terça-feira, 1 de agosto de 2017

PRAIA


Por Paccelli José Maracci Zahler (Brasília, DF)


ZUMBITEIRO

Música: Anand Rao
Letra: Jorge Amâncio


O BARQUINHO (2017)

Por Paccelli José Maracci Zahler (Brasília, DF)


VERSOS NO JORNAL

Por Ernesto Wayne (Bagé, RS)

Vou escrevendo meus versos,
Com eles vou-me entretendo,
Descrevo, escrevo, reescrevo,
Desescrevo sem parar;
Vou escrevendo meus versos
Para botar no jornal –
Um dia, ponto final
Nos versos que tantos fiz.
Quem sentir falta de mim
Não precisa ir até LÁ,
Pois que LÁ não estarei
Que sofro muito de insônia
Para me estender deitado
Num colchão que, por estofo,
Só tenha torrões de terra:
Serei trapo de papel
No qual estarão impressos
Os meus versos no jornal.
Redemoinharei nas ruas
No corrupio do vento,
Serei barco na sarjeta
E nas cascatas das lombas,
Serei folha de periódico
Pra não pisar no molhado
De salas que se lavou
E serei diário nas vilas
Onde, em série, se recorte,
Para fazer em fileiras
Meninas se dando as mãos
No enfeite de prateleiras;
Bonecas multiplicadas
Braços abertos em cruz
Com seus vestidos de letras;
Ciranda feita à tesoura
As silhuetas rendadas
Das marionetes suspensas
Nos frisos toscos de armários
Das casas dos arrabaldes;
Serei velho matutino
Que empacota compras feitas
Nos pobres bares dos bairros;
Terei, também, mas não digo
Serventia nas privadas,
Seja em tinta de impressão
Ou cilindros de crepom;
Serei embrulho de louças
De inquilinos que se mudam
E roto, todo amassado,
Irão me catar no lixo.
O restante que sobrar
Irá amarelecendo
Na palidez do papel,
Será roído nos pratos
De um refeitório de ratos
Até que, em mim, abras as portas

Um restaurante de traças...

(Nota: Ernesto Wayne é patrono da Cadeira nº 09 da ALB/DF)

DO PIOR POEMA

Por Ernesto Wayne (Bagé, RS)

(À maneira de Joaquim Osório Duque Estrada e Chico Buarque de Hollanda}

Um bom poema só se escreve lúcido
Um mau poema só se escreve bêbado

Um bom poema só se escreve sóbrio
Um mau poema só se escreve ébrio

Um bom poema se se é doméstico
Um mau poema só se escreve trêmulo

Um bom poema é uma coisa sólida
Um mau poema é uma coisa líquida

Um bom poema é comunitário
Um mau poema é de um solitário

Um bom poema pra quem a vida é boa
Um mau poema pra quem a vida é má

Um bom poema é pra professor
Um mau poema não tem profissão

Um bom poema pra quem a vida é canto
Um mau poema pra quem a vida é pranto

O bom poema é o que a gente mostra
O mau poema é o que a gente esconde

Um bom poema qualquer um o faz
Um mau poema é o que se desfaz

Um bom poema é pra ser estudado
Um mau poema é pra ser decorado

Um bom poema é nosso filho plácido
Um mau poema é nosso filho fúlgido

Um bom poema é nosso filho íntegro
Um mau poema é nosso filho pândego

Um bom poema é nossa maquilagem
Um mau poema é nossa mesma imagem

Uma mesma coisa é o seu contrário
O contrário de uma coisa é a própria coisa

Se fiz, esqueçam os meus bons poemas
Melhor de mim é meu pior poema


(Nota: Ernesto Wayne é patrono da Cadeira n° 09 da ALB/DF)

HOMENAGEM TARDIA

Por Pedro Du Bois (Balneário Camboriú, SC)

Homenageio em vocês 
o badalar não desdobrado 

é de luto a minha homenagem
e vocês não estão presentes

suas ausências privilegiam
o futuro de tempos melhores

homenageio em vocês
a palavra triste da saudade

é de luto a minha homenagem
e vocês estão ausentes

a minha saudade
é tardia e as ameaças

permanecem presentes.

LATE HOMAGE

By Pedro Du Bois (Balneário Camboriú, SC)

 (Marina Du Bois, English version)

I homage in you
the unturned bells

my tribute is in mourning
and you are not present

your absences privilege
the future of better times

I homage in you
the sad word of longing

my tribute is in mourning
and you are not present

my longing
is late and the threats

remain present.

COMODIDADE

Por Pedro Du Bois (Balneário Camboriú, SC) 

Num dia comum

de horas comuns

em atividades comuns

nas idas e voltas comuns



de repente

como nada

como tudo

como sempre

a irrealidade

toma conta

incômoda

da comodidade

em que nos escondemos



incomuns pessoas

deslocadas

desfocadas

desesperadas.

CONVENIENCE

By Pedro Du Bois (Balneário Camboriú, SC) 

(Marina Du Bois, English version)

On an ordinary day
of ordinary hours
in ordinary activities
on ordinary backs and forths

suddenly
like nothing
like everything
the unreality
takes over
uncomfortable
with the convenience
in which we hide

unusual people

displaced

DEATH

By Pedro Du Bois (Balneário Camboriú, SC)

(Marina Du Bois, English version)

They were ready to leave
armed with modern
ballistic
scientific
weapons

their commander in the academy
orders: onwards!

the soldiers go in honor
of their steady steps

stumbling blocks during the battle
before survival
points the gun and science
shoots before their eyes

then fingers will be stiff and strong

and will not stop squeezing the triggers.

MORTE

Por Pedro Du Bois (Balneário Camboriú, SC)


Estavam prontos para a partida

armados com modernas

armas

científicas

balísticas



seu comandante na academia

ordena: avante!



vão os soldados na honra

de seus passos firmes



trôpegos durante a batalha

antes que a sobrevivência

aponte a arma e a ciência

atire ante seus olhos



então os dedos rígidos e fortes

e não pararão de apertar os gatilhos.


ONÃ SILVA, A POETISA DO CUIDAR


Por Paccelli José Maracci Zahler (2017)




ONÃ SILVA E EU (2017)

Por Paccelli José Maracci Zahler (Brasília, DF)



AOS PÉS DE CRUZ E SOUSA

                                                            Aos Pés de Cruz e Sousa
Por Clarisse da Costa (Biguaçu, SC)

            São páginas ainda em branco, nada amareladas pelo tempo. Mas são versos antigos em traços e passos doídos. Capa versada com sua letra, cor esverdeada e uma rachadura, marcas de quem abriu o livro. De quem foi além da capa. Um luso poeta em sua agonia. Um negro marcado. Em seus traços celestes regiões distantes um quimera de almas profundas em fundo de tristeza e de agonia, sem a dor da carne. Uma visão gerada no horror.
            Assinalado é Cruz e Sousa. Louco imortal, representante da minha loucura! Aos pés da Cruz nem Costa, Silva ou Sousa. Poeta sem limites pra traçar cada linha poética!

Travessias

            A travessia nas celestes regiões distantes chega até a alma, onde se encontra um fundo melancólico da esfera. Os muros são impostos, fatos e traços marcados. A sombra dos supremos sofrimentos de Cruz e Souza são flores negras no jardim dos negros, sem a cor da expectativa ou vida.
            Uma sombra que acompanha sangrentas mortes, uma bala perdida que nem perdida estava. Ou erros. Ou fatos, pessoas marcadas pra morrerem. No jornal eram três pessoas e um negro.
            O negro não é gente? O perfil negro é fora dos padrões. E os murros são tantos e ali permanecem os muros, o mundo para nós é negro e duro, cruel e obscuro. E no versado e esverdeado fim de sua página diz: ‘’Sei que cruz infernal prendeu-te os braços E o teu suspiro como foi profundo!’’


ESPERANÇA GARCIA

Por Clarisse da Costa (Biguaçu, SC)

            A esperança requer perseverança e segundo Wikipédia, é uma crença emocional na possibilidade de resultados positivos com eventos e circunstâncias da vida pessoal. E não por acaso Garcia tinha como primeiro nome Esperança. Negra escrava viu na sua capacidade de ler e escrever a sua esperança. Ela cansada dos mais tratos que sofria escreveu uma petição.
            Tudo começou quando Esperança Garcia fora escravizada confiscada e isso aos padres jesuítas, expulsos dantes pelo Marquês de Pombal. A força a levaram Esperança para a Fazenda Algodões, perto Floriano. A mesma esperança, segundo Wikipédia é uma das virtudes teológicas do cristianismo. Segundo este, por meio desta virtude, os cristãos desejam e esperam de Deus a vida eterna é o Reino de Deus como felicidade. Mas nesse caso me refiro a uma pessoa, escrava. Como falava Esperança Garcia foi levada a força para uma Fazenda, perto de Floriano, enfim, uma Fazenda em Nazaré do Piauí.
            Em alguns meses depois, exatamente seus de novembro de 1770, a escrava escreveu uma petição a seu favor para o Presidente da Província. Na carta relatou os maus tratos que ela e seu filho sofriam na Fazenda Algodões, para tamanho espanto de todos, pois o que se sabe é que naquela época negro algum tinha direito ao ensino básico e quem fosse pego a ensiná-lo era preso ou processado.


(Fragmento do livro Negras Guerreiras)

NO TEMPO DA CEGONHA

Por Urda Alice Klueger (Enseada de Brito, SC)

Numa manhã de março de 1956, eu acordei com o meu mundo virado de cabeça para baixo. Até aquele dia, eu não observara nada diferente na minha mãe, mas naquela manhã ela me pareceu enorme dentro do seu vestido de seda preta, estampada de ramalhetes de flores coloridas. Lembro que fazia sol, e, decerto, também fazia calor, mas isso me passou despercebido, diante das coisas estranhas que estavam acontecendo. Esperava-se um táxi para levá-la ao hospital, onde a ‘cegonha’ iria lhe entregar uma criança. Até acordar, eu não sabia nada a respeito daquilo, e acordar com todo aquele alvoroço em casa e observar que minha mãe parecia ter inflado foi bastante chocante.
O táxi (que a gente chamava de ‘carro de praça’) chegou e levou minha mãe; ficamos, eu e minha irmã mais velha, na vizinha Dona Cecília, aguardando que meu pai voltasse. Eu me encantava com a casa da Dona Cecília, que tinha sótão e um oratório de Nossa Senhora lá em cima, mas naquele dia não parecia tão interessante assim ficar à janela do sótão esperando meu pai, depois de toda aquela confusão na minha vida.
Meu pai voltou, afinal. Minha irmã iria ficar na casa da Dona Cecília até minha mãe voltar do hospital, mas eu fui na garupa da bicicleta do meu pai até o serviço dele – mais tarde ele me levaria para a casa da minha madrinha.
Não lembro dos meus sentimentos naquelas horas, mas decerto que eram péssimos, pois, no serviço do meu pai, pus-me a chorar inconsolavelmente. Meu pai trabalhava num clube chique de Blumenau, com muitos espaços e jardins, e lá também estavam duas meninas que eram filhas ou netas, não sei, do ecônomo do clube. Eram meninas maiores que eu, deviam ter já uns dez anos, e, enquanto meu pai trabalhava, elas me levaram para passear e tentaram me consolar. Entre outras coisas, me perguntaram se eu havia botado açúcar na janela, para que a cegonha o comesse e trouxesse um bebê bem bonito para nós. Eu nunca havia ouvido falar naquilo, e saber que havia deixado de cumprir um dever tão importante para com a cegonha me deixou apavorada. Chorei tanto, mas tanto, então, de medo que a ‘cegonha’ não trouxesse o bebê porque eu não havia pensando no açúcar, que as meninas não tiveram outro jeito: foram comigo até a cozinha do clube, encheram uma pesada xícara com açúcar e a colocaram na janela de lá. Aquilo me consolou um pouco, mas ficou uma dúvida: será que a cegonha saberia que aquele açúcar ali tinha a ver com o bebê que deveria ir para a minha casa? Era uma pergunta muito séria, e a angústia permaneceu. Afinal, fazia poucos dias que eu completara quatro anos.
Hoje as coisas estão bem mais fáceis para as crianças que estão à espera de irmãozinhos. Estou acompanhando o caso da minha amiga Sônia e seu filhinho Bruno. Desde que Bruno tinha dois anos, que a mãe começou a chamar sua atenção para as barrigas das mulheres grávidas, explicando-lhe que ali havia um bebê.  Bruno nunca ouvir falar em cegonha; sempre soube como os bebês vinham para este mundo. Bruno, agora, tem cinco anos, e sua mãe espera um novo bebê. Sem problemas, sem traumas, ele está curtindo a gravidez da mãe e a espera do irmãozinho com toda a serenidade. Nunca irá acordar, numa  manhã, com a vida de cabeça  para baixo porque a mãe irá para um lugar desconhecido, onde a ‘cegonha’ lhe entregará um bebê, que só será bonito se ele colocar açúcar na janela. Nunca sofrerá a angústia e o medo de não ter cumprido com uma obrigação para com a cegonha. Saberá o tempo todo que um irmãozinho irá chegar, e acompanhará seu desenvolvimento através das fotos que se obtém quando as mães fazem a ultrassonografia. Em suma, a chegada de um novo bebê causará a Bruno, no máximo, um pouco de ciúmes por ter ele perdido o colo.
Acho que as crianças têm menos problemas, hoje. Eu gosto das fantasias e das lendas, mas vivi na pele a angústia de não saber que tinha que colocar açúcar na janela para a cegonha nos trazer um bebê bonito. Foi um susto descobrir, de repente, que minha mãe tinha ficado enorme e que iria nos deixar por alguns dias, coisa que nunca acontecera. É mais fácil para uma criança esperar um bebê junto com a mãe, e não levar os sustos que vivi um dia.
E, só para completar, esclareço que a falta de açúcar para a cegonha não chegou a causar problemas: veio para nós, naquela ocasião, minha irmã Margaret, toda bonitinha, sem nenhum problema por conta da falta de açúcar na janela!

Blumenau,SC, 10 de novembro de 1996.


FRIO PERTO DO MONTE CAMBIRELA

Por Urda Alice Klueger (Enseada de Brito, SC)

        (Para S. R. V. S.)

Dez da manhã de segunda-feira, e 14 graus Centígrados no Sertão da Enseada de Brito. Baixará mais oito graus hoje. O céu, de nuvens baixas, está sinistro e ameaçador. Fico pensando se virá chuva ou virá neve – afinal, faz pouco tempo (3 anos? 4 anos?) que nevou em Santa Catarina a nível do mar. As montanhas próximas têm os cumes escondidos pelas nuvens, e meus cachorros e meus gatos, na noite que passou, comeram muito mais do que o habitual, como se estivessem a fazer reservas de energia para enfrentar o frio que quase posso ver como vem rolando pelo céu como quem desenrola um grande tapete.
                                    Se naquele inverno recente nevou à beira do mar, como terá sido no Monte Cambirela, que quase faz sombra aqui, nas tardes, e que tem mais de mil metros de altura? É lindo, esse monte, que é o fim de uma serra com o mesmo nome e em cujo topo, em profunda caverna, o demônio está preso, segundo a mitologia Guarani – meus vizinhos, no outro lado cá do morro de traz, são os Guarani e morro de traz se chama Morro dos Cavalos. Penso, então, em outros tempos, em outras neves, e em como antigos Guaranis e os antigos Sambaquianos enfrentaram tais momentos de frio nos últimos 6.000 anos por aqui, pois já faz 6.000 anos que a última glaciação se foi e chegamos ao que a ciência chama de “ótimo climático”, que quer dizer que é o clima que temos agora, que nem é tão ótimo assim, principalmente quando penso nos vizinhos Guarani e suas casas desprovidas de quase tudo.  Por sorte há lá a Opy, casa sagrada que os protege e garante a prisão para sempre daquele demônio lá no topo do Monte Cambirela.
                                    Sim, e lembrar de novo desse morro me leva a outras divagações, e fico a pensar na separação que houve (ainda não terminou) dos continentes africano e americano, e dos profundos abalos sísmicos e do tanto vulcanismo que aconteceu, então, para separar assim essas duas terras que eram uma só. O que é Santa Catarina hoje fazia parte de uma terra que na África, hoje, se chama Namíbia, e metade das serras próximas do litoral catarinense estão na Namíbia. Há até pedaços do deserto do Kalahari, na Namíbia, que hoje são litoral catarinense. Um morro tão bonito e grande assim aqui na beira do mar decerto tem sua outra parte lá do outro lado do oceano – como não pensara nisto antes?
E então, quando imagino o ribombar atroador de todo aquele vulcanismo e terremotos do tempo da separação, dou-me conta que os seis graus de temperatura que haverá hoje à noite é coisa pouca quando se está numa casa bem protegida, com cachorros e gatos dormindo ao redor da gente.
Visto-me de verde com quentes casacos e uso no cabelo uma flor de seda que ganhei de presente de uma princesinha encantada que às vezes aparece. A chuva já começou e a vida segue.

                        Sertão da Enseada de Brito, SC, 17 de julho de 2017.


SESQUICENTENÁRIO DA INDEPENDÊNCIA

Por Urda Alice Klueger (Enseada de Brito, SC) 

Nós, brasileiros, já vivemos coisas muito estranhas. Quem não se lembra como, durante o governo Sarney, todos os meses tínhamos que ir ao Correio comprar um selo para colar na janela do carro? Tal selo representava um imposto, e a cada mês tinha cor diferente. Lembro agora do ridículo de todos os nossos carros, com aquela fila de selos coloridos colados na janela da frente, isto sem falar das filas quilométricas, no Correio, para se adquirir o selo ridículo. Na época, o fato foi devidamente ridicularizado na telenovela “Que rei sou eu”, novela na qual os personagens tinham que comprar uns selos para colar nos focinhos dos seus cavalos. Morro de rir quando me lembro. Também sei que repeti, acima, uma porção de vezes, a palavra “ridículo”. Não havia outra que coubesse no seu lugar.
Antes do governo Sarney, porém, vivemos a Ditadura, e ela nos impingiu coisas mais ridículas ainda. Lembram-se do aconteceu em 1972?
Em 1972 fazia cento e cinquenta anos que D. Pedro I havia proclamado a independência do Brasil. O centenário de tal fato já havia sido devidamente comemorado cinquenta anos antes, mas o governo da Ditadura estava precisando de algum motivo marcante para fazer o povo vibrar de patriotismo, e não deu outra: resolveu festejar o Sesquicentenário da Independência. Nunca tínhamos ouvido, antes, a palavra sesquicentenário, mas tivemos que embarcar num ano de comemorações em cima da palavra desconhecida, com direito ao Hino do Sesquicentenário e tudo o mais.
Era, aquele, um período tenebroso da História do Brasil. 1968 ainda estava muito perto, e não se possuíam garantias constitucionais. Ridículos monstros, filhos da Ditadura, pontilhavam o País e, como não podia deixar de ser, Blumenau também tinha o seu monstro: chamava-se Coronel B., e levava a Ditadura mais a sério que qualquer outro. A crônica da cidade se lembra perfeitamente de todas as arbitrariedades do Coronel B. e nem é bom entrar em detalhes sobre o que dizem os blumenauenses quando se lembram dele.
Para o Coronel B., mais de duas pessoas juntas na rua, à noite, significava a presença de uma célula comunista ambulante, pronta para botar o País em perigo. Os “subversivos”, palavra da moda, eram atentamente vigiados pelo nosso monstro, que atravessava as madrugadas de sexta e de sábado vigiando a saída dos bailes com uma patrulha de soldados, para ver quem se reunia para conversar sobre um complô. É claro que os “subversivos” encontrados eram presos e levados para o quartel do Exército, onde sofriam humilhações, amarguras e, eventualmente, até torturas.
Foi numa dessas madrugadas de 1972 que o meu amigo escritor Célio de Morais saiu, com sua turma, da boate familiar Hum-Papá, ponto alto do encontro da moçada de Blumenau, nessa época. Ninguém estava com vontade de ir para casa, ainda, e sentaram-se todos numa calçada para conversar mais um pouco, coisa proibida pela Ditadura e, principalmente, pelo nosso Coronel B. . Ninguém estava botando o País em perigo: falavam de música e de gatinhas, coisa tão a gosto de todos os rapazes do mundo. Só que, minutos depois, quem aponta na esquina? Nada mais nada menos que o Coronel B. com sua patrulha!
Claro que os nossos amigos tinham virando subversivos, e iriam passar as próximas horas na cadeia do quartel, se não fosse coisa pior. Fugir, não dava: os soldados armados receberiam ordem de atirar naqueles comunistas que tinham se atrevido a conspirar em plena via pública – ficar seria a maior complicação. Aí Célio teve a ideia, e começou a cantar a plenos pulmões, acompanhado pelo resto da turma:
“Marco extraordinário
Sesquicentenário da Independência!
Potência de amor e paz
Este Brasil faz coisas
Que ninguém imagina que faz...”

Os mais velhos vão lembrar-se da música do Hino do Sesquicentenário. O engraçado da coisa foi que o Coronel B. esbarrou na música sagrada da Ditadura para aquele ano, e ficou a prestar continência. E os nossos rapazes cantaram e cantaram, a plenos pulmões, mostrando a sua lealdade à Ditadura, até que o coronel se cansou e foi embora.
Eles morrem de rir, até hoje, quando contam.


Blumenau, SC,  23 de março de 1997.

TAPA NA CARA

Por Urda Alice Klueger (Enseada de Brito, SC)

            (Escrito em 2003)

                                   Teve gente, em 11 de Setembro de 2001, que foi lá nos Estados Unidos e derrubou umas torres – eu vi coisa muito mais sutil, faz pouquíssimos dias, lá em Brasília: foi um verdadeiro tapa na cara de um tal de George W. Bush.
                                   Tudo começou em 27 de Novembro passado, quando o povo brasileiro elegeu Lula para Presidente da República. Como ser humano, como cidadã, como historiadora e como escritora, na mesma hora fiquei doidinha para ir até Brasília ver a posse daquele primeiro legítimo representante do povo brasileiro a postar-se ao leme do país. Saí perguntando: “Quem vai? Quero ir junto!” . Daqui de Blumenau, que eu saiba até agora, não foi ninguém – mas descobri que se organizava uma excursão daquelas bate-volta lá em Rio do Sul, e num instante estava devidamente engajada na mesma.
                                   Fomos. Viajamos 30 horas de muita emoção, mas isto fica para outra crônica. O fato é que no dia 1º de janeiro do ano da graça de 2003, por volta da uma hora da tarde, como uns 200.000 outros brasileiros, eu estava na Esplanada dos Ministérios, em Brasília, tentando caminhar em direção ao Congresso, para ver a posse daquele homem que estava representando as esperanças de quase 70% de um povo, e de mais uns vinte e tanto outros por cento também, porque teve pobre e miserável votando contra ele porque gente metida a sabida, mas que não se importa se as pessoas comem três vezes por dia ou não, dizia àquelas pessoas desamparadas pela fortuna que se votassem em Lula o Brasil ficaria igual à Argentina – e que aquelas pessoas perderiam o nada que tinham.   
                                   Bem, era uma da tarde de 1º de janeiro, e pela Esplanada dos Ministérios tomei o rumo do Congresso, munida de gravador, máquina fotográfica e binóculo. Queria chegar perto do Congresso para ver, mais adiante, Lula sair de lá Presidente. Não deu para chegar lá – a multidão, grande demais, foi contida pela polícia, antes que acontecessem acidentes tipo pisoteamento, etc. E, numa quadra muito distante, antes que Lula passasse pelo meio da multidão que era pura emoção, eu registrei no meu gravador: “Estou com medo. Ainda bem que aqui não é como Dallas, não tem prédios. Só os Ministérios. E eles devem estar bem vigiados. Mas estou com medo.” E olhava cuidadosamente, ao meu redor, para ver se não havia alguém portando algum tipo de arma.
                                   Mais tarde, no ônibus de volta, soube que todos os meus companheiros tinham pensado coisa parecida e, como eu, tinham também espiado as suas redondezas, no medo de que algum louco estivesse no meio da multidão.
                                   Nós, multidão, fomos liberados pela polícia para seguir em direção ao Congresso, depois que Lula passou incólume no nosso meio – mas paramos pelo caminho quando nos deparamos com os excelentes telões instalados por todos os lados, e nos sentamos na grama, e nos preparamos para ver aquele momento único na História do Brasil. Os telões eram tecnologicamente tão bons que nos sentíamos como que dentro do Congresso e, depois, no Palácio do Planalto. Cantávamos e aplaudíamos quando as mesmas coisas aconteciam lá adiante, nos recintos fechados, como se lá estivéssemos, e nem vou contar da grande, IMENSA vaia que sobrou para Fernando Henrique quando entregou a faixa e o posto.
                                   Tá, as solenidades todas aconteceram, e sabíamos que Lula já Presidente viria passar em ziguezague no nosso meio, no meio da multidão. Mesmo dentro daquela imensa emoção, eu estava muito desassossegada – e se houvesse alguém com uma arma? Cuidadosamente, observava cada pessoa das minhas redondezas, e pensava coisas assim: “Se ver alguém com uma arma, jogo-me contra a pessoa, derrubo-a, faço um escândalo.” E Lula veio e passou, maravilhoso e sorridente, e depois soube que houve quem furasse a segurança e quase o derrubasse do carro, mas ali por perto de mim nada aconteceu, embora fosse muito evidente que qualquer um poderia aproximar-se do Presidente, bastava fazer uma forcinha. Mesmo com toda aquela emoção, respirei aliviada quando o Presidente se foi e os ares de Brasília passaram a ser cortados pelos aviões da Esquadrilha da Fumaça.
                                   Mais tarde, no ônibus da volta, todos nós discutimos o assunto, e, pasma, soube que todos tinham pensado e feito a mesma coisa que eu: vigiado seus arredores, atentos e alertas, prontos para fazer qualquer coisa para defender o Presidente. Houve quem se disse capaz de jogar-se entre o Presidente e alguma arma que porventura aparecesse, tomar um tiro que não lhe era destinado. E eu não pensei, mas muitos outros pensaram em John Lennon, que foi morto por um fã, e não por um inimigo.
                                   A grande conclusão à qual se chegou dentro daquele ônibus que rumava na direção do Sul do Brasil foi que quem garantira a segurança do Presidente, o tempo todo, fora o povo, aquele povo que viera de todos os lados do país para ver a mudança para um tempo de Esperança, e que defenderia o representante da sua Esperança  até com a própria vida, se fosse necessário. Tapa na cara de um certo Bush, que com todo o seu sofisticadíssimo aparato de segurança, que quer incluir até uma coisa chamada “Guerra nas Estrelas”, não tem segurança nenhuma, e pode ter seu país detonado por qualquer um a qualquer hora. Nosotros, acá, não precisamos de “Guerra nas Estrelas”- temos um povo para nos dar segurança. A gente não costuma ficar fazendo maldade para os outros – basta-nos o nosso próprio povo para nos proteger.
                                   E, só para encerrar, conto mais um pouquinho sobre a discussão que rolava dentro do ônibus. Houve quem defendesse que qualquer um de nós faria a mesma coisa por qualquer pessoa, e se estava naquele: “Qualquer pessoa mesmo? Tem certeza?” – quando alguém aprofundou a discussão:
-          E se a qualquer pessoa fosse o Bush?


Blumenau, SC, 09 de Janeiro de 2003.