidade e pelo Brasil. Após horas de caminhada mata adentro, chega a noite e
junto dela um nevoeiro que se forma ao pé da serra, fenômeno comum naquela
região. Cabo Zé Bento e soldado Manelão tremiam como vara verde, não se sabe se
de frio ou de medo. Mais à frente ia o delegado, destemido homem da lei, com
seu terno preto e chapéu, não via a hora de se encontrar com o tal lobisomem.
Por um momento, o delegado ouve sussurros e para de caminhar, sendo que, ao
olhar para trás, vê cabo Zé Bento e soldado Manelão ajoelhados, rezando o
terço; a cada oração, pediam para que o bicho desaparecesse. O delegado então
gritou:
—
Tratem de se levantar, bando de cabra frouxo! Honrem o juramento que fizeram
quando ingressaram na corporação policial.
Após
outro sermão (apesar de não ser padre, o delegado fazia excelentes sermões), a
autoridade policial, já aborrecida com a falta de coragem de seus assistentes,
seguiu ainda mais determinado a encontrar o tal lobisomem e acabar de vez com
aquela situação. Almejava voltar o mais rápido para a Capital, pois a situação
do país era instável e corriam boatos de que o presidente Washington Luís
estava para sofrer um golpe.
A
diligência prosseguiu e, já de madrugada, acampados ao pé da serra, ficaram à
espreita, esperando o lobisomem. Foi quando, de repente, o já costumeiro uivo
ecoou no meio do nevoeiro. Porém, desta vez, deu pra ver aquele vulto enorme se
movendo em direção aos policiais. Era ele, o tal bicho! Cabo Zé Bento e soldado
Manelão tentaram correr, mas lhes faltaram as pernas. O delegado, logo de
pronto, sacou de sua arma e fez a visada, aguardando o momento certo para
disparar. Homem corajoso, não tremia um milímetro sequer e, com seu aguçado
tirocínio policial, percebeu que havia algo de estranho naquela aparição. O
vulto vinha de uma direção, mas o uivo de outra; por um momento, pensou
tratar-se de dois lobisomens, mas logo o mistério seria desvendado.
O
vulto aproximava-se e cabo Zé Bento e soldado Manelão trataram logo de se
fechar na barraca, tamanho era o pavor que sentiam. O delegado viu que estava
sozinho: era ele e o lobisomem. Finalmente iriam estar frente a frente. Os
uivos aumentavam e o vulto continuava a se aproximar. Foi quando o delegado
gritou a clássica frase:
—
Pare... em nome da lei! É a polícia!
Depois
do grito, o delegado ainda teve tempo de pensar: será que lobisomem sabe o que
é polícia? Pelo sim e pelo não, tratou logo de disparar um tiro certeiro que
atingiu o pé do lobisomem. De repente, uma voz corta todo o clima:
—
Ai... meu pé...
O
delegado logo percebeu que suas suspeitas tinham fundamento; pelo que consta,
lobisomem não fala. Então, a estranha voz continuou:
—
Não atirem... por favor!
O
delegado aproximou-se e viu, caído ao chão, Tenório, empregado da mercearia do
Tião, o qual já tinha visto pela cidade. Ele usava uma pele de animal sobre os
ombros e estava com as mãos sobre o pé ensanguentado. Então, perguntou o
delegado à maneira policial, uma espécie de pergunta e afirmação ao mesmo
tempo:
—
Então é você o tal lobisomem...
Tenório, sem saber se o delegado
perguntava ou afirmava, foi logo confessando e contando tudo. Disse que se
passava por lobisomem por motivos de vingança e que matava os animais para
alimentar o pequeno filhote de lobo que levava consigo e que era quem fazia os
uivos que tanto afugentavam os moradores.
Disse também, que, no momento em que se aproximava dos policiais, o
filhote de lobo, que estava em seus braços, assustou-se com o grito do delegado
e pulou para dentro do mato. Isto explica por que o vulto vinha de uma direção
e o uivo de outra: estava solucionado o mistério.
Agora,
o trabalho do delegado era conseguir tirar cabo Zé Bento e soldado Manelão de
dentro da barraca. Foi difícil, mas para quem tem uma pistola nas mãos as
coisas se simplificam. E, ao primeiro disparo da arma, saíram os dois em
desabalada carreira, escondendo-se atrás de uma grande pedra, que ficou
conhecida como a "pedra do medo". Após prestarem os primeiros
socorros ao preso, seguiram rumo à cidade.
A
chegada à cidade foi triunfante. O povo corria pelas ruas acompanhando os
bravos policiais, porém não entendiam ainda por que Tenório estava algemado e
onde estaria o tal lobisomem.
O prefeito foi comunicado e, após as
providências de praxe, logo toda a cidade já sabia das novidades. Quem diria...
Tenório, o lobisomem!
A
cidade estava em festa. O prefeito havia decretado feriado e, em homenagem ao
delegado, uma grande festa seria realizada. Mas antes da realização da festa, o
delegado partiu rumo à Capital, pois havia recebido uma nova missão e tinha que
se apresentar urgentemente ao Chefe de Polícia: ossos do ofício. O delegado não
quis nem ficar para as homenagens, coisas de um homem livre e de bons costumes,
que não espera, nem deseja retribuições, apenas a consciência tranquila do
dever cumprido diante da lei, do esquadro e do compasso.
À
noite, durante a festa, a alegria era contagiante. Todos comemoravam e riam com
as histórias do lobisomem, quando, lá pela meia-noite, um uivo estridente ecoou
pela cidade vindo da serra. O silêncio foi geral: será que havia outro
lobisomem? Que nada! Era apenas o pequeno lobo que havia feito sua morada na
Serra do Lopo.
Até
hoje os moradores de Joanópolis dizem ouvir, de vez em quando, um uivo vindo do
pico da serra. Será o lobisomem?
Quem
desejar descobrir é só visitar a cidade de Joanópolis em São Paulo – SP -
Brasil.
Sobre o autor: Manoel Neto é escritor, professor e teólogo. É membro da Academia de Letras do Brasil, Seccional Distrito Federal - ALB-DF, cadeira nº 56)
(Revisão: Prof. Filemon)
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