sexta-feira, 1 de janeiro de 2021

O CÃO DO EIXO

 Por Júlio Castelo Branco (Brasília, DF)

            Por não ter o que fazer, escreverei aqui algumas linhas sobre um cão estúpido que vez por outra observo. Não sei de onde veio, e para aonde vai depois que o esqueço. Pouco me importa isso. 

            Sou porteiro em um prédio situado diante da mais conhecida avenida de Brasília, o Eixo. Já me acostumei com o constante barulho dos veículos que trafegam intensamente todos os dias por ela. Aliás, por não ter outra opção de renda, nem inteligência que a encontre, só me restou mesmo acostumar-me. Porque boa parte da semana estou aqui, preso à guarita e à função, já guardo na lembrança alguns tristes acidentes que vi acontecer, não imediatamente, nessa avenida. A maioria quase sempre evitáveis, caso a pressa da máquina ou a inconsequência do pedestre não alterassem isso. Mas verdade seja dita, a própria inoperância pública, com passarelas distantes e por vezes impossíveis de se trafegar, também contribui bastantes para esses acidentes. No entanto, não é sobre isso que pretendo escrever, e mesmo já o disse no começo dessas linhas, mas sim sobre um cachorro abusado que notei dia desses.

            Sempre ao final da tarde, quando o sangue já não circula com a mesma fluidez, devido às intermináveis horas sentado diante do monitor, estico minhas pernas e passo o resto do expediente em pé dentro da guarita. Nesse ínterim, já ansioso pelo término do dia, fico a observar carros e pessoas que trafegam dentro e fora do Eixo. Todos os dias faço assim, como se um sentimento de culpa fosse desabar sem dúvida nenhuma sobre mim, caso eu não o fizesse. Contudo, num desses finais de tarde, iguais a tantos outros que já analisara da minha vespertina posição, me aparece um bicho que me deixou repentinamente assustado, pois como um transeunte irresponsável, fincava os pés (perdão! as patas) na ponta da calçada e já se preparava para atravessar o Eixo. O baque que senti, ao presenciar a cena, foi realmente grande, pois não acreditava que o animal conseguisse safar-se impunemente em meio a tantos veículos; mas pior ainda, não me apetecia de forma alguma vislumbrar tal coisa em tempo real.

            Preso à guarita e sem saber o que realmente deveria fazer, por alguns minutos hesitei em: ir até ele e espantá-lo para quem sabe tomasse outro rumo, ou, pegar o telefone e ligar para um desses órgãos que acolhem animais perdidos. Mas como pouco ou quase nada sou afeito a decisões repentinas, ainda mais sobre aquilo ou aquele que desconheço, não fiz nenhuma coisa nem outro. Era certo que aquele cachorro ia se dar mal! Portanto, um espanto meu – que provavelmente lhe traria com mais rapidez o fim, pois talvez se precipitasse para debaixo de um daqueles carros – ou mesmo a ligação pretendida – sendo que dificilmente os capturadores chegariam a tempo, pois é sabido a presteza dos nossos órgãos públicos – nada disso alteraria o seu malfadado destino. Logo, o que me pus a fazer foi esperar; esperar que a qualquer momento o animal estúpido fosse estraçalhado por alguma roda apressada e indiferente.

            O problema é que a espera pareceu cansar mais a mim do que a ele, acontecendo do bicho agachar-se tranquilo em suas patas, como se se desse conta da imediata impossibilidade daquilo, e aguardar a diminuição do fluxo de veículos. Com uma expressão vazia e distante, como não desse a mínima para a grande empreitada que ousava enfrentar, o cachorro vira-lata de um pêlo branco encardido e com os vestígios da necessidade no corpo, pois algumas costelas já se exibiam salientes, só vez por outra erguia a cabeça para avaliar a propícia ocasião. Permaneceu assim por uma porção significativa de tempo, até porque o finalzinho de tarde naquela pista – aliás, em qualquer pista urbana – pouca dava chance para o atrevimento pretendido. Do meu lado, já havia arrefecido o ânimo e a ideia de me deparar instantaneamente com o iminente fim do animal. Mas sabemos como ideias e ânimos são extremamente volúveis em certas ocasiões; portanto, mal eu procurei um outro tema visual que substituísse o cão, de súbito sou levado outra vez a ele, pois o vejo atirar-se bruscamente sobre a antes movimentada avenida.

            Impressionado com a presteza do bicho, notei que ele aproveitou a única possibilidade real que o trânsito lhe dera, sendo que só alguns poucos segundos depois – enquanto uma dupla de veículos moderados retinha os mais apressados – a celeuma maquinaria voltou novamente a passar. O interessante da capital do Brasil, como também é fácil perceber em algumas cidades desse nosso país imenso, é que em pleno meio urbano de quando em quando, bem diante de nós, somos presenteado por alguma árvore frondosa, e o que é melhor, frutífera, perdida por aí. Digo isso porque da posição onde estava, e ficava durante quase toda semana, eu fitava diariamente algumas enormes jaqueiras, oito para ser mais exato, que dividiam a avenida mais movimentada de Brasília. E mais uma vez o digo por que foi justamente para ficar sob uma dessas jaqueiras, que o endemoniado animal tanto perseverou na ação. Porém, ao término daquilo, quando o sol já enfraquecia e o cachorro se entregava a um tranquilo e quem sabe merecido descanso embaixo da árvore, achei-o esperto e mesmo o bicho mais interessante que já havia visto.

            Mas a verdade é que, pouco durou aquela admiração sentida pelo cão naquele finalzinho de tarde. Aliás, durou exatos vinte e quatro horas, pois no dia seguinte lá estava ele, indiferente e teimoso, tentando mais uma vez atravessar o Eixo. E o fato desse sentimento acolhedor, em relação ao bicho, se esvair assim, de mim, foi tão somente por não entender o porquê de aquele infeliz continuar com aquilo, sobretudo por saber – como ele também sabia – que outras tantas árvores existiam do lado de cá da avenida! “Mas não, era um cachorro estúpido!” pensei. Passou-se tudo da mesma maneira do dia anterior, ou seja: eu em pé na expectativa, ele deitado à espera, e, por fim, do outro lado, calmo e seguro. Mas diferentemente desses dois sentimentos, que imagino, envolviam o cão logo após a travessia, os meus, depois de mais aquele dia, seguiram caminhos totalmente oposto em relação a ele, sendo que mais furioso eu fiquei ao me deparar com o danado do bicho insistindo, agora diariamente, com aquilo.

            Passei a conjecturar ideias sobre a fixação do animal com aquele lugar, dizendo a mim mesmo, num desses absurdos que a falta do que fazer impõe, que talvez pretendesse ser enterrado ali. Mas essa minha tosca suposição não amenizava em nada o grande aborrecimento que ainda continuava sentido, chegando mesmo a desejar – ao vê-lo posicionar-se, perscrutando os veículos, e depois atirar-se para o outro lado do Eixo – que uma maldita roda acabasse de vez com ele. Claro que não era verídico tal desejo! Porém também não era mentira que mais cedo ou mais tarde tal realidade sem dúvida nenhuma iria acontecer. Esperava apenas que o fim do estúpido animal não ocorresse enquanto eu estivesse ali, trabalhando; mas como a maioria dos seres humanos, esperava não vê a desgraça com os olhos bem arregalados.

            Assim, os dias corriam, e o cão, sempre ao final da tarde, também continuou a correr para debaixo das jaqueiras. Indiferente ao perigo como ao resto do mundo, seguia sempre a mesma premissa: agachar, especular e...vuulpe, disparar para o outro lado da pista. Um dia, um simpático morador do prédio onde trabalho veio me perguntar, assustado, pois presenciou a peripécia do bicho de sua janela, se eu observara o cão que cortou desabalado o Eixo. Contei-lhe que sim, e contei-lhe também que há duas semanas, sempre naquele mesmo horário, era assaltado com sua presença audaciosa. Debatemos um pouco sobre a inteligência do animal que eu considerava estúpido, acontecendo desse simpático senhor – de conversa sempre agradável – indagar se não haveria algum jeito para que não ocorresse o pior com o infeliz. Como não encontrou solução, e eu, lerdo para resolver situações de animais pensantes ou não, também não a tivesse, deixamos de lado o assunto, até porque, no mundo veloz em que vivemos, não há tempo para pensarmos na ignorância dos outros... mesmo na de um estúpido cachorro.

            Dia desses, pois ele não havia aparecido, e até já não se arrisca com a mesma frequência, fui até as jaqueiras na tentativa de encontrar algo que dissesse um pouquinho que fosse sobre a obsessão do cachorro com aquele local. Nada encontrei, a não ser copas aconchegantes e porque não dizer belíssimas, que me acolheram exuberantes em meio a barafunda de veículos que seguiam em direções distintas, como também ensandecidos, para algum lugar.           

            “Animal esperto!” pensei.

 Sobre o autor: Júlio Castelo Branco ocupa a cadeira de nº 54, da Academia de Letras do Brasil, Seccional Distrito Federal - ALB/DF, Brasília, DF)

 

Um comentário:

  1. Parabéns, Júlio Castelo Branco, todos os seus textos que li até hoje são ótimos, este mesmo já reli várias vezes. Muito bom! Que bom que de vez em quando aparece uma obra sua, sempre muito bem escrita. Sua produção é de alto nível. Hilda Curcio

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