Por Urda Alice Klueger (Enseada de Brito, SC)
Nós, brasileiros, já vivemos coisas
muito estranhas. Quem não se lembra como, durante o governo Sarney, todos os
meses tínhamos que ir ao Correio comprar um selo para colar na janela do carro?
Tal selo representava um imposto, e a cada mês tinha cor diferente. Lembro
agora do ridículo de todos os nossos carros, com aquela fila de selos coloridos
colados na janela da frente, isto sem falar das filas quilométricas, no
Correio, para se adquirir o selo ridículo. Na época, o fato foi devidamente
ridicularizado na telenovela “Que rei sou eu”, novela na qual os personagens
tinham que comprar uns selos para colar nos focinhos dos seus cavalos. Morro de
rir quando me lembro. Também sei que repeti, acima, uma porção de vezes, a
palavra “ridículo”. Não havia outra que coubesse no seu lugar.
Antes do governo Sarney, porém,
vivemos a Ditadura, e ela nos impingiu coisas mais ridículas ainda. Lembram-se
do aconteceu em 1972?
Em 1972 fazia cento e cinquenta
anos que D. Pedro I havia proclamado a independência do Brasil. O centenário de
tal fato já havia sido devidamente comemorado cinquenta anos antes, mas o
governo da Ditadura estava precisando de algum motivo marcante para fazer o
povo vibrar de patriotismo, e não deu outra: resolveu festejar o
Sesquicentenário da Independência. Nunca tínhamos ouvido, antes, a palavra
sesquicentenário, mas tivemos que embarcar num ano de comemorações em cima da
palavra desconhecida, com direito ao Hino do Sesquicentenário e tudo o mais.
Era, aquele, um período tenebroso
da História do Brasil. 1968 ainda estava muito perto, e não se possuíam
garantias constitucionais. Ridículos monstros, filhos da Ditadura, pontilhavam
o País e, como não podia deixar de ser, Blumenau também tinha o seu monstro:
chamava-se Coronel B., e levava a Ditadura mais a sério que qualquer outro. A
crônica da cidade se lembra perfeitamente de todas as arbitrariedades do
Coronel B. e nem é bom entrar em detalhes sobre o que dizem os blumenauenses
quando se lembram dele.
Para o Coronel B., mais de duas
pessoas juntas na rua, à noite, significava a presença de uma célula comunista
ambulante, pronta para botar o País em perigo. Os “subversivos”, palavra da
moda, eram atentamente vigiados pelo nosso monstro, que atravessava as
madrugadas de sexta e de sábado vigiando a saída dos bailes com uma patrulha de
soldados, para ver quem se reunia para conversar sobre um complô. É claro que
os “subversivos” encontrados eram presos e levados para o quartel do Exército,
onde sofriam humilhações, amarguras e, eventualmente, até torturas.
Foi numa dessas madrugadas de 1972
que o meu amigo escritor Célio de Morais saiu, com sua turma, da boate familiar
Hum-Papá, ponto alto do encontro da moçada de Blumenau, nessa época. Ninguém
estava com vontade de ir para casa, ainda, e sentaram-se todos numa calçada
para conversar mais um pouco, coisa proibida pela Ditadura e, principalmente,
pelo nosso Coronel B. . Ninguém estava botando o País em perigo: falavam de
música e de gatinhas, coisa tão a gosto de todos os rapazes do mundo. Só que,
minutos depois, quem aponta na esquina? Nada mais nada menos que o Coronel B.
com sua patrulha!
Claro que os nossos amigos tinham
virando subversivos, e iriam passar as próximas horas na cadeia do quartel, se
não fosse coisa pior. Fugir, não dava: os soldados armados receberiam ordem de
atirar naqueles comunistas que tinham se atrevido a conspirar em plena via
pública – ficar seria a maior complicação. Aí Célio teve a ideia, e começou a
cantar a plenos pulmões, acompanhado pelo resto da turma:
“Marco extraordinário
Sesquicentenário da Independência!
Potência de amor e paz
Este Brasil faz coisas
Que ninguém imagina que faz...”
Os mais velhos vão lembrar-se da
música do Hino do Sesquicentenário. O engraçado da coisa foi que o Coronel B.
esbarrou na música sagrada da Ditadura para aquele ano, e ficou a prestar
continência. E os nossos rapazes cantaram e cantaram, a plenos pulmões,
mostrando a sua lealdade à Ditadura, até que o coronel se cansou e foi embora.
Eles morrem de rir, até hoje,
quando contam.
Blumenau, SC, 23 de março de 1997.
Eca! Fantasioso falar ditadura. Um grande contra-golpe no comunismo? Sim!
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