domingo, 1 de dezembro de 2019

CARTA Nº 9 - DE ATAHUALPA PARA KATTY


Por Urda Alice Klueger (Enseada de Brito, SC)
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Querida Katty:
Amanhã vai fazer três anos que a gente se acordou a última vez na nossa casinha rosa e branca. A Urda foi comigo dar a voltinha de sempre e depois eu tomei café na minha janelinha de espiar para a mata. Então fomos para o carro, eu, Manuelita Saenz, uma mala e uma caixa com coisas de camping e descemos a rua. Paramos na casa da Terezinha para nos despedirmos e ela entrou em casa chorando e trouxe o vestido vermelho dela e deu de presente para a Urda. Então, partimos. Eu ia deitado nos meus travesseiros e Manuelita ia dentro de uma caixa de gatos, no chão do carro. Sabe como é, gatos são sempre mais chatos, e a Urda tinha que ficar conversando com ela o tempo todo, para que ela se sentisse segura. Às vezes dizia coisas assim: “Conforme Michael Foucauld, a análise do discurso...”, coisa que eu não entendia, mas que acho que Manuelita entendia, porque parava de miar.
                                    O trânsito estava bom, e em duas horas e meia chegamos a esta enseada e à casa aonde íamos morar. Era uma casa alugada, muito antiga, cheia de quartos e quartinhos, e acampamos lá dentro para Manuelita se acostumar com ela antes de a mudança chegar, e começou nossa nova vida! Havia um grande espaço de jardim e pomar e íamos passear na praia ao menos três vezes por dia. Eu era ainda um cachorrinho assustado, criado em apartamento, que não se afastava da Urda, mas era muito bom viver ali! Havia diversos outros cachorros e gatos nas casas ou nas ruas, e quatro horas depois que chegamos, a Urda já tinha uma nova amiga, a Cida. E outras e outras pessoas foram entrando na nossa vida, como a Dona Julita, a Dona Juracy, a Sheila e o Willy, o Gui e a Mara... nossa, como é diferente e bom morar aqui! Uns dias depois veio a Maria Antônia, e a Celina, e a Izabel, e a Raquel, e a Dona Nilza, e o Nei e a Dona Nega... até perco a conta de contar quantos amigos temos agora!
                                    Quem não se deu bem foi a Manuelita. Ela ficou muito assustada quando a mudança chegou e se enfiou no forro da velha casa. No princípio, descia à noite, quando ouvia o barulhinho da TV e a Dona Julita aparecia para uma visitinha. A gente estava há um mês naquela casa aonde fomos tão felizes quando apareceu um carro com uma mulher estranha e um cachorrinho. A maré estava muito alta, e a mulher jogou o cachorrinho muito longe, para que ele morresse afogado. As pessoas da comunidade que estavam ali brigaram com a mulher e ela se mandou – quando nós chegamos à praia, o cachorrinho estava justamente conseguindo sair da água a salvo. Katty, ele só tinha pelos, pulgas e fome. Quando a Urda o levou até nossa casa para ver se ele comia, ele avançou numas sobras de dois dias atrás, que eu abandonara na varanda e que estavam cheias de formigas, e comeu tudo, inclusive as formigas. Tinha tão pouca carne que teve que esperar quinze dias para poder tomar vacinas. Ele parecia uma raposinha preta, e acabou sendo o nosso Zorrilho.
                                    Um mês depois, o Chapéu, morador daqui, encontrou uma gatinha abandonada na Cachoeira e a trouxe e a deixou na entrada da nossa rua. Acabamos ficando com ela também, e como eu a AMAVA, mas a Urda não deixava eu brincar com ela porque poderia machucá-la com o meu peso, tão minúscula ela era. Nem desmamada estava. Era uma gatinha de carinha diferente, parecida com os gatos daqui, e ganhou o nome de Domitila Chungara. Quando ela cresceu um pouquinho, ficou muito amiga do Zorrilho, com quem dormia abraçadinha.
                                    Bem, a chegada de Domitila foi como veneno para Manuelita. Abandonou-nos de vez, só a víamos vez ou outra bem longe, no pomar ou na mata, e o resto do tempo ficava enfurnada no forro da casa. A Urda botava comida para ela num lugar onde havia uma prateleira bem alta, e não sei como ela sobreviveu. No total, ela ficou escondida por um ano e oito meses, e aí no meio também chegou Tereza Batista, uma cachorrona de 25 quilos, alaranjada e branca, que vivia na rua e andara mordendo algumas pessoas. Ela veio se esconder conosco na noite em que a comunidade iria matá-la. Com a Tereza Batista, completou-se a família de cinco bichos que vivem com a Urda, e então...
                                    Então ela comprou esta casinha aonde vivemos todos felizes agora! Manuelita relutou um bocado em ser nossa amiga de novo, mas acabou dando tudo certo. Somos uma grande família, com tantos amigos e mais alguns cachorros de rua, que são o TIjucano, a Loba e o Paçoca, mas quem cuida mais deles é o nosso vizinho Moisés, que dá até vermífugo e põe coleiras antipulgas neles. Mas comida, quase toda a rua dá. Eles são bem amigos da gente e gostam de correr à frente do carro da Urda a cada vez que ela sai - só que não vão muito longe, pois lá adiante tem outra família de cachorros que a gente chama de A Turma da Zona Norte e que fá-los voltar.
                                    E amanhã faz 3 anos que este tempo maravilhoso começou, e a Urda e a Maria Antônia, vão comemorar num restaurante que se chama Nossa Senhora Aparecida, onde, além da boa comida e da gentileza no atendimento, ganham pacotes de deliciosas sobras para nós!
                                    Meu, Katty, já está na hora de ir dormir. Muitas lambidas para você e não esqueça de nós. Vamos ficar esperando que você venha aqui um dia.
                                    Muito, muito carinho,

                                    Atahualpa Klueger

Sertão da Enseada de Brito, 03 de novembro de 2019.


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