Por Urda Alice Klueger (Enseada de Brito, SC)
CARTAS QUE NÃO SE REPETIRÃO JAMAIS NR 11 – DE
URDA PARA O POETA MARCOS KONDER REIS
Blumenau, 09 de agosto de 1983
Marcos querido:
Desta vez a enchente não foi uma
coisa
divertida nem agradável. Ah! Meu
querido, como me
sinto cansada, arrasada
fisicamente, com os sentidos
embotados, parece que com a
cabeça no ar. Desde 6 de
julho é a primeira vez que me
sento para escrever alguma
coisa. No dia 6 era a espera do
que poderia vir, no dia 7 o
rio chegou e começou a dominar a
cidade; às seis da
manhã já estava de pé, acudindo a
casa da minha irmã,
onde a água já estava chegando.
Mas até aí não se
esperava que a enchente virasse
tragédia. Minha irmã
colocou todos os seus bens na
vizinha de cima, mas a
água cobriu completamente a
vizinha de cima. Esse é
apenas um caso isolado; o que
aconteceu com ela
aconteceu com 80% da nossa gente.
Eu moro no Bom
Retiro, acho que você sabe aonde
é, num prédio que tem
uma alta garagem ao nível do
solo. A água subiu até
quase o primeiro andar do prédio,
era uma angústia
muito grande. Havia 13 pessoas
abrigadas no meu
apartamento (quase não havia mais
onde as pessoas se
abrigarem) e o medo de que a água
subisse mais era
imenso. Foram nove dias sem luz e
sem telefone, treze
dias sem uma gota d’água. A
comida disponível na cidade
acabou (apenas um grande
supermercado não foi
atingido), nossos desabrigados
haviam perdido quase
tudo ou tudo o que possuíam, mas
mesmo assim
procurávamos manter o moral alto
e tudo era motivo
para rirmos. No sétimo dia da
enchente é que as pessoas
começaram a chorar – meu querido,
não foi nada fácil. Eu
chorei quando, no nono dia da
enchente, consegui passar
para o centro da cidade e vi o
que restava da Rua XV, a
rua do meu coração. Nada estava
inteiro, só se viam
escombros e destruição. As lojas,
os bancos, todos
amontoavam nas calçadas o lixo do
que antes fora
mercadoria, documentos ou móveis.
Aí eu chorei, dentro
da lama onde a gente afundava até
os tornozelos, morta
de pena da minha cidade que fora
tão linda e que estava
em agonia. Ah! Marcos do meu
coração, que coisa
horrível que foi! Mas sempre
havia a esperança, e o povo
todo pegou junto para tentar
arrumar tudo de novo,
embora houvesse falta de tudo na
cidade. A gente só
conseguia comprar o que tinha,
quando tinha. Só agora
no começo de agosto é que
conseguimos comprar carne
de novo e, ainda assim, racionada
(1 kg por pessoa).
Comíamos comida de flagelados,
vivíamos dentro da
lama, e quando a lama secou, uma
imensa nuvem de
poeira tomou conta de Blumenau.
Mas a gente
continuava com coragem, e então
veio a outra enchente.
E depois, a outra, e depois, a
outra. Mais três vezes o rio
subiu, meu querido, que tragédia!
Havia água nas
torneiras dois ou três dias por
semana, quando havia.
Agora o rio parece que baixou
mesmo, e temos que
reconstruir Santa Catarina. Temos
um plano de
empréstimos para os flagelados,
lá na Caixa Econômica, e
tenho trabalhado (todos temos)
até quase não aguentar
mais. A cidade está cheia de pó, as
crianças que foram
evacuadas têm que voltar para as
escolas, que
recomeçaram a reabrir. Meus
sobrinhos estão dispersos,
Anna Paula em Itajaí, os três
pequenos em Curitiba, Laura
Alice já de volta de Armação,
lutando para sobreviver,
apesar da água contaminada (há
tifo na cidade), linda e
feliz como tem sido desde que
nasceu. Mariana procura
uma casa urgentemente (a casa
dela ficou 30 dias dentro
da água), mas não há casas
disponíveis livres de
enchente, e ela não tem mais
sequer um fogão para
recomeçar na nova casa, que ainda
não se sabe quando
será conseguida.
Numa rápida ida a Armação, no
domingo
(estamos trabalhando inclusive
sábados e domingos, para
darmos conta de atender aos
flagelados), vi um Vale do
Itajaí destruído. De Gaspar até
Itajaí não existe nem mais
um pasto, nem uma vaca, nada.
Todos os pastos foram
aterrados de lama e ainda estão
cheios de água – o gado
que não morreu na enchente teve
que ser vendido pois
não havia com que alimentá-lo – e
isso me doeu tanto,
meu querido, tanto! Não sei como
vai ser daqui para a
frente, mas espero que Santa
Catarina volte a ser o que
era, só que vai ser tão difícil!
Meu querido, nem ao
menos lhe perguntei como você
está, mas desejo
sinceramente que você esteja
melhor do que nós. É quase
meia noite, tenho que ir dormir,
senão amanhã não
consigo trabalhar, e há tanto
serviço! Queira-me bem
(ainda não deu para ler Praia
Brava – não há condições
psicológicas para se ler) e me
escreva. Sinto muita falta
das suas cartas. Um abração,
Urda
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