Por Von Steisloff
Aquele repetido ritual prestimoso do encanecido homem ia caminhando para compor um cenário quase picaresco, bem junto às imponentes portas do Metropolitan Opera House. Ali no coração da ilha de Manhattan, em noites das temporadas dos grandes concertos, as negras limusines estacionadas eram submetidas ao ritual de limpeza discreta, quase carinhosa, por meio do enorme espanador confeccionado em penas de avestruz africano. Observadores maldosos poderiam até insistir que o ritual era mesmo de um pícaro, mas que tinha utilidade e era rendoso para o velho homem no papel de flanelinha, isso todos reconheciam como uma outra verdade!
Cada chauffeur que aguardava o rico passageiro ao término das noites de grande gala, não se prestaria a ficar tirando o pó superficial do longo e lustroso veículo. Preferiam deixar o trabalho por conta daquele estranho homem, que, no seu mutismo, nem sequer agradecia aos centavos pagos à guisa de propina da providencial limpeza já rotineira.
Eram dezenas, por assim dizer, às vezes, quase centenas de veículos que o senhor grisalho ia, na sua evidente pachorra, espanando, mesmo sem autorização ou nada pedir. Mas recebia, sempre apático, as tilintantes moedas de cinqüenta centavos de dólar colocadas em suas engelhadas mãos. Imagine-se a quantia já amealhada pelo misterioso homem das brancas barbas nas repetidas noites de ópera em New York!
Quando em vez, apenas de soslaio, o grisalho do espanador observava os esnobes casais que desciam das tentadoras, espaçosas e exclusivas limusines. Os bem trajados e elegantes ocupantes adentravam rápidos e sorridentes, sumindo na escuridão das imponentes portas do Metropolitan Opera, sem nunca olhar para o humilde serviçal que, afinal – na sua importância –, portava um espanador das Áfricas! Quando muito, os gentilhommens, de braços dados com suas damas, cumprimentavam o porteiro de libré. Este, mais parecendo general de espalhafatosa vestimenta, nos sorrisos às escâncaras, fazia entrega em contrapartida do custoso ingresso, um fino libreto para a noite de arte e encantamento.
Naqueles furtivos olhares oblíquos direcionados aos elegantes casais, o tira-pó de limusine não conseguia conter um certo sentimento de quase inveja pecaminosa. Mas não passava de um simples pecadilho, para alento de suas noites de trabalho. Mas, justiça se faça: a quase inveja também não passava de um estímulo para que ele se mantivesse sempre firme na busca do seu sonho, há tanto tempo anelado. “Um dia eu também consigo!” – repetia, anexando em si a obstinação de tonalidade psicótica – “Um dia eu também consigo!” Será que o aparente pobre homem estaria desejando comprar mesmo uma limusine ao preço, por baixo, de cerca de meio milhão de dólares?! Se bem que, na verdade, um número considerável daquelas imponentes limusines eram de serviço de frete, apenas para a exibição humana e com a finalidade de ostentar, ao menos por uma noite, uma provável riqueza, ou fingir uma fineza inexistente. Isso, essa qualidade humana e suas manias, o velho limpador com espanador já tinha conhecimento. Quem sabe, por isso, ele também achasse possível e conveniente ser confundido, pelo menos por uma noite, como gente fina, de poder financeiro ou homem também das artes?
No mais das vezes, durante a tarefa do espanar as dezenas de carros por noite, o homem, no seu mutismo, ficava imaginado como tinha sido árdua a caminhada até aquele ponto para poder culminar um sonho de infância. E como tinha sido longa a viagem! “Mas – pensava com a mente ainda ágil para os quase oitenta anos – estou atingindo o grand monde!” Entretanto, o que mais o impressionava era mesmo aquele ponto no centro de Manhattan, onde agora chegara depois da viagem há meses iniciada no distante país. Nem mesmo os sofrimentos morais recém-surgidos foram capazes ou tiveram poder de sopitar-lhe a vontade para materializar-se naquele local, vestíbulo para um sonho de tempos passados.
Para os chauffeurs, todos enfatiotados na demorada espera dos patrões, poderia até ser motivo de comodismo e satisfação ficar olhando as caríssimas limusines ser tão bem tratadas pelo espanar daquele homem com seu instrumento de penas de avestruz vindas da África! Sabia-se em New York que um espanador daquela categoria deveria custar uns duzentos dólares! Talvez por isso eram pródigos, dando sempre, nas repetidas sessões de limpeza, a gorjeta ao estranho e conveniente homem de todas as noites.
Na esperança, talvez, de uma companhia agradável para a longa viagem até o destino, o dono do caminhão tinha concordado em dar aquela carona ao estranho homem, mas ao custo combinado de vinte reais até o Rio de Janeiro. Figura impressionante pela brancura da barba e cabelos esquálidos, que quase escondiam os ombros descarnados. Ledo engano do esperançoso caminhoneiro. O ocasional acompanhante revelou-se de um mutismo irritante. Nos primeiros cem quilômetros, bem perto de Cristalina, no Estado de Goiás, apenas uma ação de concordância como resposta. O grisalho ao lado tinha concedido à guisa de atendimento ao pedido para baixar o vidro da janela. Saíram bem cedo, mas o dia estava quente e a cabine metálica apresentava o calor típico da anteporta do inferno.
O vento que fustigava a basta cabeleira tinha para o passageiro uma conotação de carinho natural que ele necessitava. Afinal, todo o seu bem querer da atribulada vida tinha ficado para trás, na capital da República. Nada mais deveria lhe prender ao passado. Só os pensamentos inevitáveis continuavam a infringir-lhe o sofrimento psicológico em patamares de terríveis angústias. Ah, as perdas! A tentativa do esquecimento dos entes queridos! A tortura das saudades! E o tão acostumado conforto do homem classe média bem superior? Não lhe doía também largar tudo? Daí o impenetrável silêncio a que se impunha. Era o calar como uma penitência pelo sofrimento impingido, também, aos seus familiares então abandonados. Entretanto, a sua mais profunda dor era a decepção com o gênero humano em geral. Na sua concepção muito pessoal, íntima e por assim dizer filosófica, o bicho homem era o único projeto inviável de Deus!
Apenas uns três ou quatro meses tinha se afastado de tudo e como não mais podia ficar na cidade, preferia sair sem aviso; assim como se tivesse morrido para o mundo. Pretendia ser mais um anônimo entre os milhares que existem na categoria de moradores de rua; sem casa, sem bens, sem identidade; nada que o enquadrasse novamente na faixa dos cidadãos normais com renda certa e residência em local certo, sabido e determinado. Se sua vontade fosse cumprida desapareceria mesmo depois de morto; só restariam as cinzas impessoais espargidas em qualquer lugar, pouco importaria. Coitado! De passado honrado, tinha ultrapassado os limites de gastos familiares e chegara ao ponto final dos ilícitos fiscais. Estava sendo envolvido, cada vez mais, no mundo perigoso e desgraçado da delinqüência perante a tenebrosa Receita Federal!
No treinamento a que se impôs, aquele estranho ser passou pelos perigosos caminhos da despersonalização. A rejeição da identidade própria. Um alheamento proposital do concreto por não mais desejar uma realidade incômoda, sobretudo desagradável. Para isso, para alienar-se, abraçara um treinamento com disciplina na exata medida dos pontos que visava: passar por morto ou amnésico. Furtar-se dos traumas financeiros, terminar os poucos anos restantes da vida sem atropelos emocionais. E o mais importante de tudo, materializar aquela sua fixação por uma quimera invasora desde a infância e que não se apagou até na hoje distante juventude. Este desejo, antes da morte por sua cardiopatia grave, era, por assim dizer, o último objetivo que reacende, e emerge, com força e total descontrole, para o qual o velho partia agora em aventurosa conquista.
Além de outras esquisitices, costumava fingir para os conhecidos ser tomado por surtos de esquecimentos de fatos e ocorrências óbvias. E, mais ainda, vinha fazendo uma meticulosa série de registros mentais de cunho técnico. Algo que era de extrema significação para materializar aquele sonho mais almejado: estudar tudo que se relacionasse com as rotinas e negócios da Petrobras! Para esse propósito já tinha passado longas noites no site da daquela empresa do ramo do petróleo. Realizava, insone, passeios virtuais por dentro dos navios petroleiros, estudando os respectivos detalhes mais escondidos dos corredores, praça das armas, todos os acessos ou vias de escape e inclusive o posicionamento das centenas de câmeras de vigilância espalhadas estrategicamente nos navios.
O Armazém 18 era-lhe um local mágico por especiais e antigas emoções! Afinal, naquele mesmo local, no antigo portão 18, há cerca de sessenta e seis anos, algo de fantástico tinha acontecido com o então menino, agora um claudicante senhor de cabelos nevados. Mas essa coincidência de local de atracação do Netumar não impediu que o maduro e disciplinado senhor das barbas brancas se descuidasse de aprofundar as pesquisas. Com essas salvaguardas de dados e informações objetivas, o velho homem considerava-se pronto para penetrar sorrateiramente no sofisticado petroleiro, para fazer a viagem na qualidade de passageiro clandestino. Só assim daria início aos primeiros passos para realizar a sua íntima quimera. A sua particular fantasia acalentada há tantos anos e que só poderia se efetivar em New York.
Como um sorrateiro pretendente a passageiro clandestino poderá adentrar, sem ser notado, em um navio com as características de segurança do Netumar? Essa angustiosa questão vinha martelando a consciência e a tranqüilidade do futuro viajante clandestino, até que uma formidável, mas enganosa, solução surgiu como por milagre. “Ora! – imaginou com otimismo irresponsável – ”e por onde sempre subiram os ratos nos navios?" Será que um abatido homem beirando oitenta anos poderia fazer o mesmo caminho dos ratos de cais? Subir, lépido, na escuridão protetora, as grossas cordas da amarração para galgar esconderijo no Netumar? Essa crucial questão vinha sendo psicologicamente desprezada com o propósito de não melar o entusiasmo do trôpego internauta. “Cada coisa em seu momento!” – deveria ruminar em silêncio enquanto dava andamento às pesquisas fazendo verdadeiro tour virtual – “Cada coisa em seu momento!” Após muitas noites de “navegar” na Internet, expressando para si um sorriso de irônica vitória no rosto e boca encarquilhados, o velho homem conseguira localizar o ponto certo onde se daria a toca-esconderijo para a viagem de quinze dias, partindo do Rio de Janeiro até a atracação no porto de New York. Isso sem ser descoberto, com possibilidades de uma boa alimentação, duchas quentes, e até observar os tripulantes nas tratativas e conversas para troca de turnos e mais o que possa interessar a um passageiro clandestino. Sem o perigo de ser flagrado e lançado de volta na água, conforme a tradicional, embrutecida e consuetudinária Lei do Mar!
Naquela tarde chuvosa do dia 19 de junho, o frio na avenida Rodrigues Alves, logo à frente, indicava que a noite não seria das mais agradáveis. Era um dia úmido típico anunciado para o Rio de Janeiro. Pararam, finalmente, bem defronte ao Armazém 18 do cais do porto! Apenas por um aceno antipático e demonstrando enfado tal como uma continência militar, o velho agradece enquanto o caminhoneiro, talvez aliviado da péssima carona concedida, continua em direção da praça Mauá. Esqueceu, ou fingiu-se desmemoriado, de pagar o preço da carona? Por isso, com muita razão, apregoam os entendidos das coisas humanas: “Como é difícil ser ético em tempos das vacas magras”.
Ali ele espera a oportunidade da escuridão que se aproxima para entrar na área do cais. “Bem atrás do alto muro e do armazém” – imaginou com emoção contida – “deverá estar atracado o Netumar!”
A noite avançava e o senhor permanecia firme encostado ao portão. Não poderia adormecer nem que quisesse. Os ruídos dos guindastes embarcando no Netumar os contêineres e suas lembranças de menino são mais poderosas que o sono. Com emoção do silêncio na alma, ele remonta a pensamentos distantes no tempo! Naquele mesmo ponto, em agosto de 1941, o então garoto tinha vivido a aventura de sua primeira viagem por mar! Era a Segunda Guerra que se aproximava e as tropas brasileiras tinham sido deslocadas para as praias do Nordeste. Não se sabia o destino; era segredo de Estado. Ao velho, agora, restava relembrar e reviver imagens do local, seus pais, alguns muitos alegres, outros angustiados com as incertezas de um mundo que anunciava entrar em convulsão. Daquele agosto de 1941 em diante, a vida arrastou os meninos de então, os jovens, e o agora provecto homem, por acidentados caminhos. O seu mundo e os sonhos ingênuos de realizações mágicas se foram desagregando no desânimo, no cansaço e na decepção com toda a humanidade na louca caminhada. “E agora?” – pensava tristonho enquanto esperava o momento para galgar o muro em busca do seu último sonho – “E agora?” Será que tudo tinha se perdido para ele? Os seus bens? Os seus queridos? O seu nome? Nada mais lhe restava? “Não!”– imaginava resoluto na friíssima escuridão na qual se escondia da cruel realidade de sua vida particular – “Não! Quero aliviar o meu anelo e estou quase em New York!” – balbuciou para si, emocionado, como um desvairado que acredita no impossível, na obstinada crença irracional diante do avassalador abandono auto-imposto.
Antes da aurora, ainda sob a proteção do negrume na frígida madrugada, tal como um atleta terminal em penúltimo esforço para a chegada na sua meta, eis o homem dentro do pátio do porto. A poucos metros, menos de trinta talvez, lá está atracado sob intensa luz matutina o Netumar! Mas os cabos de amarração parecem-lhe, então, de inclinação exagerada. Imaginava que seria fácil, na mesma agilidade tal como um rato, subir no costado. Em vez de desanimar-se com a decepcionante constatação que não mais conseguiria seguir o plano criteriosamente idealizado, prefere cuidar-se para não ser surpreendido à luz do dia que surge. E assim vai ficando até que uma sugestão caia do céu; como inexplicável milagre, lhe dê uma idéia de como entrar no navio sem rastejar pela íngreme corda até o topo do costado rubro do ambicionado navio. Alguns minutos se passam, até que as vozes de dentro do armazém são perfeitamente audíveis: mas uma voz diferente, plena de sotaque estrangeiro, pode ser destacada: “Vocês são uns calhordas! Isso é o mesmo que uma conjuração!” Era a voz do encarregado dos suprimentos de boca que reclamava contra a má vontade dos estivadores para levar para bordo a carga. O preocupado empresário, um turco, não se lembrava que aquele momento era sagrado para os brasileiros? A seleção brasileira estava em campo na Venezuela disputando a Copa das Américas, ora bolas! Era uma espécie de greve relâmpago por, pelo menos, noventa minutos. O turco estava desesperado e continuava gritando: “Vagabundos! Calhordas!”
Aquela conjuração era o milagre dos céus que o velho homem escondido esperava. A falta de braços indicava-lhe a oportunidade para aproveitar da confusão reinante aos primeiros acordes do hino nacional, para aproximar-se do turco e oferecer seus préstimos, para ajudar carregar até o interior do Netumar a bendita carga. O turco, meio atordoado pela balburdia dos gritos de “Pra frente Brasil!”, só perguntou, sem mais delongas, se o estranho e obsequioso velho conhecia os caminhos até as duas bodegas do Netumar. Confirmado que conhecia com detalhes os caminhos para onde ia a carga de alimentos, o turco aceitou a oferta e pôs nas mãos do novo estivador um macacão cor laranja para que iniciasse, apenas os dois, a subida da carga.
A um grito do turco, o marinheiro aciona o dispositivo que abre o portaló ao nível do cais por onde devem entrar. Por ali, em carrinhos de mão, vão levando as caixas das variadas carnes, as das frutas, as das dúzias de ovos. Para espanto e secreta satisfação do improvisado estivador, até caixas de finas cervejas eram embarcadas! O velho agora metido no seu macacão profissional não tinha dificuldades para localizar, em pontos extremos, as bodegas onde deveria estar cada mercadoria selecionada pelo turco. Era um daqueles turcos-brasileiros, dono da pequena empresa internacional de suprimentos para navios. Por cada corredor do complexo caminho, até a bodega principal onde se encontra o refeitório geral, o turco prefere seguir atrás, para não se perder do velho com seu carrinho abarrotado. O turco sente-se confiante, pensando que o velho é um ex-embarcadiço e presta serviços esporádicos por amor às coisas do mar. O rápido elevador vai direto ao terceiro deck sem parada. O último deck onde serão descarregadas as mercadorias fica a aproximadamente uns quinze metros do nível da água! Ninguém os segue pelos caminhos no interior do navio. A marujada e os comandos estão desviados à frente dos telões de televisão. Enfim, chegam ao destino com os últimos carregamentos. Naquele ambiente limpo, com as câmaras frigoríficas, os refrigeradores, pias, mesas e fogões, tudo em aço escovado, o velho imagina com seus botões: “Era isso mesmo que eu esperava! Nada diferente!” – não só pensou, mas sorriu, sem-cerimônia, para surpresa de um turco curioso com a atitude do seu estivador ocasional – “Ali está minha toca como um útero de aço, de onde serei parido para o meu sonho!”. O velho olha para cima da parede metálica e vê o local vazio, onde a manutenção da Transpetro deveria ter instalado um aparelho de ar condicionado e que não foi efetivado. Tudo isso, essa falha da tradicional e inescrupulosa engenharia de manutenção da empresa, o velho já sabia via Internet. Por isso, sorriu por primeira vez nos últimos cinco dias da viagem de Brasília até o Rio de Janeiro.
Nas intermináveis noites daquele único isolado passageiro, o velho de magérrimo corpo tentava de ajustar inutilmente as nádegas ao apoio de ferro, para tornar menos torturante o trajeto até a meta intermediária antes da realização do sonho de tantos anos. No silêncio do imenso oceano, antes de chegar ao porto de New York, o clandestino ficava cotejando os pedaços da própria história, as razões e os porquês tinha se fixado naquele sonho absurdo: seria por que na infância, na juventude e na fase adulta sempre ouvia, em êxtase, as grandes orquestras e as óperas através da Voz da América de Washington ou a BBC de Londres? Agora não tinha mais retorno; seguia para realizar o anelo. Seria assim tão compulsiva a realização do seu desejo? Ou tinha tornado-se uma quimera inalcançável?
Após ultrapassar a linha do equador, navegando no hemisfério norte, o calorento esconderijo vinha exigindo que o velho saísse com mais freqüência da penosa clausura. Só fazia escapadelas do local de resguardo obrigatório na escuridão do refeitório após o jantar e bem depois da limpeza realizada pelos taifeiros. Valia-se dos restos da farta alimentação e regava, furtivamente, suas noites com as maravilhosas cervejas para embriagar-se e desfrutar de infindáveis sonhos menores, mas sempre no aguardo e esperançoso daquele sonho maior.
Quase em New York, percebe que pode afrouxar a guarda e aproveitar das noites embalado na cavitação, provocada pelas poderosas hélices do navio, e aproveitar muito mais das latas de cervejas geladas ao seu alcance. Doces embalos, ninando-o no útero cauteloso antes do problemático e perigoso desembarque quando chegasse no porto da sua tresloucada quimera! Mas, como entrar nos Estados Unidos sem qualquer documento? Ora, o velho planejador tinha pensado em tudo! Afinal, por que o cálculo para sair em um navio até o dia 20 de junho e aportar no dia 4 de julho; pontualmente no grande feriado americano? Velho sabido!
O baque surdo no costado bombordo anunciou para o fatigado velho clandestino que o Netumar estaria sendo empurrado pelos rebocadores da capitania dos portos até encostar, seguro às amarras, no cais a estibordo Era a sua chegada tão esperada nas águas da desembocadura do rio Hudson, para atracar na ilha de Manhattan. Dali seria só um pulo até o local, para efetivar, de vez, um sonho de longínquos tempos! Como desembarcar e passar pela imigração dos Estados Unidos da América? “Vamos esperar pelo momento certo e único” – ruminou o exausto clandestino brasileiro. “Enquanto não chegar o momento exato, tenho de descansar para a empreitada, sem passar pela imigração”. Por que o velho tinha escolhido o esconderijo a bombordo? Ora! É óbvio que qualquer entendido em petroleiro sabe que a atracação e conseqüente desembarque nos portalós estão sempre localizados a estibordo; tudo bem ajustado ao cais! E o esconderijo, criteriosamente escolhido, ficou ao lado do mar, à esquerda no navio. Ponto bem discreto, para jogar-se na água à guisa de desembarque espetacular, quando chegasse no seu destino em New York. Notaram como o velho de barbas brancas é espertalhão?!
Caminhando em direção ao norte, já em solo firme na ilha de Manhattan, o velho sentia-se tomado de quase euforia, pois aproximava-se cada vez mais do seu objetivo há anos perseguido. De qualquer forma, ainda ressoava em seus ouvidos o estrondo, quando jogou-se da estreita vigia do Netumar até chocar-se com a água. Os seus cálculos e estimativas foram exatos: naquela noite das comemorações do tradicional 4 de Julho americano, os indefectíveis fogos de artifícios de toda a redondeza abafariam o seu ruidoso baque noturno nas águas do rio Hudson. Quem estaria interessado em saber se aquele velho de cabelos grisalhos estaria se contorcendo para passar pela sumária vigia e depois largar-se nas alturas para entrar nos Estados Unidos da América? “Ainda bem” – imaginou passando as mãos pelas ralas e alvas melenas bem úmidas – “que o meu regime proposital de emagrecimento funcionou!” O baque foi formidável e a entrada em solo americano estabeleceu-se sem qualquer problema com a imigração. Agora era só ir antegozando os maravilhosos dias antes da meta-sonho e, por momentos, as paisagens das ruas da ilha em dia de festa. Enquanto isso, já longe do navio, do cais e de qualquer acontecimento de desagrado pela imigração ilegal, o calor da noite ia encarregando-se de secar o macacão laranja do resoluto caminhante. A única preocupação do homem, que há poucos minutos tinha surgido espetacularmente do ventre do Netumar, foi desanuviada quando verificou que nos bolsos do macacão, ainda encharcado, lá estava o dinheiro trazido para sua sobrevivência nos primeiros tempos em New York: Quinhentos dólares trocados em notas de cinco, dez e dois daquela moeda corrente nos Estados Unidos da América. Assim mesmo, com tanto dinheiro disponível, ele pára, ainda bem perto do cais, para verificar um pequeno papel sob os seus pés que tinha aparência de uma cédula de um dólar. A despeito da relativa escuridão reinante no local onde pára no sentido recolher a suposta nota de um dólar, ele pôde ler que se trata de um cartão de seguro social onde estão os dados do proprietário do valioso documento perdido. Forçando a vista cansada dos quase oitenta anos, o macróbio sortudo identifica que o perdedor do cartão é um tal de Mister Lawrence Gibson Calhoun, nascido no ano de 1927, em Wilmington, North Carolina.
Passam-se os dias e o velho vai adaptando-se, pouco a pouco, com a vida e os ritmos da enlouquecida cidade. Na primeira noite foi impossível dormir com a balburdia dos desfiles, ruídos dos canhoneios festivos e, sobretudo, com o calor do novo esconderijo. Os túneis de aeração do metrô ainda não eram os lugares mais adequados e confortáveis para dormir no período de julho. Mas eram os mais seguros e ninguém, nem mesmo as autoridades, atrapalham os milhares de desabrigados da gigantesca metrópole ali alojados. Durante o dia os miseráveis, como o velho brasileiro, vagam pelo centro de cidade e arredores em busca de trabalho eventual, e à noite escondem-se, tal como os ratos e baratas, nos túneis do metrô novaiorquino. No inverno, é a única salvação para quem não consegue uma vaga junto ao aconchegante e seguro bafo quente nos milhares de quilômetros dos trens subterrâneos.
Com algum tempo na cidade-monstro o velho de gaforinhas desbotadas sente que o seu dinheiro ia desaparecendo. No templo do consumismo, mesmo contra a vontade, eram-lhe necessárias algumas roupas para o inverno próximo e um instrumento para o trabalho escolhido. Nas centenas de brechós pelas avenidas dispunha-se, a preços ínfimos, de vestimentas variadas. Com o tempo, o barbudo foi abrindo a mão e, em um dos brechós onde já era mais conhecido, chegou a pedir que lhe fosse reservado um kit completo tipo smoking. Incluindo-se, obviamente, um par de calçados italianos Scatamachia negro-verniz em cromo alemão. E explicou, no seu duvidoso e péssimo inglês, para espanto do atendente que achou muita graça no pedido: “But I´m looking for one smoking of the same kind used by Mister Fred Astaire, well?”. Na mesma loja brechó, o barbudo já tinha adquirido, pelo preço inacreditável de dois dólares, um espanador, evidentemente bastante usado, mas de penas de avestruz africano! Esse era o seu instrumento de trabalho que o arrastou para as proximidades da vestibular chegada ao seu grande sonho! The Metropolitan Opera House of New York!
Mesmo vivendo no centro das manias exorbitantes de consumismo, o velho já tinha amealhado com o seu trabalho humilde e insistente às portas do mais famoso teatro de New York, alguns milhares de dólares. Com o inverno penetrando nos seus ossos, ele sentiu que não poderia resistir mais até a realização do sonho psicótico. O bafo do metrô não estava sendo suficiente para esquentar as suas poucas carnes e poderia agravar ainda mais a insuficiência cardíaca. A solução era abrir um pouco mais a ranzinza mão avarenta e buscar uma pousada salvadora. Eis que surge à sua frente quando caminhava por perto de Times Square, ali pela 45Th West, um anúncio chamativo para a venda de peças de um centenário hotel em demolição. Ele entra no antigo lobby do Piccadilly Hotel. Quando se dispõe a sair em direção da rua, um serviçal do hotel pergunta se ele estaria interessado em desfrutar dos últimos dias do famosíssimo hotel. Explica o empregado ali no lobby que, dos antigos setecentos quartos do hotel, restam uns cem ainda intactos para locação ao preço simbólico de US$2.00 a diária. “Não temos mais os nossos elevadores.” – continua justificando o promotor do velho hotel – “Mas as acomodações ficam aqui até o sétimo andar. Para pessoas da sua idade, reservamos as unidades do segundo piso.” Não houve mais necessidade de outros convites ou justificativas. O senhor enregelado aproximou-se do balcão, estendeu o cartão do seguro social para registrar-se, e ocupou um quarto pagando US$14.00 à vista. Era a exigência costumeira por uma semana inteira de hospedagem. Todas as manhãs, quando de saída para a contínua busca de mais dinheiro em troca de espanar carros estacionados pela redondeza, sempre casmurro, a saudação naquele lobby transformado em bazar de antiguidades: “Bom dia Mister Calhoun!”. Na volta, pela madrugada, após o mesmo labor defronte do Metropolitan Opera, renovavam-se os cumprimentos do porteiro de turno, sem obter qualquer resposta do ensimesmado hóspede: ”Boa noite, Mister Calhoun, durma bem!”. Mas pelas manhãs, muito bem cedo, antes do sol acordar a ilha de Manhattan, era possível ouvir a voz daquele velho em renitente solfejar por minutos, quebrando o silêncio do hotel na sua agonia da desestruturação. Eram os longos dóooo, réeee, míiii, fáaaa, sooool, láaaa, síiii, para quem se dispusesse ouvir a única manifestação vocal do morador eventual.
Eis que vem se aproximando a temporada das sessões de inverno no Metropolitan Opera e o barbudo tem de preparar o pulo final para entrar nas portas do céu: a realização plena do seu desejo! Já dispõe do dinheiro de avaro guardado e conseguido após muito sacrifício pessoal. Privações, renúncias, em um mundo de tentações e gastos não lhe faltaram. Quantas maravilhas gastronômicas e as exorbitantes vitrines ao longo das luzentes avenidas da cidade!
Na pequena fila formada diante do guichê de venda dos ingressos para a temporada de inverno, lá está o ex-barbudo para compra da coleção de ingressos para toda a semana. Ninguém reconhece o tira-pó de limusines, pois o mesmo tinha passado por uma transformação. Irreconhecível! Submeteu-se a um ritual premeditado para estar bem conforme tinha visto a si em um espetáculo imaginário: um sonho acordado; um desejo arraigado no fundo de sua alma, como uma doença incurável. Por isso, eram necessárias as providências de transformação daquela imagem de vagabundo, barba mal-tratada, cabelos enormes e desgrenhados. Dias antes de entrar na fila do Metropolitan Opera, pediu ao barbeiro que raspasse totalmente a imunda barba e lhe acertasse a cabeleira ao modo e estilo dos famosos da Big Apple. Pelo milagre corriqueiro dos salões masculinos da cidade-tentação, o velho caquético, barbudo e enjambrado transmutara-se em outro homem. Nem de longe lembrava mais aquela figura mal-amanhada. Poder-se-ia até dizer, sem exagero, que era agora uma de estampa charmosa: magra-esguia para atlética, assim tipo Fred Astaire como queria; nem feio nem bonito; tolerável à vista sem preconceitos. Para dizer a verdade, para o velho ex-barbudo ser considerado como gente da importância do grand monde, era só imaginar-lhe metido em um completo, bom e fino traje smoking. Mas essa providência estava sendo zelosamente guardada em um decadente quarto do segundo piso do Piccadilly Hotel, para as noites de entradas nas sessões das óperas. Será que o incontrolável desejo do velho seria ficar por perto do palco e meter-se entre os tenores e barítonos? Seria um tresloucado desejo seu, também soltar a voz no palco mais famoso do mundo?
Quando chega o momento de adquirir os sete ingressos para toda a semana na frisa ao custo total de US$1,400.00, as novas medidas de segurança em toda a cidade exigem uma identificação para ser impressa nas entradas individuais do Metropolitan Opera. O atlético ex-barbudo não tem problema: exibe para o vendedor o “seu” cartão do seguro social e fica tudo resolvido.
Aquela era a primeira noite que o misterioso hóspede, o silencioso e calado velho Mr. Calhoun, entrava em uma limusine negra estacionada bem junto da porta do Piccadilly Hotel. O paciente chauffeur já o aguardava há cerca de trinta minutos. Enfim, o elegante magriço, de ajeitada cabeleira branca, seguramente um gentilhommen, aparece da espiralada escadaria de mogno maciço. Atravessa o lobby para surpresa, quase assombro, dos porteiros. Alguns serviçais mais temerosos do que curiosos espreitam, com discrição, por trás das colunas de mármore verde-musgo, o elegante homem de smoking de largas lapelas de seda negra brilhante. Agora, todos que tinham curiosidade e se interrogavam sobre os segredos do molangueirão da distante da North Carolina tinham certeza: não se trata de um mocorongo qualquer.
Mas na noite da primeira chegada para a sessão de óperas em comemoração a alguma data importante da Polônia, o novo gentleman sentia que estava, de fato, agora realizando o seu grande desejo: entrar tal como um ator de cinema para o glamouroso mundo das encenações das finas artes no The Metropolitan Opera House of New York! Logo ao desembarcar da limusine, viu-se surpreendido pela gentileza, quase ironia, do chauffeur, que sabia ser o locador do veículo nada menos que um residente de um hotel espelunca na zona mais desprestigiada da cidade. Além do mais – para seu encantamento –, logo ao desembarcar sob o toldo às portas da casa de ópera, o negro porteiro trajando libré, em largo sorriso, deu-lhe as boas vindas ao verificar o bilhete de entrada, dizendo com delicadeza subserviente: “Seja bem-vindo Mister Calhoun! Aproveite a noite!”
Por todas as noites daquela semana, o elegante velho metido no seu smoking achava que estaria protegido do mundo na exclusiva frisa de mil e quatrocentos dólares. Ledo engano. Os acordes e as vibrações rompem a velha carcaça e invadem de forma impiedosa o âmago do velho. Nem mesmo os intervalos eram suficientes para acalmar a sua alma em agitada e estonteante manifestação de deslumbramento. No imenso hall, no meio da mais fina sociedade de New York, o velho, mesmo cambaleante das doses de champanhe, insistia continuar vivendo o seu sonho pueril de grandeza imaginária. Só ele, no grande hall marmóreo, no piso entre negro e róseo, desfilava isolado entre os demais casais distintos. Estava tudo correndo como ele próprio desejou por toda a vida: a materialização de um momento numinoso, personalíssimo e ímpar. Só ele, no seu mutismo e alumbramento, poderia defrontar e sentir o Self. Um deus deixando aflorar o verdadeiro Deus interno, aterrador e formidável de todo homem!
Na última sessão dos desempenhos da mais pura arte, após noites de sofrimentos acompanhados de gozosos encantos, o homem não suporta mais as emoções. Escasseiam-se os medicamentos trazidos do Brasil e aproximam-se dolorosos eventos de angina pectoris.
A polícia é chamada para identificar um velho e elegante senhor de dedos crispados, quase dilacerando o caríssimo delicado velvet do requintado acabamento dos braços da poltrona, na exclusiva frisa. No bolso interno do smoking, um cartão esverdeado do serviço social revela tratar-se de Mister Lawrence Gibson Calhoun. Mas, em consulta ao banco de dados do Estado do Carolina do Norte, as autoridades locais constatam imediatamente que o verdadeiro Mister Calhoun é um professor de Psicologia da North Carolina State University e, naquele instante, está ditando uma aula na longínqua instituição. O elegante homem ali pálido, transparecendo ao livor mortis, sem vida e sem nome, é um farsante. A polícia encaminha o imponderável cadáver para o crematório da cidade de New York. Do sonho vivido pelo velho de Brasília, restam apenas, para sempre congeladas, a pele das pontas de todos os dedos.
De alma feliz – imagina o velho flutuante – “Tudo deu certo; até minhas cinzas navegam por lugares ignotos; vagabundeiam sem destino, talvez, quem sabe, na certeza de outros retornos mais seguros na terra ou noutros planetas de maior agrado!”
(Publicado originalmente na Revista Cerrado Cultural nº 05/2009)
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