domingo, 3 de fevereiro de 2019

CARTA AO POETA KONDER REIS

Por Urda Alice Klueger (Enseada de Brito, SC)

CARTAS QUE NÃO SE REPETIRÃO JAMAIS NR 11 – DE
URDA PARA O POETA MARCOS KONDER REIS
Blumenau, 09 de agosto de 1983

Marcos querido:

Desta vez a enchente não foi uma coisa
divertida nem agradável. Ah! Meu querido, como me
sinto cansada, arrasada fisicamente, com os sentidos
embotados, parece que com a cabeça no ar. Desde 6 de
julho é a primeira vez que me sento para escrever alguma
coisa. No dia 6 era a espera do que poderia vir, no dia 7 o
rio chegou e começou a dominar a cidade; às seis da
manhã já estava de pé, acudindo a casa da minha irmã,
onde a água já estava chegando. Mas até aí não se
esperava que a enchente virasse tragédia. Minha irmã
colocou todos os seus bens na vizinha de cima, mas a
água cobriu completamente a vizinha de cima. Esse é
apenas um caso isolado; o que aconteceu com ela
aconteceu com 80% da nossa gente. Eu moro no Bom
Retiro, acho que você sabe aonde é, num prédio que tem
uma alta garagem ao nível do solo. A água subiu até
quase o primeiro andar do prédio, era uma angústia
muito grande. Havia 13 pessoas abrigadas no meu
apartamento (quase não havia mais onde as pessoas se

abrigarem) e o medo de que a água subisse mais era
imenso. Foram nove dias sem luz e sem telefone, treze
dias sem uma gota d’água. A comida disponível na cidade
acabou (apenas um grande supermercado não foi
atingido), nossos desabrigados haviam perdido quase
tudo ou tudo o que possuíam, mas mesmo assim
procurávamos manter o moral alto e tudo era motivo
para rirmos. No sétimo dia da enchente é que as pessoas
começaram a chorar – meu querido, não foi nada fácil. Eu
chorei quando, no nono dia da enchente, consegui passar
para o centro da cidade e vi o que restava da Rua XV, a
rua do meu coração. Nada estava inteiro, só se viam
escombros e destruição. As lojas, os bancos, todos
amontoavam nas calçadas o lixo do que antes fora
mercadoria, documentos ou móveis. Aí eu chorei, dentro
da lama onde a gente afundava até os tornozelos, morta
de pena da minha cidade que fora tão linda e que estava
em agonia. Ah! Marcos do meu coração, que coisa
horrível que foi! Mas sempre havia a esperança, e o povo
todo pegou junto para tentar arrumar tudo de novo,
embora houvesse falta de tudo na cidade. A gente só
conseguia comprar o que tinha, quando tinha. Só agora
no começo de agosto é que conseguimos comprar carne
de novo e, ainda assim, racionada (1 kg por pessoa).
Comíamos comida de flagelados, vivíamos dentro da
lama, e quando a lama secou, uma imensa nuvem de
poeira tomou conta de Blumenau. Mas a gente
continuava com coragem, e então veio a outra enchente.
E depois, a outra, e depois, a outra. Mais três vezes o rio

subiu, meu querido, que tragédia! Havia água nas
torneiras dois ou três dias por semana, quando havia.
Agora o rio parece que baixou mesmo, e temos que
reconstruir Santa Catarina. Temos um plano de
empréstimos para os flagelados, lá na Caixa Econômica, e
tenho trabalhado (todos temos) até quase não aguentar
mais. A cidade está cheia de pó, as crianças que foram
evacuadas têm que voltar para as escolas, que
recomeçaram a reabrir. Meus sobrinhos estão dispersos,
Anna Paula em Itajaí, os três pequenos em Curitiba, Laura
Alice já de volta de Armação, lutando para sobreviver,
apesar da água contaminada (há tifo na cidade), linda e
feliz como tem sido desde que nasceu. Mariana procura
uma casa urgentemente (a casa dela ficou 30 dias dentro
da água), mas não há casas disponíveis livres de
enchente, e ela não tem mais sequer um fogão para
recomeçar na nova casa, que ainda não se sabe quando
será conseguida.

Numa rápida ida a Armação, no domingo
(estamos trabalhando inclusive sábados e domingos, para
darmos conta de atender aos flagelados), vi um Vale do
Itajaí destruído. De Gaspar até Itajaí não existe nem mais
um pasto, nem uma vaca, nada. Todos os pastos foram
aterrados de lama e ainda estão cheios de água – o gado
que não morreu na enchente teve que ser vendido pois
não havia com que alimentá-lo – e isso me doeu tanto,
meu querido, tanto! Não sei como vai ser daqui para a
frente, mas espero que Santa Catarina volte a ser o que
era, só que vai ser tão difícil! Meu querido, nem ao

menos lhe perguntei como você está, mas desejo
sinceramente que você esteja melhor do que nós. É quase
meia noite, tenho que ir dormir, senão amanhã não
consigo trabalhar, e há tanto serviço! Queira-me bem
(ainda não deu para ler Praia Brava – não há condições
psicológicas para se ler) e me escreva. Sinto muita falta
das suas cartas. Um abração,

Urda

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