Por Paccelli José Maracci Zahler
O funcionário público Policarpo Quaresma, subsecretário do Arsenal de Guerra e conhecido como major Quaresma, foi um idealista apaixonado pelo Brasil. Todos os seus atos sempre visaram a solução dos problemas nacionais.
Não foi à toa que ele se dedicou a estudar a fundo os costumes nacionais, as raízes, o folclore, sempre como autodidata. E, partindo do princípio que os índios foram os primeiros habitantes do Brasil, concluiu que o idioma nacional não deveria ser o português, mas o tupi-guarani – “o único capaz de traduzir as nossas belezas!”
No requerimento que enviou ao Congresso Nacional, justificava que “o falar e o escrever em geral, sobretudo no campo das letras, se vêem na humilhante contingência de sofrer continuamente censuras ásperas dos donos da língua”, acrescentando que “em nosso país, os autores e escritores, especialmente os gramáticos, não se entendem no tocante à correção gramatical, vendo-se diariamente, surgir azedas polêmicas entre os mais profundos estudiosos do nosso idioma”.
Sua proposta virou motivo de chacota em todos os jornais e alguns passaram a considerá-lo louco.
Sua situação ficou ainda pior quando, por descuido, um ofício, por ele traduzido para o tupi-guarani, foi assinado pelo diretor do Arsenal de Guerra e enviado para o ministro. Como resultado, recebeu uma suspensão disciplinar e foi internado em um hospício.
Tempos depois, já tendo recebido alta, inspirou-se novamente e decidiu provar a todos que a agricultura brasileira tinha solução.
Não cansava de dizer que “a nossa terra tinha todos os climas do mundo e que era capaz de produzir tudo o que era necessário para o estômago mais exigente”.
É interessante notar que, mesmo sem ter tido uma formação superior, Policarpo Quaresma se dedicava de corpo e alma às pesquisas que empreendia. Assim, antes de investir suas economias na compra do Sítio Sossego, no município de Curuzu, RJ, fez um estudo completo de viabilidade técnica.
Pesquisou o preço das frutas e legumes, buscou informações nos boletins da Associação da Agricultura Nacional, estimou a produção média de cada hectare cultivado, os salários e as perdas inevitáveis. Pesou a relação custo/benefício, “não por ambição de fazer fortuna, mas por haver nisso mais uma demonstração das excelências do Brasil”.
No momento da compra do sítio, escolheu um bem maltratado e abandonado só para ter a oportunidade de demonstrar “a força e o poder da tenacidade, do carinho, no trabalho agrícola”. Do seu exemplo, “nasceriam mil outros cultivadores, estando em breve a grande capital [na época a cidade do Rio de Janeiro] cercada de um verdadeiro celeiro, virente e abundante a dispensar argentinos e europeus”.
Ao estabelecer-se no sítio, seu primeiro trabalho foi fazer um inventário dos minerais, dos vegetais e dos animais lá encontrados. Isto foi possível porque estudara a fundo, como autodidata, a Botânica, a Zoologia, a Mineralogia e a Geologia.
Reuniu amostras de arbustos em um herbário, colecionou madeiras em pequenos tocos seccionados longitudinal e transversalmente, e catalogou animais e minerais.
Organizou uma biblioteca agrícola com livros nacionais, franceses e portugueses, e adquiriu termômetros, barômetros, pluviômetros, higrômetros e anemômetros para estudos agrometeorológicos.
Sua preocupação em aplicar conhecimentos científicos à agricultura logo se chocaram com os conhecimentos práticos de seu empregado, o qual havia nascido e crescido na roça. Este costumava dizer que lá todos sabiam “de olho” quando iria chover muito ou pouco. Depois, era “só capinar, pôr a semente na terra, deixar crescer e apanhar”.
Policarpo levava em conta as observações práticas de seu empregado, mas procurava aproveitar racionalmente o terreno cultivado. Como entre uma linha e outra da lavoura de milho ficava um espaço, ele plantava batata-inglesa nos intervalos. Fazia uma consorciação de culturas, hoje recomendada pelos engenheiros agrônomos.
Apesar de todo o trabalho de abrir uma nova área de plantio com a enxada, não permitia o uso do fogo – as famosas queimadas! Dessa maneira, aproveitava os paus mais grossos como lenha e evitava que o fogo acabasse com a fertilidade do solo ao destruir a matéria orgânica e os microorganismos que nele habitam.
Não admitia o uso de adubos químicos em sua propriedade. Para quê, “se temos as terras mais férteis do mundo?”, perguntava.
Policarpo praticava a agricultura orgânica, aproveitando os restos orgânicos, as fezes dos animais, para adubar a terra e restaurar seu equilíbrio.
Seu pomar era um capricho só. Não descuidava de fazer uma poda de limpeza para tirar os galhos velhos e mortos e extirpar as ervas daninhas, conseguindo renovar as velhas árvores, há dez anos abandonadas.
Apesar de todo o cuidado, sua propriedade não escapou do ataque as saúvas e dos fungos. Neste caso, aplicou formicida nas principais aberturas do formigueiro e sulfato de cobre [até hoje usado pelos agricultores como fungicida] no milharal para controlar os fungos.
Chegou, então, o grande momento – a colheita!
“A sua alegria foi grande. Pela primeira vez, ia passar-lhe pelas mãos dinheiro que lhe dava a terra, sempre mãe e virgem”.
Em Curuzu, não havia mercado. Foi ao Rio de Janeiro oferecer abacates no Mercado [Público]. Encontrou comprador e voltou para casa contente.
Ao fazer os cálculos do dinheiro recebido, descontados os custos de produção e o frete, descobriu que o comprador havia pago “pelo cento [de abacates] a quantia com que se compra uma dúzia”.
Mesmo assim não desanimava. “Para o ano, o lucro seria maior”, dizia para si mesmo.
A história se repetiu com as abóboras, os aipins e as batatas-doces.
Para piorar, a peste atacou galinhas, perus e patos, devastando o galinheiro “ e não havia quem pudesse curar. Numa terra, cujo governo tinha tantas escolas que produziam tantos sábios, não havia um só homem que pudesse reduzir, com suas drogas e receitas, aquele considerável prejuízo”.
O golpe de misericórdia veio ao receber a intimação de que deveria pagar 500 mil réis de multa à Prefeitura de Curuzu “por ter enviado produtos de sua lavoura [para outro mercado] sem pagamento dos respectivos impostos”.
Surpreso, perguntava-se: “Como era possível prosperar a agricultura com tantas barreiras e impostos? Se ao monopólio dos atravessadores do Rio [de Janeiro] se juntavam as exações do Estado, como era possível tirar da terra a remuneração consoladora?”
Como se pode ver, a experiência de Policarpo Quaresma, brilhantemente narrada por Lima Barreto em folhetins do JORNAL DO COMÉRCIO em 1911 e em livro no ano de 1915, permanece atual.
Os problemas enfrentados pelos agricultores brasileiros no final do século passado e início do século XX permanecem os mesmos neste ano de 1998.
Tem-se a produção e não se tem mercado; tem-se mercado mas os impostos e os atravessadores ficam com a maior parte do lucro.
Hoje em dia, com a globalização da economia e a regionalização dos mercados, os pequenos e médios produtores como Policarpo Quaresma enfrentarão muitas dificuldades se não houver uma política governamental voltada para eles.
Não haverá maneira de competir com produtores estrangeiros cuja produção é subsidiada por seus respectivos governos. Aliás, no livro de Lima Barreto há uma crítica ao governo brasileiro com relação ao apoio dado, na época, aos imigrantes italianos e alemães: “Pela primeira vez, [Policarpo] notava que o descaso do governo era só para os nacionais; para os outros, todos os auxílios e facilidades, não contando com a sua anterior educação e apoio dos patrícios”.
Alguém pode estar curioso para saber qual teria sido o TRISTE FIM DE POLICARPO QUARESMA. Com certeza, a causa foi o seu profundo amor pelo Brasil, mas é melhor deixar que Lima Barreto conte a história direitinho, não é mesmo?
(Publicado na Revista BRASÍLIA nº 77, maio de 1998, p. 12-13)
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