sábado, 1 de agosto de 2020

UMA PETIÇA FLOR DE MATREIRA

Por Severino Rudes Moreira (Bagé, RS)


    A minha avó, Lucídia Lopes, era dona de um campinho, umas duas quadras e pouco quase despovoadas, em razão do adiantado de sua idade, já com “setenta” e pico e meio "atempada" do reumatismo, além, é claro, de outras tantas doenças naturais do tempo consumido. Ou seja, da juventude acumulada.
     A criação não passava de três ou quatro vaquinhas de leite, uma égua rosilha, já com quase trinta anos e uma junta de bois, “Nanico e Redondo”, eram os nomes desses dois bichos impagáveis de mansos, que só serviam para arrastar a pipa e de quando em vez, um vizinho, ou um neto lavrar algum pedaço de terra.
     Era costume de minha avó ter sempre um neto lhe fazendo companhia, para esses servicinhos que sempre tocam à gurizada fazer, botar vaca, cortar lenha, buscar água. E dessa feita, estava eu passando uma temporada por lá.
     Bueno, o campo era um pastiçal, a “cousa” mais linda do mundo e os alambrados um abandono, a “cousa” mais triste do mundo.
    Dava pena de ver, e em razão disso, o campo vivia cheio de criação alheia.
    Entre tanto bicho alheio havia, uma petiça tostada de um tal, “Chico Sabiá”, que lhe conto, não havia mais matreira, pois era desses animais que enxergava o vivente, a meia légua, e já esticava a cola e o pior é que levava toda a cavalhada nessa “olada”, de modo que até a infeliz da rosilha, por vezes, inventava de me deixar a pé.
    Pegar aquela petiça nem a tiro de laço, pois não havia quem chegasse a doze braças pra atirar uma corda.
   Mas há quem diga, por sabedoria, que pra guri “taludo”, não existe égua matreira, de modo que eu comecei a pensar numa maneira de botar uma corda no pescoço da desgraçada e ressabiar dessas "matreirices", que estavam estragando toda a cavalhada.
     Descobri que a petiça em todas as noites vinha comer as sobras de milho no "embornal" da rosilha velha.
     Para que melhor entendam, o "embornal" ficava enfiado numa tronqueira de pitangueira, de modo que a égua velha comesse a ração na quantidade que quisesse e depois saísse a pastar no campo, o que em razão da “maleza” de dentes, sempre sobrava algum resto de milho.
 Andando lá pelo galpão, descobri um pedaço de couro donde tirei uns tentos, lonqueei a capricho, dei uma sovada e depois trancei de “três”, a única trança que sabia, fiz um "lacito" com uns quatro ou cinco metros, com argola e tudo, para botar, na tronqueira da pitangueira, uma armada bem feita entre o embornal e uma forquilha, de modo que pra comer precisasse enfiar o pescoço na laçada.
  A outra ponta da piola, atei no galho de cima pelo outro lado.
  Á tardinha deixei a rosilha comer a ração e fui armar a laçada pra pegar a petiça, mas por azar a égua velha voltou pra mais umas bocadas e amanheceu ela na corda, enquanto a petiça pastava no descampado como se fosse a única dona do campo.
Nem bem me viu, já afinou a cola em direção à sanga.
Eu, como se sabe, sou mais teimoso do que porco roceiro, de maneira, que, armei a laçada outra vez, e mais outra, e ainda outra mais, até que pelas cansadas, um dia amanheceu a bendita petiça agarrada pelo gargalo escabeceando e arrastando a cola no chão tentando escapar.
 Paciência nunca me faltou, por isso botei um freio na rosilha velha, atirei um pelego no lombo e fui voltear as vacas para puxar os tetos e garantir o café da manhã. Lembro que, ainda comi um prato de mogango com leite, pra depois fazer uma "brajerada" das boas para a “infame da petiça”.
  Cortei um galho de aroeira preta de um tamanho bem regular e atei na cola, depois enfiei um manojo de urtiga bem de contra o “sabugo” e larguei essa petiça no corredor em direção ao “Passo do Pessegueiro” que lhe conto, foi um tronar de patas e uma polvoadeira, a “cousa” mais linda do mundo.
 Dava gosto ver a petiça, “galopeava” enlouquecida sem entender o porquê, pois quanto mais corria, mais poeira levantava e de cabeça virada para trás, de tanto “cagaço”, só despontava o bico das orelhas por cima do lombo, pelo meio da nuvem de terra vermelha que se formou no corredor.
  Mas por desgraça, vinha subindo, do passo em direção ao rancho o “Firmino Rengo”, um carroceiro que vivia pelas campanhas comprando bichos de penas pra revender na cidade, e para desgraça, ainda maior, com a carroça carregada até o limite do toldo.
  Os matungos do carroceiro vendo aquela nuvem de poeira, tocando a petiça por diante se assustaram e dispararam com a carroça, deitando chirca, subindo barrancos, arrancando pedras e espalhando o bicharedo a campo até se enfiarem no Arroio, com o que sobrou da carroça. Ou melhor dizendo, só com o assoalho e os balancins, porque até as rodas se despedaçaram.
Bueno, pra consertar a carroça, mais de semana e pra juntar as aves fugidas quase duas. Isso sem contar o bicharedo que se extraviou e nunca mais foi visto.
A peticinha, com isso, se amansou de tal maneira que o galho da aroeira chegou a apodrecer atado na cola de tanto tempo que ficou e lhe digo mais, cheguei a lavrar de certa feita umas terras lá na costa do arroio, plantei trigo e gradeei com aquela rama atada na cola da petiça, só tocando ela por diante e lhe afirmo, cobriu tão bem a semente que se falhou “um pé qui outro foi muito”.
Bueno, pra encurtar esse causo, se passaram dois anos e a tal lavoura deixou de produzir. Era só o trabalho de plantar pois não nascia um pé de nada, se botava semente de dia e os bichos comiam de noite, ou talvez na madrugada, “assuscede” que não vingava nada.
Palpitou-me que fosse saracura ou paca por serem bichos roceiros demais e que, geralmente, atacam na madrugada ou na boca da noite, mas a julgar pelo estrago só podia ser de bando, ou quem sabe uma tropa.
Resolvi, então, fazer uns mundéus de laçada. Desses que quando o bicho belisca na espiga de milho, escapa uma laçada presa em um galho vergado, que é morte certa, por enforcamento.
Fiz uma dúzia deles e, ainda, pra garantir fiz uma “aripuca” de “carafá” trespassados com imbira e deixei armados na costa do mato.
De manhãzita, montei a cavalo e toquei em direção a lavoura pra revisar os mundéus... e que surpresa. Tinham pegado uma saracura polaca, cinco jacús nanicos, sendo que dois deles tinham penas amarelas e os outros três penas brancas e, ainda, três perdizes, tão “carijózinhas” que pareciam uma seda.
A aripuca encontrei uns cinqüenta metros adiante pois “um munaia d´um filhote de avestruz” caíra nela e de tão grande e forte que era a arrastara. E tem mais se arrepiava de tão furioso quando eu assobiava .
Hoje, é comum encontrar entendidos até da “estranja”, caçando por lá e tentando descobrir a razão de tanta “mestiçagem” nos bichos daqueles matos, pois ali há bichos que só ali são encontrados de tão estranhos que são.
 “E eu que bem sei” que aconteceu, por causa de uma petiça matreira, “tô quieto”. “Mas, afinal, se eu conto descobrem a brajerada”.

(Severino Rudes Moreira é membro do Movimento dos Escritores Bageenses - MEB)

Nenhum comentário:

Postar um comentário