CONSIDERAÇÕES SOBRE A HISTÓRIA DA LÍNGUA E DA
LITERATURA PORTUGUESAS NO BRASIL – DE
COMO SE CRIAM AS DIFERENÇAS ENTRE BRASIL,
PORTUGAL, (E MOÇAMBIQUE)ATÉ SUA DIVISÃO PELA ACADEMIA
Por Urda Alice Klueger (Blumenau, SC)
Esta é
uma parte tão interessante da História, que pensamos que o melhor jeito de conta-la
é fazendo de conta que é uma história de fadas. Portanto, vamos lá:
Era
uma vez uma grande terra, onde se falavam inúmeras línguas. Eram tantas, que
até hoje ainda não sabemos quantas. Só assim de cabeça, podemos citar algumas
dúzias delas, e eram línguas de povos que se chamavam Tupinambás, Tabajaras,
Guaranis, Caiapós, Tupis, Xinguanos, Tapuias, e muitos outros.
Também
era uma vez um pequeno/grande país chamado Portugal, lá do outro lado do mar,
que falava uma língua que já vinha lá muito do passado, de antigas tribos
indo-européias, e que depois fora bem e bem temperada por invasores chamados
Romanos, que, por sua vez, já haviam copiado muito da sua língua de umas gentes
mais longínquas ainda, chamadas de Grega.
Estava
uma terra lá e uma terra cá, e uma não sabia da outra, e cada qual falava do
jeito que queria. Foi então, no anoitecer do século que chamamos de XV, que
aquela gente do tal Portugal, que já andava a experimentar a andar “por
mares nunca dantes navegados”[1],
acabou por atravessar o oceano ao qual chamamos de Atlântico, e veio ancorar
seus navios bem aqui na terra de grande riqueza de línguas e, aos poucos, aos
pouquinhos, apoderou-se dela.
Como
é que alguém pode se apoderar de uma terra? A gente já estudou isso na escola:
o povo invasor se apodera da economia, transforma os habitantes em escravos,
impõe seus costumes, suas leis, sua religião ... e sua língua. Para quem não
sabe muito bem como isto funciona, nós aconselhamos ler o livro “Casa Grande e
Senzala”, de um antropólogo chamado Gilberto Freyre, ou outro que se chama “As
veias abertas da América Latina”, de um escritor chamado Eduardo Galleano.
Vamos
considerar, porém, que todos nós já sabemos disto, isto é, que o povo português
chegou até aqui aonde nós vivemos e que tomou conta desta nossa terra tão rica
em povos e línguas.
No
começo, não foi nada fácil: como é que alguém podia se entender com tantas
línguas ao mesmo tempo? Temos que pensar que os portugueses eram só alguns, só
um pouquinho, só um pequeno povo que morava lá do outro lado do mar e que
mandava alguns representantes em audaciosas caravelas, e que os habitantes
daqui da nossa terra eram muitos milhões, povos e povos por todos os recantos,
povos que tudo sabiam a respeito de como viver harmoniosamente com a fartura da
natureza que os envolvia gratuitamente, povos sábios, milenares, que viviam
muito bem, obrigada. A diferença entre esses nossos povos e o outro pequeno
povo que veio, é que o recém-chegado tinha pavorosas armas de fogo, que não
davam a menor chance de defesa aos muitos povos nativos. E a submissão pela
força (o que não é uma submissão real) acabou acontecendo.
Aqueles
milhões de pessoas submetidas, porém, falavam tantas línguas, tantas línguas!
Como alguém se entender num país assim, onde cada um falava de um jeito? Só
havia uma forma de todos se entenderem: criar-se uma língua comum. E como os
dominados eram em muito maior número que os dominadores, criou-se primeiro uma
língua mais do jeito deles: a chamada “língua geral”, um jeito de falar
que chamamos de tupi-guarani, e que era um grande somatório dos muitos tipos de
falas que havia por aqui. Vamos colocar aqui como foi isso, na opinião séria de
um antropólogo conceituado: [2] “O tupi-guarani
aproximou entre si tribos e povos indígenas, diversos e distantes em cultura, e
até inimigos de guerra, para, em seguida, aproximá-los todos do colonizador
europeu. Foi a língua, essa que se
formou da colaboração do culumim com o padre, das primeiras relações sociais e
de comércio entre as duas raças, podendo-se afirmar do povo invasor que adotou
para o gasto ou o uso corrente a fala do povo conquistado, reservando a sua
para uso restrito e oficial. Quando mais tarde o idioma português – sempre o
oficial – predominou sobre o tupi, tornando-se, ao lado deste, língua popular,
já o colonizador estava impregnado de agreste influência indígena; já o seu
português perdera o ranço ou a dureza do reinol; amolecera-se num português sem
rr nem ss; infantilizara-se quase, em fala de menino, sob a influência do
ensino jesuítico de colaboração com os culumins”.
Pensamos
que o nosso grande Gilberto Freyre deixa bem claro o que aconteceu: primeiro,
fez-se uma grande língua nova, mistura das muitas outras, onde todos podiam se
entender, e depois implantou-se no país de língua homogênea uma outra língua
que acabaria homogênea: a do colonizador. Nosso antropólogo também deixa bem
claro que alguma coisa aconteceu aí no meio – a língua portuguesa que acabou tomando
conta do Brasil já era um português novo, já tinha outra pronúncia, outra
entonação, outras palavras.
Como
foi que a língua portuguesa do Brasil foi ficando diferente da língua
portuguesa de Portugal? Achamos que é muito fácil imaginar o que aconteceu, e
aí pedimos a bênção e a licença de Dilthey para justificarmos nossa imaginação:
“(...) Revivenciar é criar seguindo a
linha dos acontecimentos. Assim progredimos com a História Contemporânea, com
um acontecimento ocorrido num país distante ou com algo que acontece na alma de
um ser humano que nos está próximo. A revivência é completa quando o
acontecimento, depois de passar pela consciência do poeta, do artista ou do
historiador, fica para sempre ante nós, fixado numa obra. (...)”[3]
Autorizados
por Dilthey, vamos imaginar. Como não conhecemos todo o vocabulário de
Portugal, na época, vamos nos reportar ao que comem hoje os bebês portugueses: papas. É possível que no século XVI
eles também comessem papas, é possível que o alimento de um bebê português,
naquele século, tenha tido outro nome. O que podemos saber, de certeza, é que
os bebês portugueses nunca comeram mingau.
Mingau é coisa americana, palavra antiga das gentes antigas que moravam por
aqui, era comida de bebê de índio, comida de curumim, comida que os nossos
bebês brasileiros comem hoje. Daí para imaginar com a velocidade de um raio,
fica muito, muitíssimo fácil: um dia, nasceu um primeiro bebê novo no Brasil,
gente de outra etnia[4],
filho de um português, e pela primeira vez essa criança alimentou-se de mingau,
sem nem saber que lá do outro lado do Oceano os seus antepassados, quando
bebês, eram fiéis comedores de papas. E este nosso primeiro bebê de
antecedentes portugueses deu-se muito bem com o mingau, e não houve nada na sua
vida que o levasse, algum dia, a interessar-se por papas. Era o primeiro
momento da primeira cisão entre a língua portuguesa que se falaria no Brasil e
a que se estava falando em Portugal. Pensamos que Dilthey aprovaria este nosso
raciocínio.
E
vieram outras palavras, outros dias, outros séculos. A língua portuguesa falada
no Brasil e a falada em Portugal mais e mais se diferenciavam, tanto em
vocabulário, quanto em expressão e em sotaque. Observar tal era uma questão de
ir-se ou vir-se pelo oceano, a escutar o que se falava em cada uma das margens
de língua lusa. Era uma coisa tão visível (e ouvível), que só não percebia quem
não queria. Nesse tempo, ainda éramos apenas uma colônia, e quem, por aqui, já
estava a fazer literatura, era considerado como escritor português, e como tal
classificado. Vejamos o que diz Guilhermino César a respeito: “Um sentimento nacional esperto havia,
contudo, madrugado com o primeiro poeta nosso, em idade cronológica, que
publicou livro de versos – o baiano Manuel Botelho de Oliveira, cujas silvas,
na Ilha da Maré, respiram o ar da
terra nativa, revelam a exuberância tropical, os costumes e peculiaridades da
América Portuguesa. O mesmo acontece aos que lhe sucederam. Embora se apartem,
por esse lado, dos modelos metropolitanos, a dependência política fez com que
todos eles fossem considerados portugueses; ninguém p
rocurou, todavia
discernir nos diferentes grupos, e em cada autor em particular, o vinco
psicológico e a dicção divergentes, a cor local sul-americana, garridamente
nossa (...) Mas o primitivismo, a força das coisas brasileiras, não marcou
somente, desde cedo, o espírito dos naturais da terra; os estrangeiros nela
radicados experimentaram o mesmo sortilégio.” [5]
Temos
aí, portanto, não apenas diferenças na língua, mas na própria literatura, que “respira o ar da terra nativa, revela a
exuberância tropical, os costumes e peculiaridades da América Portuguesa.” Já não era mais a simples questão das papas e
do mingau: a literatura trazia no seu bojo diferenças maiores, dizia sobre a
farinha de trigo das papas e da farinha de mandioca do mingau, já não permitia
comparar Portugal e sua colônia d’Além-Mar, fazer das duas uma coisa só, ou de
uma a continuação da outra: outros eram os costumes; criava-se uma língua
diferente; e a literatura era a maior prova de que tudo isso estava
acontecendo.
Nesse
tempo, finais do século XVIII e começos do século XIX, começa a haver, na
Europa, eruditos que passam a se preocupar em estudar a literatura portuguesa,
a literatura ibérica ou a literatura do sul da Europa. Podemos citar Friedrich
Bouterwek, alemão (1765-1828 – principal obra: “A História da Poesia e da
Eloqüência Portuguesa”), Simonde de Sismondi, francês (principal obra publicada
em 1813 “De la littérature du Midi de l’Europe”) e Ferdinand Denis, francês
(1798-1890 – principal obra: “Résumé de
l’Histoire Littéraire du Portugal, suivi du Résumé de l’Histoire Littéraire du
Brésil”)[6] . Com
tais estudos, começam as indagações: por que inserir na literatura européia uma
outra literatura, que tinha já tão fortes as cores americanas, que já tinha
outros tons que, decididamente, não eram mais ibéricos? Muitas coisas são
sugeridas, muita discussão tem início. Ferdinand Denis chega a enfatizar sobre
a “necessidade de nos apegarmos um pouco
mais afetivamente ao país, por via da adesão à temática do Indianismo. E foi
isso o que ele fez (...), ao aconselhar que nossos autores olhassem mais para
dentro de si mesmos e procurassem estudar cuidadosamente a natureza americana,
o nosso barbarismo, o nosso primitivismo, em busca de características originais
inexploradas”[7].
Estava-se
no Império, e a voz de Ferdinand Denis repercutiu imediata e intensamente no
nosso meio intelectual carente de guias. As experiências começam. ““As
Brasilianas” de Araújo Porto Alegre, com vistosos penachos de tucanos,
muita paisagem ciclópica e coloridos berrantes, abrem a vereda às passagem dos
índios de Gonçalves Dias e de Alencar” [8]. Portugal não gosta dessa coisa de se
levar para o papel vocábulos, locuções e modos de dizer típicos do Brasil. “Foi sobretudo com o autor de O Guarani que a inteligência portuguesa
começou a sentir o abismo que o tempo cavara entre as duas literaturas”[9]. Não se torna
difícil para nós, brasileiros, que lemos os autores portugueses e os nossos, e
que já estivemos no país deles e vivemos no nosso, perceber essa funda divisão
que existe entre as nossas línguas e as nossas literaturas.[10]
Citando
mais uma vez Guilhermino César: “O nosso
homem comum já não lê os autores portugueses, simplesmente porque já não os
entende, como os entendia outrora, quando a linguagem fixada pela norma culta
era a mesma. Atualmente, não só a norma
culta brasileira se distancia bastante da portuguesa, como principalmente o consumidor
médio, para quem a literatura é fruição descuidada, sem maiores compromissos
críticos, já repele toda obra que o obrigue a tomar contato com uma outra
realidade expressa em preferências vocabulares, entoação e colocação
discrepantes daquelas a que está habituado”[11].
Diante da análise que até aqui fizemos,
acreditamos que fica muito clara a forma como aconteceu a cisão entre a língua
portuguesa do Brasil e a de Portugal. Iríamos mais longe: de alguma forma
parecida, essa cisão também teria se dado nos outros países de língua portuguesa
que existem pelo mundo. Tivemos a oportunidade de conhecer um deles,
Moçambique, na África Austral, e pudemos verificar que lá há uma terceira
língua portuguesa: é um erro pensar-se que em Moçambique fala-se Português de
Portugal – em Moçambique fala-se Português de Moçambique. Também lá naquela
terra, algum dia, nasceu uma criança de etnia portuguesa que já não se
alimentou de papas – alguma outra palavra havia para algum outro alimento que
criou e tornou forte aquela criança de origens portuguesas, e lá também se iniciou
uma cisão.
Procuraremos
exemplificar o que afirmamos, transcrevendo, abaixo, breves trechos de romances
contemporâneos produzidos nos três países citados. A diferença não precisará
ser explicada – ela se fará por si só. Seria possível entrarmos, agora, em
longa discussão estética sobre as Literaturas Portuguesas, mas já não é o
espaço para tal. Os textos abaixo são bastante elucidativos.
PORTUGAL
Comigo
é diferente. Dei-te, a propósito, as respostas evasivas e sintéticas que te dei
sem, afinal, nada dizerem. A verdade é esta: sou mais nova do que tu. Preciso
amadurecer mais para produzir coisa capaz de aparecer, de cara lavada, aos
olhos das gentes. Aconteceu o sabido e, afinal, não foi mau. Mas estamos aqui
parados a dar à língua e a ver a gente passar no gozo desta noite de Verão em
pleno Inverno. Vamos entrar. Antes deixa-me dizer-te: com a tua idade e
reconhecendo nos teus escritos qualidade para virem a público quem para tanto
tem indiscutível autoridade, está mesmo na altura certa de começares a
aparecer. E convence-te: não há nenhum mal, não é nenhuma ofensa aos teus
brios, aceitar apoio de quem, sem qualquer propósito mesquinho de quem no-lo
queira dar. Um favor? Sem dúvida. Mas um favor não é nenhuma ofensa, além de
que qualquer favor com outro favor se paga. (...) Por outro lado (ia dizer
”vindo de onde vieste, filho de Pai pobríssimo, pescador e cavador, tu próprio,
nos teus princípios, lado a lado com teu Pai, também pescador e cavador, mesmo
com a riqueza vinda de um qualquer Tio imigrante(...) (...).” (Dias de Melo – O
Autógrafo)
MOÇAMBIQUE
Então o velho improvisa
um xipefo, solta um pano vermelho. Apanha um ramo de palmeira e inventa uma
vassoura. Varre o interior do machimbombo enquanto canta. O miúdo desfolha os
cadernos sorridente. O velho se recriava, igual ao seu antigo emprego. E é como
se o próprio Muidinga estivesse sentado na estação, aguardando o próximo
comboio. Tuahir vai juntando os resíduos do queimado numa velha tampa. Depois,
sai do autocarro e espalha as cinzas pela terra em volta.
-
O que está a fazer, tio?
-
Estou semear este adubo. É para amanhã quando
chover. Continue, filho. Não pare de ler. (Mia Couto – Terra Sonâmbula)[12]
BRASIL
Seu Joselito Massaranduba e o moço Paulo Cotovia
encontraram-se sozinhos na Avenida. Onde teriam ido parar o padre santarrão,
por fora bela viola, por dentro pão bolorento, e a dona ainda bem apetecível?
Não lhe fez mossa o fato de que
houvessem ido embora sem se despedir, acostumados que estavam ao trato de gente
desconsiderada, forreta, nem muito obrigado, nem dez tostões para matar o
bicho. Seu Joselito, estando convidado para o caruru de Jacira, boa camarada,
arrastou consigo o colega para a pagodeira.
-
Vai ser do balacobaco.
Laroiê, lá se foi Exu numa
cambalhota: trancou a porta do arco-íris.
Oyá já se tocara cidade
adentro, cidade afora, cangalha às costas, Eparrei! (Jorge Amado – O Sumiço da Santa)[13]
[1] Nesse
tempo, o país chamado Portugal já aprimorara tanto a sua língua, que já tinha
grandes poetas. O da citação chamava-se Luís de Camões, e até hoje é
considerado um dos maiores poetas da História (Nota da autora)
[2] FREYRE,
Gilberto. Casa Grande e Senzala. São Paulo: Círculo do Livro, não informado o
ano nem ed. 587 p. (pag. 180)
[3] DILTHEY,
Wilhelm. “A compreensão dos outros e das
suas manifestações de vida”. In: GARDINER, Patrick. Teorias da História. 3 ed.
Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1984, pp. 267-270.
[4] Há que
se lembrar que, em termos de Humanidade, há apenas uma raça neste planeta: a
Raça Humana. (Nota da Autora)
[5] CÉSAR,
Guilhermino. Historiadores e Críticos do Romantismo. São Paulo: EDUSP, 1978.
193 p.
[6] CÉSAR,
Guilhermino. op. cit., p. XV a XXXII.
[7] CÉSAR,
Guilhermino, op. cit., p. XXXIII.
[8] CÉSAR,
Guilhermino, op. cit., p. XXXiX.
[9] CÉSAR,
Guilhermino, op. cit, p. LV
[10]
Voltando ao tema do Indianismo, gostaríamos de acrescentar uma informação.
Viajando pela América do Sul, numa livraria de Quito/Equador, pedimos os
melhores romances equatorianos. Dentre outros, adquirimos um romance intitulado
“Cumandá”, do autor Juán León Mera. Tal romancista era contemporâneo de José de
Alencar, e tão Indianista quanto ele. “Cumandá” se parece muito com “O
Guarani”. As idéias que rolaram na Europa por aqueles tempos, com certeza não
atingiram somente o Brasil. (Nota da autora)
[11] CÉSAR,
Guilhermino, op. cit. P. LIV.
[12] COUTO,
Mia. Terra Sonâmbula. Rio: Nova Fronteira, 1993. 245 p. , p. 167
[13] AMADO,
Jorge. O Sumiço da Santa. Rio: Recorda, 1988. 438 p.
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