Por
URDA ALICE KLUEGER (SC)
RESUMO
Estudo
de caso de uma migrante branca, de origem européia, de uma região do Estado de
Santa Catarina colonizada por brancos de origem européia para outra região de
Santa Catarina também colonizada por brancos de origem européia, e os graves
problemas de racismo/rejeição enfrentadas pela mesma ao longo de grande parte
de sua vida.
Palavras-chave:Migração – migración;Racismo – razismo;Rejeição – recusación; Etnicidade – etnicidad
MIGRAÇÕES
E CONSTRUÇÕES SÓCIO- CULTURAIS – UM ESTUDO DE CASO
1.
INTRODUÇÃO
Enquanto
pensava, aqui diante do computador, em como começar este texto, me veio à
lembrança umas fotos que recebi, faz poucos anos, dos Açores. Creio que por
dois ou três anos colaborei com um jornal de lá, o que me granjeou diversas
amizades naquela terra européia perdida no meio do mar, e um dos meus leitores,
um escritor já muito idoso e dado ao hábito de muito fotografar, me mandou
lindas fotos do interior da ilha em que morava, São Miguel. Sabia, já naquela
altura, que, partidas por sucessivas divisões feitas por heranças ao longo de
mais de cinco séculos, as terras açorianas estavam divididas em propriedades
cada vez mais minúsculas, e as fotos que recebi mostravam bem o que sabia, mas
eram lindas aquelas fotos, com os pequenos lotes de terra cuidadosamente
cultivados ou, no mais das vezes, transformados em pastos para um gordo gado
que abastecia a Europa de leite, queijo e carne.
Além
de lindas, as fotos me despertaram outra curiosidade: as cercas. Com tão
minúsculos pedaços de terra, era impossível que logo no primeiro plano das
fotos já não existissem as cercas, e lá estavam elas, de madeiras irregulares,
cortadas, dispostas e pregadas irregularmente, muito diferentes das cercas às
quais eu estava acostumada desde a minha infância.
Como
eram as cercas da minha infância e as cercas que até hoje conheço e convivo no
Vale do Itajaí/Brasil? Como a parte deste Vale aonde vivo é de colonização
alemã, as cercas quase sempre são feitas de materiais muito uniformes
(estaquetas, telas, tijolos, sejam quais os materiais que forem), numa
uniformidade que levam a pensar no senso estético que, de maneira geral, agrada
ao descendente dos moradores dos antigos estados alemães que aqui vivem. Não é
possível que se generalize e se diga que tal gosto é um gosto exclusivo dos
descendentes de alemães, pois hoje é muito grande a quantidade de etnias que
convive no Vale do Itajaí, mas, no mais das vezes, as cercas das casas e de
outras propriedades mantêm uma simetria que, ao longo da minha vida, fui cada
vez mais associando à coisa cultural do alemão.[1]
Na minha adolescência tive a oportunidade
de conviver largamente com as gentes de origem lusa que então viviam em Armação
do Itapocoroy, município de Penha/SC, e quando, na década de 1990, recebi
aquelas fotos dos Açores, lembrei-me imediatamente das cercas que então eram
usadas pelos pescadores de Armação do Itapocoroy, tão irregulares e sem
simetria em 1970 quanto as açorianas de 1970.[2]
As considerações acima são um tanto
quanto antropológicas, mas foi um exemplo que me veio com muita força, quando
comecei a pensar no estudo de caso que quero em fazer. É um exemplo que ilustra
bem que dentro das etnias européias, consideradas “brancas” pelos projetos de
formação do povo brasileiro que são criados após a segunda metade do século
XIX, etnias que, a princípio, eram bem-vindas em pé de igualdade pelas elites
brasileiras dos séculos XIX e XX, mas onde havia muitas diferenças culturais, e
que mesmo entre elas criavam-se sérios problemas de aceitação ou não pelos
indivíduos que as compunham, quando, de alguma maneira, se “mesclavam” ou
“misturavam”. Considero que este preâmbulo é necessário para entrar no meu
estudo de caso.
2.
O ESTUDO DE CASO
2.1
O LUGAR DE ORIGEM
A pessoa “estudada”, no caso, é uma
mulher que hoje (2004), está com 83 anos e é proveniente de uma região de
colonização lusa próxima do litoral de Santa Catarina, Tijucas. Essa região tem
uma colonização bastante antiga feita por portugueses e seus descendentes,
tendo, no final do século XIX, tido também uma colonização italiana. A pessoa
estudada prefere não se identificar e pediu para ser chamada de Gilda. Além de
não admitir a sua identificação, Gilda negou-se a gravar uma entrevista de
História Oral. Os depoimentos que obtivemos dela são produto de uma longa
convivência, onde as histórias foram sendo contadas aos poucos.
Gilda
nasceu em 1921 bastante afastada do centro nervoso do Brasil, isto é, o Rio de
Janeiro, lugar onde estava o governo central do país, onde se decidiam as
coisas da política, da economia, da cultura, onde, naquela altura de Primeira
República, os então cientistas procuravam programar um futuro étnico para o
Brasil, que tinha como eixo central um ideal de branqueamento. Giralda Seyferth[3] vai nos falar mais a respeito:
“O ideal de branqueamento ganhou o reforço das teorizações racistas
intensificadas no final do século XIX e tornou-se tema de uma incipiente
“ciência das raças” à brasileira, que deu respaldo acadêmico às especulações sobre
o poder branqueador do processo de miscigenação herdado dos tempos
coloniais. Assim, ao pessimismo de Nina
Rodrigues, que imaginava o Brasil irremediavelmente atrasado em face da
presença substantivas de “raças inferiores” e “mestiços inferiores”, opõe-se o
otimismo de João B. de Lacerda, antropólogo do Museu Nacional, que visualizou a
possibilidade do branqueamento fenotípico do brasileiro do futuro por meio de
um processo seletivo de mistura racial num prazo de três gerações.(...)”.
Com
poucas palavras Giralda Seyferth resume o pensamento que corria pelo Brasil,
nesse tempo, sobre a futura formação do seu povo, o que estava fazendo com que,
desde a década de 1820, se pensasse em trazer imigrantes para o nosso país,
principalmente imigrantes “brancos”, de origem européia.
Gilda
era uma brasileira branca, de origem européia. A princípio, sua vida não teria
maiores problemas quanto à sua cor e/ou etnia, já que era muito clara, de
cabelos castanhos e olhos verdes. Não era uma pessoa que tivesse que passar
pelo cientificismo “branqueador” que existia no país. Apesar da sua origem
lusa, crescera ela na casa do padrinho, agricultor, imigrante italiano, e muito
absorvera da cultura italiana do padrinho e demais parentes dele, tanto
costumes, quanto forma de religião, um pouco da língua, etc. O padrinho e os
costumes absorvidos também eram de proveniência européia, de “gente branca”, e
a mescla de sua origem lusa com a cultura italiana do padrinho não chegou a lhe
causar maiores problemas. Ela freqüentou a escola possível na época, que eram
três anos de ensino básico, e teve algumas regalias que não eram comuns a todos
os brasileiros desse tempo onde a comunicação era incipiente, como a
convivência com um padre holandês que era doutor em Teologia[4], e
do qual, até hoje, lembra e relembra os ensinamentos, bem como a convivência
com algumas lideranças locais, italianos de
cultura européia moderna, diferente da maioria dos brasileiros daquela
localidade, e com os quais estava em contato através do padrinho e da
igreja.
Gilda
cresceu no momento em que o Brasil começava um projeto de industrialização de
base nacionalista, que se alastrara até Santa Catarina, formando os três
primeiros núcleos industriais do Estado: Blumenau, Brusque e Joinville. O país,
que até então fora rural, começava a necessitar de mão-de-obra especializada
nos diversos ramos da indústria, e era necessário que houvesse excedentes nessa
mão-de-obra, para garantir seu funcionamento sem interrupções. A falta de
excedentes sempre colocaria as empresas industriais em risco de alguma greve,
coisa que o Capitalismo não podia permitir, pois paralizações poderiam levar a
falências ou prejuízos. Assim, na década de 1930, o Presidente Getúlio Vargas
vai direcionar a legislação do país para que passe a causar entraves aos
agricultores, forçando muitos deles a abandonar a agricultura e a mudar-se para
as cidades industriais, atraídos pelo emprego que então era conseguido
facilmente.[5] Gilda
contou como eram tais dificuldades: até àquela data um agricultor podia matar
um porco, vender sua carne, sua banha e demais derivados sem nenhum problema –
a partir das novas leis, se um agricultor quisesse vender uma lata de banha,
teria que ter um contador, organizar uma contabilidade, comprar caros selos que
significavam os impostos. Tornava-se bastante difícil a vida de um agricultor.
Assim, como tantos outros agricultores, ela acabou deixando a vida agrícola e
mudando-se para a cidade de Blumenau, onde de imediato conseguiu emprego na
antiga Empresa Industrial Garcia.
Blumenau
era um outro mundo, no sentido de ter outra colonização, outros costumes, outra
língua e ser industrializada, e ela afirma até hoje: “Deram-me emprego porque
eu era bem crescida, bem saudável, bem branca.” Tinha 17 anos, então, e na Europa
estava a rebentar a Segunda Guerra Mundial.
2.2 A MIGRAÇÃO
A cidade
de Blumenau, na época, vivia sua nona década desde a fundação. Situada no Vale
do Itajaí, Estado de Santa Catarina, fora fundada por um alemão chamado Hermann
Bruno Otto Blumenau e colonizada, principalmente, por alemães, se considerarmos
seu núcleo inicial. Pelo resto do Vale, diversas outras etnias tinham se estabelecido,
enfatizando-se a presença de italianos
que tinham chegado a partir de 1875. No espaço que hoje (2004) é o
município de Blumenau, no entanto, a presença alemã era predominante. Voltando a Giralda Seyferth:[6]
“(...)
As críticas sobre o modo de colonizar o Sul (...) não resultaram em práticas
outras: as colônias continuaram recebendo imigrantes europeus e seus
descendentes, e os brasileiros em geral continuaram excluídos.
Até a década de 1940,
algumas questões configuraram-se mais diretamente vinculadas ao debate sobre a
identidade nacional brasileira e ao problema da imigração, e serão brevemente
analisadas neste trabalho:
(...)
c) A questão étnica
suscitada pela emergência, ainda no final do período imperial, das etnicidades
construídas a partir da experiência compartilhada do processo imigratório.
Nesse contexto, a etnia paradigmática da
exclusão é a alemã, considerada a mais irredutível ao caldeamento e à
assimilação. (...).” [7]
Giralda
Seyferth como que dá a “chave” para os acontecimentos que Gilda vai contar a
seguir. Para situar melhor a época, é necessário que se olhe o governo de
Getúlio Vargas não apenas como auxiliar valioso na implantação da
industrialização brasileira, mas também no autor de um programa diferente do
até então seguido para a formação de uma “raça” brasileira. Se até seu governo
o que se discutia na academia e entre muitos cientistas era o “branqueamento”
do povo, Vargas vai inverter o processo, desconsiderando o eurocentrismo então
vigente para criar um outro personagem que deveria nortear a vida do Brasil de
então adiante. O fato é analisado da seguinte forma por Seth Garfield[8]:
“Como parte de seu projeto
multifacetado de construção de um Brasil novo – mais independente
economicamente, mais integrado politicamente e socialmente mais unificado,
Vargas voltou-se para o valor simbólico dos aborígenes. (...) Os índios eram
defendidos por Vargas por conterem as verdadeiras raízes da brasilidade.
(...)
Ao difamar o europeu e consagrar o
indígena, os ideólogos e intelectuais da Era Vargas inverteram ou subverteram a
concepção eurocêntrica da história da cultura e do destino nacional, vigente na
elite brasileira. A essência da brasilidade havia sido redefinida por membros
da elite e da intelligentsia: ela não
atravessou mais o Atlântico, mas brotou do solo da nação, da sua fauna, flora e
dos seus primeiros habitantes.”
Se Vargas tinha um novo projeto de
Brasil e começava a aplicá-lo a nível nacional, tal realidade não chegava a
interferir com o que acontecia na antiga colônia Blumenau, onde os alemães e
seus descendentes continuavam sendo a etnia “mais irredutível ao caldeamento
e à assimilação”.[9] Há
que se lembrar da nota de rodapé nº 1, onde convencionou-se que a palavra
“alemão” designaria tanto os habitantes dos antigos estados que iriam formar a
Alemanha em 1871 quanto seus descendentes. Um novo fenômeno vai acontecer em
1890, quando se cria, a partir da Alemanha, a doutrina do pan-germanismo, e o
conseqüente “deutchstum”, o que
poderíamos traduzir como “germanismo”, mas que não será discutido neste espaço.
Continuar-se-á a usar a palavra “alemão” quando necessário se fizer referir-se
aos habitantes de língua alemã que viviam em Blumenau.
Gilda,
brasileira branca de origem européia, vê-se então entre outra gente branca, de
origem européia, que não está interessada no projeto nacionalista de Vargas, e
que vê em Gilda um s[UC1][UC2][UC3][UC4]er
inferior, uma “cabocla”. A definição de
caboclo é a de mestiço entre o branco e o índio, mas na cidade de Blumenau tal
palavra tem outra conotação: para o “alemão”, “caboclo” é quem não é alemão nem
de “origem”[10] alemã.
Nessa altura, é muito grande o número de filhos, netos e outros descendentes de
alemães imigrantes já nascidos no Brasil, mas a comunidade continua a se sentir
“alemã”, mesmo já sendo brasileira de diversas gerações. Ela “cabocliza” as
etnias que não falam alemão, principalmente as pessoas de etnia lusa, e que
ainda por cima são católicas, já que é muito grande o número de protestantes
luteranos que vivem na cidade de Blumenau de então e de agora. É como cabocla
que Gilda é recebida na nova comunidade, pois detém três graves defeitos: tem
sobrenome luso, á católica e não fala a língua alemã. As discriminações que vai
sofrer por conta desse acaboclamento resultante da migração pela qual passa são
muito grandes em quase todos os ambientes: no emprego, conseguido por ser “bem
branca”, na família do rapaz com quem vai namorar a seguir, por ser etnicamente
diferente, etc. São quase infinitas as queixas e considerações que Gilda tem
sobre as segregações e discriminações que vai sofrer logo na sua chegada e ao
longo de algumas décadas adiante. Embora Jeffrey Lesser vá dizer que “A ‘brancura’ continuou como um requisito
importante para a inclusão na ‘raça’ brasileira, mas o que significava ser
‘branco’ mudou de forma marcante entre 1850 e 1950” [11],
o grupo étnico alemão, ao considerar “caboclos” aos demais grupos étnicos,
reserva para si tal “brancura”. Giralda Seyfert de novo vai tomar da palavra[12]:
“Os grupos imigrados
construíram suas identidades étnicas (...) baseados na percepção das diferenças
em relação à sociedade brasileira. (...) A retórica etnocêntrica que acompanhou
a elaboração das identidades estabeleceu o caboclo como o outro, o oposto ao
imigrante europeu. – categoria usada como sinônimo de brasileiro. Esse sistema
categórico construído por oposição envolve, principalmente, critérios raciais e
formulações subjetivas acerca do caráter e da mentalidade – em que o caboclo
aparece como indivíduo racialmente inferior, e o epípeto de “preguiçoso” é o
menos carregado de intenções pejorativas. (...) Na representação do pioneiro, a
categoria colono (trazida do jargão oficial) identifica os imigrantes europeus
e seus descendentes, e a colonização é definida como um processo civilizatório
instaurado na selva brasileira. Nela, certamente o caboclo brasileiro ocupa a
posição de bárbaro diante de civilizados!”
A intenção deste texto é mostrar a
história da personagem Gilda como migrante, e assim ficará de fora toda uma
discussão que poderia ser feita aqui sobre etnicidade, pertencimento, etc., que
caracterizaria ainda melhor a sociedade “alemã”, ou “de colonos”, como poderemos
chamá-la daqui para a frente, em contraposição à cultura, língua, religião e
demais costumes da cultura de onde Gilda provinha.
Taxada antecipadamente como “preguiçosa”
e outros adjetivos ainda mais contundentes, Gilda adentra ao novo ambiente
disposta a se fazer respeitar nele. Segundo ela, aprendeu que “quem fica quieto
acaba vencendo”, e muito deve ter se calado para chegar hoje à posição de
respeito que ocupa na mesma sociedade para onde migrou faz 70 anos, e que por
antecipação já a excluía. Ela conta das grandes barreiras enfrentadas quando
começou um namoro com rapaz “colono”, “de origem”, “alemão” (quando, na
realidade, de alemão ele só tinha um avô). Ela não era “de origem”, como se a
única origem válida para uma pessoa fosse a alemã. Origem lusa não era “origem”, bem como muitas
outras. Assim, sem “origem”, Gilda vai
enfrentado passo a passo cada rejeição que sofre na família do noivo (bem como
nos outros ambientes aonde vive, como no trabalho, por exemplo), e acaba se
casando com o mesmo. “Mantinha a casa sempre impecavelmente limpa e arrumada,
para que não pudessem falar” – lembra ela. “Jamais deixava qualquer líquido
escorrer pela beirada do fogão (os antigos fogões de tijolos), para que nunca
alguém pudesse chegar e dizer que o meu marido se casara com uma cabocla que
não era limpa.” É possível se imaginar a
constante tensão em que vivia Gilda, continuamente sob pressão, constantemente
tendo de provar ser ela tão boa ou melhor que os “alemães”, para, de alguma
forma, diminuir a rejeição onde vivia. Ao mesmo tempo, tem um bom
relacionamento com o marido “de origem”.
“O meu marido se casou comigo para valer,
para sempre. Era alguém que gostava realmente de mim.” Portanto, a exclusão no
público não vai interferir no privado, e ela conta com orgulho como, aos
poucos, a partir do casamento, o jovem marido vai passando a gostar sempre mais
da sua comida do que da comida da mãe dele. É como uma redenção – é a aceitação
dos seus costumes. Até hoje ela critica muito certos costumes alemães: “O
feijão de vara, a cenoura, etc., eu refogava numa panela e depois os ensopava
sem jogar o caldo do próprio legume fora. Os alemães cozinhavam até ficar mole,
jogavam toda a água fora e depois comiam o legume com vinagre. Jogavam fora a
melhor parte da comida, a parte onde estavam as vitaminas, as coisas boas. Eu
era cabocla, mas sabia melhor que eles o que era bom para a saúde.”
Sua redenção parece ter sido no dia em
que um cunhado esteve a visitá-los, e depois comentou com seu marido: “A tua
mulher é limpa mesmo! Não é como a mulher de Fulano (uma “alemã”) que deixa o
café escorrendo pela beirada do fogão” – referindo-se à forma como ela mantinha
o fogão e o resto da casa. Quase setenta anos depois, ela lembra muito bem
daquele momento.
Quando vieram as crianças, seu cuidado
redobrou. Tinham que estar sempre muito limpas, muito bem cuidadas, de um jeito
que não permitisse que qualquer parente “alemão” pudesse fazer qualquer
crítica. A tensão continuava , e ela sabe como, nas festas da família, suas
cunhadas mostravam suas crianças para os estranhos e diziam: “Veja que
bonitinha! Tadinha!” – e ela sabia que o “tadinha” era um adjetivo que
significava que se tratava de uma criança mestiça, portanto, de qualidade
inferior, filha de uma cabocla.
Naquelas primeiras décadas de tensão ela
adaptou-se o mais que pode ao grupo no qual penetrara, tentando vencer suas
diferenças de migrante. As cercas de estaquetes da sua casa eram tão simétricas
e bem feitas quanto as de qualquer outro “alemão”; seu jardim era composto por
retilíneos canteiros de rosas e violetas, e ela plantava gérberas em filas tão “prussianas”
quanto qualquer das suas cunhadas. Além da casa, do jardim e dos filhos, ela
muito trabalhou para ajudar o marido, pequeno comerciante, e assim, aos poucos,
acabou conquistando um respeito que não tinha no começo, diante da família do
marido e da sociedade em geral. Deve ter demorado, no mínimo, umas três
décadas. Ela viu todo o desenrolar da Segunda Guerra Mundial em Blumenau, viu o
processo de nacionalização que o governo Vargas promoveu, viu a gente da qual
agora passara a fazer parte ser obrigada a falar a sua língua (ela conta que
inúmeras vezes foi censurada por falar palavras do português que os “alemães”,
no seu parco entendimento de tal língua, lhe censuravam pelo uso), viu as
muitas outras migrações para a cidade de Blumenau. O “colono” foi, muito
lentamente, absorvendo as realidades brasileiras, sendo que, nas palavras dela,
“Alguns não têm jeito. Continuam sendo “de origem” e não se interessam por mais
nada.”
Gilda criou bem sua família, cuidou do
seu marido até seu falecimento prematuro, aos 62anos, portanto, há mais de
vinte anos, teve tempo, mais de uma vez, já na sua viuvez, de ir cuidar de
cunhadas que estavam doentes, em cidades distantes, conquistando cada vez maior
respeito na sociedade e na família. Ela está viva o tempo suficiente para ter
visto diversas coisas: sua cultura primeira, sua migração e uma cultura nova, à
qual se adaptou com firmeza, o processo de nacionalização, o recriar da cultura
do pessoal “de origem”, quando Blumenau criou a Oktoberfest, em 1984. Com a criação da Oktoberfest, ela demonstrou muita emoção. Era uma festa que a fazia
lembrar de tempos antigos, quando, mesmo cabocla a ser humilhada a todo instante,
viveu os tempos coloridos da juventude, enfrentou uma família ferrenhamente “de
origem”, casou-se.
2.3 HOJE
Hoje Gilda vive um refluxo da sua cultura
original. Ela é economicamente independente; seus filhos tiveram sucesso
econômico e profissional na vida e ela recebe considerações de pessoas e grupos
estranhos por isto, além de ser considerada por sua própria personalidade que
enfrentou as adversidades e lutou contra costumes estabelecidos, saindo
vencedora de uma luta que durou quase toda a sua vida. É bastante evidente o
quanto lhe importa o fato de ter conquistado o respeito da família do marido,
que hoje lhe tem grande consideração, como é evidente a surpresa que tem quando
vê autores portugueses famosos internacionalmente, como Eça de Queiroz ou o
prêmio Nobel de Literatura José Saramago, usando palavras que lhe foram
censuradas na juventude.
Gilda, hoje, não deve explicações de sua
vida a ninguém, e então a sua cultura original pode refluir sem críticas, e
basta-se chegar ao portão do jardim da sua casa para entender isto. Acabaram-se
as gérberas em filas prussianas; acabaram-se as fileiras retilíneas de
roseiras. Seu jardim é, hoje, exatamente um jardim português, com todas as
plantas e flores misturadas, bem como se pode ver na maioria dos jardins
daquele país ibérico. Sua casa é cercada por um muro retilíneo como os muros
“alemães” que foram falados na
introdução deste texto, mas nada a impediria de fazer novas cercas como as da
sua cultura lusa. Como migrante, algumas coisas ela acabou absorvendo da nova
cultura, e como podemos ver num texto traduzido por Eunice Nodari[13]: “Grupos étnicos em cenários modernos estão
constantemente se recriando e a etnicidade está sendo reinventada continuamente
como resposta às realidades inconstantes tanto dentro do grupo como na
sociedade anfitriã.”
Assim, com a liberdade do respeito
adquirido e da idade, Gilda hoje pode viver a sua real personalidade, que vamos
tentar explicar qual seja: já não é mais
a personalidade da mocinha “cabocla” que um dia avançou para dentro do terreno “inimigo”,
nem a mulher “de origem” com a qual quis se parecer quando vivia sua luta pela
conquista de respeito e de um lugar ao sol. Hoje ela pode se dar ao luxo de ter
seu jardim luso e seu muro mais ou menos prussiano sem ter que explicar nada a
ninguém.
CONCLUSÃO
No estudo
de caso efetuado ficou bastante claro como uma cultura pode ser “absorvida” por
outra, pelo menos durante algum tempo. São muitíssimos os casos de migrações
pelo mundo, e há de haver tantos outros casos de
rejeição/absorção/interpenetração/ e/ou outras possibilidades a cada vez que
uma migração acontece. Sentimentos nos quais sequer se pensa, às vezes estão
embutidos nos machucados e dores que as mudanças acabam provocando em grande
parte dos migrantes, sentimentos que os ajudam a sobreviver no novo ambiente,
onde, como no caso estudado, até a língua original era negada, primeiro num
todo, depois, em parte. Também se pode observar que o migrante, de alguma
forma, conserva sua cultura original, e, havendo a possibilidade, ela ressurge,
mesmo que já ressurja mesclada com coisas da cultura adotiva. Novas sociedades
se formam a partir do encontro de etnias diferentes, como é o caso de Blumenau,
que já não é “colona” e nem “cabocla”, mas uma nova cidade onde ainda continuam
se mesclando as muitas etnias que para ela migraram e continuam migrando.
REFERÊNCIAS
BIBLIOGRÁFICAS
CONZEN; Kathleen Nehls;
GERBER, David A.; MORAWSKA, Eva; POZZETTA, George E.; VECOLI, Rudolph J. Fórum.
The Invention of Ethnicity: A
perspective from the U.S.A. In: Journal of American History. Fall, 1992.
Traduzido por Eunice Sueli Nodari
GARFIELD, Seth. As raízes de uma planta que hoje
é o Brasil: os índios e o Estado-Nação na Era Vargas. In: Revista Brasileira de História, São
Paulo, n. 39, 2000, p.13-36
LESSER, Jeffrey. O
Hífen Oculto. In: A
negociação da identidade nacional: imigrantes, minorias e a luta pela
etnicidade no Brasil. São Paulo: Editora da UNESP, 2001, p. 17-35
SEYFERTT, Giralda. Identidade
Nacional, diferenças regionais, integração étnica e a questão imigratória no
Brasil. In: ZARUR, George de
Cerqueira Leite. Região e Nação na Aqmérica Latina. Brasília: Editora da UnB:
São Paulo: Imprensa Oficial do Estado, 2000, p. 81-109
[1] Deixo
convencionado que sempre que eu usar a palavra “alemão” ou “descendente de
alemão”, estarei me referindo aos descendentes dos moradores dos antigos
Estados que, em 1871, vão dar origem ao país que hoje conhecemos como Alemanha.
Quando quiser me referir a algum alemão nato, darei a devida informação. (Nota
da autora)
[2] Como
quase tudo o mais que recebe a influência deste mundo quase globalizado, as
próprias cercas irregulares de Armação do Itapocoroy praticamente
desapareceram. (Nota da autora)
[3]
SEYFERTH, Giralda. Identidade nacional, diferenças regionais, integração étnica
e a questão imigratória no Brasil. In: Região e nação na América Latina. Org.
ZARUR, George Cerqueira Leite. Brasília: UnB, s.d.
[4] Padre
Jacob Hudleston Slatter (Nota da autora)
[5] A
legislação que vai dificultar a vida do agricultor consiste numa série de leis
complementares principalmente à Constituição de 1934, além de outros atos, como
Decretos. O Professor Mestre em Educação e Geógrafo, Aldo Moretto Sobrinho,
realizou a pesquisa sobre tal legislação, tendo usado como fonte,
principalmente, boletins que eram emitidos para os Contabilistas da época. Esta
informação foi confirmada com o referido professor, verbalmente, em julho de
2004.
[6]
SEYFERTH, Giralda. Op.cit. p. 88
[7] Grifo da
autora.
[8] GARFIELD,
Seth. As raízes de uma planta que hoje é o Brasil: os índios e o Estado-Nação
na era Vargas. In: Brasil, Brasis. Revista Brasileira de História nº 39, v. 20.
São Paulo: ANPUH, 2000.
[9]
SEYFERTH, Giralda. Op. Cit., p. 88
[10] Até
hoje, ano de 2004, Gilda usa a expressão “de origem” para designar os alemães e
seus descendentes, como se ser “de origem” significasse ser alguém “melhor” na
escala social. (Nota da autora)
[11] LESSER,
Jeffrey. O hífen oculto. In: A negociação da identidade nacional: imigrantes,
minoria e a luta pela etnicidade no Brasil. São Paulo: Editora da UNESP, 2001.
p. 21
[12] SEYFERTH, Giralda, op. Cit. P.
97-98
[13] CONZEN, Kathleen Nehls et alii. The
invencion of Ethnkcity: A perspective from U.S.A. In: Journal of American
History, Fall 1992. Traduzido por Eunice Nodari.
Nenhum comentário:
Postar um comentário