domingo, 1 de janeiro de 2017

LÍNGUA E LITERATURA PORTUGUESAS NO BRASIL

CONSIDERAÇÕES SOBRE A HISTÓRIA DA LÍNGUA E DA LITERATURA  PORTUGUESAS NO BRASIL – DE COMO SE CRIAM AS DIFERENÇAS ENTRE BRASIL,  PORTUGAL, (E MOÇAMBIQUE)ATÉ SUA DIVISÃO PELA ACADEMIA

 Por Urda Alice Klueger (Blumenau, SC)

                                   Esta é uma parte tão interessante da História, que pensamos que o melhor jeito de conta-la é fazendo de conta que é uma história de fadas. Portanto, vamos lá:
                                   Era uma vez uma grande terra, onde se falavam inúmeras línguas. Eram tantas, que até hoje ainda não sabemos quantas. Só assim de cabeça, podemos citar algumas dúzias delas, e eram línguas de povos que se chamavam Tupinambás, Tabajaras, Guaranis, Caiapós, Tupis, Xinguanos, Tapuias, e muitos outros.
                                   Também era uma vez um pequeno/grande país chamado Portugal, lá do outro lado do mar, que falava uma língua que já vinha lá muito do passado, de antigas tribos indo-européias, e que depois fora bem e bem temperada por invasores chamados Romanos, que, por sua vez, já haviam copiado muito da sua língua de umas gentes mais longínquas ainda, chamadas de Grega.
                                   Estava uma terra lá e uma terra cá, e uma não sabia da outra, e cada qual falava do jeito que queria. Foi então, no anoitecer do século que chamamos de XV, que aquela gente do tal Portugal, que já andava a experimentar a andar “por mares nunca dantes navegados[1], acabou por atravessar o oceano ao qual chamamos de Atlântico, e veio ancorar seus navios bem aqui na terra de grande riqueza de línguas e, aos poucos, aos pouquinhos, apoderou-se dela.
                                   Como é que alguém pode se apoderar de uma terra? A gente já estudou isso na escola: o povo invasor se apodera da economia, transforma os habitantes em escravos, impõe seus costumes, suas leis, sua religião ... e sua língua. Para quem não sabe muito bem como isto funciona, nós aconselhamos ler o livro “Casa Grande e Senzala”, de um antropólogo chamado Gilberto Freyre, ou outro que se chama “As veias abertas da América Latina”, de um escritor chamado Eduardo Galleano.
                                   Vamos considerar, porém, que todos nós já sabemos disto, isto é, que o povo português chegou até aqui aonde nós vivemos e que tomou conta desta nossa terra tão rica em povos e línguas.
                                   No começo, não foi nada fácil: como é que alguém podia se entender com tantas línguas ao mesmo tempo? Temos que pensar que os portugueses eram só alguns, só um pouquinho, só um pequeno povo que morava lá do outro lado do mar e que mandava alguns representantes em audaciosas caravelas, e que os habitantes daqui da nossa terra eram muitos milhões, povos e povos por todos os recantos, povos que tudo sabiam a respeito de como viver harmoniosamente com a fartura da natureza que os envolvia gratuitamente, povos sábios, milenares, que viviam muito bem, obrigada. A diferença entre esses nossos povos e o outro pequeno povo que veio, é que o recém-chegado tinha pavorosas armas de fogo, que não davam a menor chance de defesa aos muitos povos nativos. E a submissão pela força (o que não é uma submissão real) acabou acontecendo.  
                                   Aqueles milhões de pessoas submetidas, porém, falavam tantas línguas, tantas línguas! Como alguém se entender num país assim, onde cada um falava de um jeito? Só havia uma forma de todos se entenderem: criar-se uma língua comum. E como os dominados eram em muito maior número que os dominadores, criou-se primeiro uma língua mais do jeito deles: a chamada “língua geral”, um jeito de falar que chamamos de tupi-guarani, e que era um grande somatório dos muitos tipos de falas que havia por aqui. Vamos colocar aqui como foi isso, na opinião séria de um antropólogo conceituado: [2]O tupi-guarani aproximou entre si tribos e povos indígenas, diversos e distantes em cultura, e até inimigos de guerra, para, em seguida, aproximá-los todos do colonizador europeu.  Foi a língua, essa que se formou da colaboração do culumim com o padre, das primeiras relações sociais e de comércio entre as duas raças, podendo-se afirmar do povo invasor que adotou para o gasto ou o uso corrente a fala do povo conquistado, reservando a sua para uso restrito e oficial. Quando mais tarde o idioma português – sempre o oficial – predominou sobre o tupi, tornando-se, ao lado deste, língua popular, já o colonizador estava impregnado de agreste influência indígena; já o seu português perdera o ranço ou a dureza do reinol; amolecera-se num português sem rr nem ss; infantilizara-se quase, em fala de menino, sob a influência do ensino jesuítico de colaboração com os culumins”.
                                   Pensamos que o nosso grande Gilberto Freyre deixa bem claro o que aconteceu: primeiro, fez-se uma grande língua nova, mistura das muitas outras, onde todos podiam se entender, e depois implantou-se no país de língua homogênea uma outra língua que acabaria homogênea: a do colonizador. Nosso antropólogo também deixa bem claro que alguma coisa aconteceu aí no meio – a língua portuguesa que acabou tomando conta do Brasil já era um português novo, já tinha outra pronúncia, outra entonação, outras palavras.
                                   Como foi que a língua portuguesa do Brasil foi ficando diferente da língua portuguesa de Portugal? Achamos que é muito fácil imaginar o que aconteceu, e aí pedimos a bênção e a licença de Dilthey para justificarmos nossa imaginação: “(...) Revivenciar é criar seguindo a linha dos acontecimentos. Assim progredimos com a História Contemporânea, com um acontecimento ocorrido num país distante ou com algo que acontece na alma de um ser humano que nos está próximo. A revivência é completa quando o acontecimento, depois de passar pela consciência do poeta, do artista ou do historiador, fica para sempre ante nós, fixado numa obra. (...)”[3] 
                                   Autorizados por Dilthey, vamos imaginar. Como não conhecemos todo o vocabulário de Portugal, na época, vamos nos reportar ao que comem hoje os bebês portugueses: papas. É possível que no século XVI eles também comessem papas, é possível que o alimento de um bebê português, naquele século, tenha tido outro nome. O que podemos saber, de certeza, é que os bebês portugueses nunca comeram mingau. Mingau é coisa americana, palavra antiga das gentes antigas que moravam por aqui, era comida de bebê de índio, comida de curumim, comida que os nossos bebês brasileiros comem hoje. Daí para imaginar com a velocidade de um raio, fica muito, muitíssimo fácil: um dia, nasceu um primeiro bebê novo no Brasil, gente de outra etnia[4], filho de um português, e pela primeira vez essa criança alimentou-se de mingau, sem nem saber que lá do outro lado do Oceano os seus antepassados, quando bebês, eram fiéis comedores de papas. E este nosso primeiro bebê de antecedentes portugueses deu-se muito bem com o mingau, e não houve nada na sua vida que o levasse, algum dia, a interessar-se por papas. Era o primeiro momento da primeira cisão entre a língua portuguesa que se falaria no Brasil e a que se estava falando em Portugal. Pensamos que Dilthey aprovaria este nosso raciocínio.
                                   E vieram outras palavras, outros dias, outros séculos. A língua portuguesa falada no Brasil e a falada em Portugal mais e mais se diferenciavam, tanto em vocabulário, quanto em expressão e em sotaque. Observar tal era uma questão de ir-se ou vir-se pelo oceano, a escutar o que se falava em cada uma das margens de língua lusa. Era uma coisa tão visível (e ouvível), que só não percebia quem não queria. Nesse tempo, ainda éramos apenas uma colônia, e quem, por aqui, já estava a fazer literatura, era considerado como escritor português, e como tal classificado. Vejamos o que diz Guilhermino César a respeito: “Um sentimento nacional esperto havia, contudo, madrugado com o primeiro poeta nosso, em idade cronológica, que publicou livro de versos – o baiano Manuel Botelho de Oliveira, cujas silvas, na Ilha da Maré, respiram o ar da terra nativa, revelam a exuberância tropical, os costumes e peculiaridades da América Portuguesa. O mesmo acontece aos que lhe sucederam. Embora se apartem, por esse lado, dos modelos metropolitanos, a dependência política fez com que todos eles fossem considerados portugueses; ninguém p
rocurou, todavia discernir nos diferentes grupos, e em cada autor em particular, o vinco psicológico e a dicção divergentes, a cor local sul-americana, garridamente nossa (...) Mas o primitivismo, a força das coisas brasileiras, não marcou somente, desde cedo, o espírito dos naturais da terra; os estrangeiros nela radicados experimentaram o mesmo sortilégio.” [5]  
                                   Temos aí, portanto, não apenas diferenças na língua, mas na própria literatura, que “respira o ar da terra nativa, revela a exuberância tropical, os costumes e peculiaridades da América Portuguesa.”  Já não era mais a simples questão das papas e do mingau: a literatura trazia no seu bojo diferenças maiores, dizia sobre a farinha de trigo das papas e da farinha de mandioca do mingau, já não permitia comparar Portugal e sua colônia d’Além-Mar, fazer das duas uma coisa só, ou de uma a continuação da outra: outros eram os costumes; criava-se uma língua diferente; e a literatura era a maior prova de que tudo isso estava acontecendo.   
                                   Nesse tempo, finais do século XVIII e começos do século XIX, começa a haver, na Europa, eruditos que passam a se preocupar em estudar a literatura portuguesa, a literatura ibérica ou a literatura do sul da Europa. Podemos citar Friedrich Bouterwek, alemão (1765-1828 – principal obra: “A História da Poesia e da Eloqüência Portuguesa”), Simonde de Sismondi, francês (principal obra publicada em 1813 “De la littérature du Midi de l’Europe”) e Ferdinand Denis, francês (1798-1890 – principal obra:  “Résumé de l’Histoire Littéraire du Portugal, suivi du Résumé de l’Histoire Littéraire du Brésil”)[6] . Com tais estudos, começam as indagações: por que inserir na literatura européia uma outra literatura, que tinha já tão fortes as cores americanas, que já tinha outros tons que, decididamente, não eram mais ibéricos? Muitas coisas são sugeridas, muita discussão tem início. Ferdinand Denis chega a enfatizar sobre a “necessidade de nos apegarmos um pouco mais afetivamente ao país, por via da adesão à temática do Indianismo. E foi isso o que ele fez (...), ao aconselhar que nossos autores olhassem mais para dentro de si mesmos e procurassem estudar cuidadosamente a natureza americana, o nosso barbarismo, o nosso primitivismo, em busca de características originais inexploradas[7].
                                   Estava-se no Império, e a voz de Ferdinand Denis repercutiu imediata e intensamente no nosso meio intelectual carente de guias. As experiências começam. “As Brasilianas” de Araújo Porto Alegre, com vistosos penachos de tucanos, muita paisagem ciclópica e coloridos berrantes, abrem a vereda às passagem dos índios de Gonçalves Dias e de Alencar” [8]Portugal não gosta dessa coisa de se levar para o papel vocábulos, locuções e modos de dizer típicos do Brasil. “Foi sobretudo com o autor de O Guarani que a inteligência portuguesa começou a sentir o abismo que o tempo cavara entre as duas literaturas”[9]. Não se torna difícil para nós, brasileiros, que lemos os autores portugueses e os nossos, e que já estivemos no país deles e vivemos no nosso, perceber essa funda divisão que existe entre as nossas línguas e as nossas literaturas.[10]    
                                   Citando mais uma vez Guilhermino César: “O nosso homem comum já não lê os autores portugueses, simplesmente porque já não os entende, como os entendia outrora, quando a linguagem fixada pela norma culta era a mesma.  Atualmente, não só a norma culta brasileira se distancia bastante da portuguesa, como principalmente o consumidor médio, para quem a literatura é fruição descuidada, sem maiores compromissos críticos, já repele toda obra que o obrigue a tomar contato com uma outra realidade expressa em preferências vocabulares, entoação e colocação discrepantes daquelas a que está habituado”[11].

                                    Diante da análise que até aqui fizemos, acreditamos que fica muito clara a forma como aconteceu a cisão entre a língua portuguesa do Brasil e a de Portugal. Iríamos mais longe: de alguma forma parecida, essa cisão também teria se dado nos outros países de língua portuguesa que existem pelo mundo. Tivemos a oportunidade de conhecer um deles, Moçambique, na África Austral, e pudemos verificar que lá há uma terceira língua portuguesa: é um erro pensar-se que em Moçambique fala-se Português de Portugal – em Moçambique fala-se Português de Moçambique. Também lá naquela terra, algum dia, nasceu uma criança de etnia portuguesa que já não se alimentou de papas – alguma outra palavra havia para algum outro alimento que criou e tornou forte aquela criança de origens portuguesas, e lá também se iniciou uma cisão.
                                   Procuraremos exemplificar o que afirmamos, transcrevendo, abaixo, breves trechos de romances contemporâneos produzidos nos três países citados. A diferença não precisará ser explicada – ela se fará por si só. Seria possível entrarmos, agora, em longa discussão estética sobre as Literaturas Portuguesas, mas já não é o espaço para tal. Os textos abaixo são bastante elucidativos.

PORTUGAL


                                  Comigo é diferente. Dei-te, a propósito, as respostas evasivas e sintéticas que te dei sem, afinal, nada dizerem. A verdade é esta: sou mais nova do que tu. Preciso amadurecer mais para produzir coisa capaz de aparecer, de cara lavada, aos olhos das gentes. Aconteceu o sabido e, afinal, não foi mau. Mas estamos aqui parados a dar à língua e a ver a gente passar no gozo desta noite de Verão em pleno Inverno. Vamos entrar. Antes deixa-me dizer-te: com a tua idade e reconhecendo nos teus escritos qualidade para virem a público quem para tanto tem indiscutível autoridade, está mesmo na altura certa de começares a aparecer. E convence-te: não há nenhum mal, não é nenhuma ofensa aos teus brios, aceitar apoio de quem, sem qualquer propósito mesquinho de quem no-lo queira dar. Um favor? Sem dúvida. Mas um favor não é nenhuma ofensa, além de que qualquer favor com outro favor se paga. (...) Por outro lado (ia dizer ”vindo de onde vieste, filho de Pai pobríssimo, pescador e cavador, tu próprio, nos teus princípios, lado a lado com teu Pai, também pescador e cavador, mesmo com a riqueza vinda de um qualquer Tio imigrante(...) (...).” (Dias de Melo – O Autógrafo)



MOÇAMBIQUE



                                    Então o velho improvisa um xipefo, solta um pano vermelho. Apanha um ramo de palmeira e inventa uma vassoura. Varre o interior do machimbombo enquanto canta. O miúdo desfolha os cadernos sorridente. O velho se recriava, igual ao seu antigo emprego. E é como se o próprio Muidinga estivesse sentado na estação, aguardando o próximo comboio. Tuahir vai juntando os resíduos do queimado numa velha tampa. Depois, sai do autocarro e espalha as cinzas pela terra em volta.
-          O que está a fazer, tio?
-                     Estou semear este adubo. É para amanhã quando chover. Continue, filho. Não pare de ler. (Mia Couto – Terra Sonâmbula)[12]



BRASIL



                                   Seu  Joselito Massaranduba e o moço Paulo Cotovia encontraram-se sozinhos na Avenida. Onde teriam ido parar o padre santarrão, por fora bela viola, por dentro pão bolorento, e a dona ainda bem apetecível? Não lhe fez mossa  o fato de que houvessem ido embora sem se despedir, acostumados que estavam ao trato de gente desconsiderada, forreta, nem muito obrigado, nem dez tostões para matar o bicho. Seu Joselito, estando convidado para o caruru de Jacira, boa camarada, arrastou consigo o colega para a pagodeira.
-          Vai ser do balacobaco.
Laroiê, lá se foi Exu numa cambalhota: trancou a porta do arco-íris.
Oyá já se tocara cidade adentro, cidade afora, cangalha às costas, Eparrei!   (Jorge Amado – O Sumiço da Santa)[13]















[1] Nesse tempo, o país chamado Portugal já aprimorara tanto a sua língua, que já tinha grandes poetas. O da citação chamava-se Luís de Camões, e até hoje é considerado um dos maiores poetas da História (Nota da autora)
[2] FREYRE, Gilberto. Casa Grande e Senzala. São Paulo: Círculo do Livro, não informado o ano nem ed. 587 p. (pag. 180)
[3] DILTHEY, Wilhelm.  “A compreensão dos outros e das suas manifestações de vida”. In: GARDINER, Patrick. Teorias da História. 3 ed. Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1984, pp. 267-270.
[4] Há que se lembrar que, em termos de Humanidade, há apenas uma raça neste planeta: a Raça Humana. (Nota da Autora)
[5] CÉSAR, Guilhermino. Historiadores e Críticos do Romantismo. São Paulo: EDUSP, 1978. 193 p.
[6] CÉSAR, Guilhermino. op. cit., p. XV a XXXII.
[7] CÉSAR, Guilhermino, op. cit., p. XXXIII.
[8] CÉSAR, Guilhermino, op. cit., p. XXXiX.
[9] CÉSAR, Guilhermino, op. cit, p. LV
[10] Voltando ao tema do Indianismo, gostaríamos de acrescentar uma informação. Viajando pela América do Sul, numa livraria de Quito/Equador, pedimos os melhores romances equatorianos. Dentre outros, adquirimos um romance intitulado “Cumandá”, do autor Juán León Mera. Tal romancista era contemporâneo de José de Alencar, e tão Indianista quanto ele. “Cumandá” se parece muito com “O Guarani”. As idéias que rolaram na Europa por aqueles tempos, com certeza não atingiram somente o Brasil. (Nota da autora)
[11] CÉSAR, Guilhermino, op. cit. P. LIV.
[12] COUTO, Mia. Terra Sonâmbula. Rio: Nova Fronteira, 1993. 245 p. , p. 167
[13] AMADO, Jorge. O Sumiço da Santa. Rio: Recorda, 1988. 438 p.

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