A minha
avó, Lucídia Lopes, era dona de um campinho, umas duas quadras e pouco quase
despovoadas, em razão do adiantado de sua idade, já com “setenta” e pico e meio
"atempada" do reumatismo, além, é claro, de outras tantas doenças
naturais do tempo consumido. Ou seja, da juventude acumulada.
A
criação não passava de três ou quatro vaquinhas de leite, uma égua rosilha, já
com quase trinta anos e uma junta de bois, “Nanico e Redondo”, eram os nomes
desses dois bichos impagáveis de mansos, que só serviam para arrastar a pipa e
de quando em vez, um vizinho, ou um neto lavrar algum pedaço de terra.
Era
costume de minha avó ter sempre um neto lhe fazendo companhia, para esses
servicinhos que sempre tocam à gurizada fazer, botar vaca, cortar lenha, buscar
água. E dessa feita, estava eu passando uma temporada por lá.
Bueno,
o campo era um pastiçal, a “cousa” mais linda do mundo e os alambrados um
abandono, a “cousa” mais triste do mundo.
Dava
pena de ver, e em razão disso, o campo vivia cheio de criação alheia.
Entre
tanto bicho alheio havia, uma petiça tostada de um tal, “Chico Sabiá”, que lhe
conto, não havia mais matreira, pois era desses animais que enxergava o vivente,
a meia légua, e já esticava a cola e o pior é que levava toda a cavalhada nessa
“olada”, de modo que até a infeliz da rosilha, por vezes, inventava de me
deixar a pé.
Pegar
aquela petiça nem a tiro de laço, pois não havia quem chegasse a doze braças
pra atirar uma corda.
Mas há
quem diga, por sabedoria, que pra guri “taludo”, não existe égua matreira, de
modo que eu comecei a pensar numa maneira de botar uma corda no pescoço da
desgraçada e ressabiar dessas "matreirices", que estavam estragando
toda a cavalhada.
Descobri que a petiça em todas as noites vinha comer as sobras de milho
no "embornal" da rosilha velha.
Para
que melhor entendam, o "embornal" ficava enfiado numa tronqueira de
pitangueira, de modo que a égua velha comesse a ração na quantidade que
quisesse e depois saísse a pastar no campo, o que em razão da “maleza” de
dentes, sempre sobrava algum resto de milho.
Andando lá
pelo galpão, descobri um pedaço de couro donde tirei uns tentos, lonqueei a
capricho, dei uma sovada e depois trancei de “três”, a única trança que sabia,
fiz um "lacito" com uns quatro ou cinco metros, com argola e tudo,
para botar, na tronqueira da pitangueira, uma armada bem feita entre o embornal
e uma forquilha, de modo que pra comer precisasse enfiar o pescoço na laçada.
A outra ponta
da piola, atei no galho de cima pelo outro lado.
Á
tardinha deixei a rosilha comer a ração e fui armar a laçada pra pegar a
petiça, mas por azar a égua velha voltou pra mais umas bocadas e amanheceu ela
na corda, enquanto a petiça pastava no descampado como se fosse a única dona do
campo.
Nem bem me viu, já afinou a cola em direção à
sanga.
Eu, como se sabe, sou mais teimoso do que porco
roceiro, de maneira, que, armei a laçada outra vez, e mais outra, e ainda outra
mais, até que pelas cansadas, um dia amanheceu a bendita petiça agarrada pelo
gargalo escabeceando e arrastando a cola no chão tentando escapar.
Paciência nunca
me faltou, por isso botei um freio na rosilha velha, atirei um pelego no lombo
e fui voltear as vacas para puxar os tetos e garantir o café da manhã. Lembro
que, ainda comi um prato de mogango com leite, pra depois fazer uma
"brajerada" das boas para a “infame da petiça”.
Cortei um
galho de aroeira preta de um tamanho bem regular e atei na cola, depois enfiei
um manojo de urtiga bem de contra o “sabugo” e larguei essa petiça no corredor
em direção ao “Passo do Pessegueiro” que lhe conto, foi um tronar de patas e
uma polvoadeira, a “cousa” mais linda do mundo.
Dava gosto
ver a petiça, “galopeava” enlouquecida sem entender o porquê, pois quanto mais
corria, mais poeira levantava e de cabeça virada para trás, de tanto “cagaço”,
só despontava o bico das orelhas por cima do lombo, pelo meio da nuvem de terra
vermelha que se formou no corredor.
Mas por
desgraça, vinha subindo, do passo em direção ao rancho o “Firmino Rengo”, um
carroceiro que vivia pelas campanhas comprando bichos de penas pra revender na
cidade, e para desgraça, ainda maior, com a carroça carregada até o limite do
toldo.
Os
matungos do carroceiro vendo aquela nuvem de poeira, tocando a petiça por
diante se assustaram e dispararam com a carroça, deitando chirca, subindo
barrancos, arrancando pedras e espalhando o bicharedo a campo até se enfiarem
no Arroio, com o que sobrou da carroça. Ou melhor dizendo, só com o assoalho e
os balancins, porque até as rodas se despedaçaram.
Bueno, pra consertar a carroça, mais de semana e
pra juntar as aves fugidas quase duas. Isso sem contar o bicharedo que se
extraviou e nunca mais foi visto.
A peticinha, com isso, se amansou de tal maneira
que o galho da aroeira chegou a apodrecer atado na cola de tanto tempo que
ficou e lhe digo mais, cheguei a lavrar de certa feita umas terras lá na costa do
arroio, plantei trigo e gradeei com aquela rama atada na cola da petiça, só
tocando ela por diante e lhe afirmo, cobriu tão bem a semente que se falhou “um
pé qui outro foi muito”.
Bueno, pra encurtar esse causo, se passaram dois
anos e a tal lavoura deixou de produzir. Era só o trabalho de plantar pois não
nascia um pé de nada, se botava semente de dia e os bichos comiam de noite, ou
talvez na madrugada, “assuscede” que não vingava nada.
Palpitou-me que fosse saracura ou paca por serem
bichos roceiros demais e que, geralmente, atacam na madrugada ou na boca da
noite, mas a julgar pelo estrago só podia ser de bando, ou quem sabe uma tropa.
Resolvi, então, fazer uns mundéus de laçada.
Desses que quando o bicho belisca na espiga de milho, escapa uma laçada presa
em um galho vergado, que é morte certa, por enforcamento.
Fiz uma dúzia deles e, ainda, pra garantir fiz
uma “aripuca” de “carafá” trespassados com imbira e deixei armados na costa do
mato.
De manhãzita, montei a cavalo e toquei em direção
a lavoura pra revisar os mundéus... e que surpresa. Tinham pegado uma saracura
polaca, cinco jacús nanicos, sendo que dois deles tinham penas amarelas e os
outros três penas brancas e, ainda, três perdizes, tão “carijózinhas” que
pareciam uma seda.
A aripuca encontrei uns cinqüenta metros adiante
pois “um munaia d´um filhote de avestruz” caíra nela e de tão grande e forte
que era a arrastara. E tem mais se arrepiava de tão furioso quando eu assobiava
.
Hoje, é comum encontrar entendidos até da
“estranja”, caçando por lá e tentando descobrir a razão de tanta “mestiçagem”
nos bichos daqueles matos, pois ali há bichos que só ali são encontrados de tão
estranhos que são.
“E eu que
bem sei” que aconteceu, por causa de uma petiça matreira, “tô quieto”. “Mas,
afinal, se eu conto descobrem a brajerada”.
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