Por Eneida Moraes Miranda Zahler
INTRODUÇÃO
João
Simões de Lopes Neto está classificado como escritor regionalista do Rio Grande
do Sul. Para narrar os Contos Gauchescos, com um acento popular
autêntico e espontâneo, o autor criou o personagem Blau Nunes, vaqueano
caboclo, que cruzou toda a Província no tempo em que as estâncias não tinham
divisas bem definidas.
Augusto
Meyer, prefaciando a edição de 1961 dos Contos Gauchescos e Lendas do Sul,
afirma que talvez “ninguém no Brasil tenha conseguido uma identificação tão
profunda com o espírito dos seus conterrâneos, a tal ponto que o próprio Simões
Lopes Neto, o pelotense culto e de família tradicional, inteiramente se apaga
na sombra de Blau, o vaqueano”.
Essa postura não é comum entre os
escritores regionalistas que geralmente portam-se ante o homem do povo como
espectadores finos que se divertem com o linguajar caipira.
Simões Lopes Neto consegue
uma continuidade entre o linguajar e a estilização, jogando com os recursos do
estilo indireto e, raras vezes, o leitor se dá conta do momento em que a prosa
rude de Blau Nunes deixa transparecer a voz do autor. Um exemplo desses raros
momentos pode ser encontrado na descrição do crepúsculo em Trezentas Onças, onde
parece que o personagem cedeu a palavra ao autor:
“A estrada estendia-se
deserta; à esquerda os campos desdobravam-se a perder de vista, serenos,
verdes, clareados pela luz macia do sol morrente, manchados de pontas de gado
que iam se arrolhando nos paradouros da noite...”
Embora se enquadrem na
literatura regionalista, os Contos Gauchescos acham-se marcados de
verdade humana, ultrapassando o círculo do interesse local. Em toda a obra o
aspecto psicológico se impõe e a paisagem, as singularidades do ambiente e a
forma dialetal se unem para dar um colorido especial à expressão das dores e
alegrias humanas.
O ESTILO
Entende-se por estilo,
nas palavras de Othon M. Garcia (1983), “tudo aquilo que individualiza uma
obra, como resultado de um esforço mental, de uma elaboração do espírito,
traduzindo idéias e imagens. A rigor, a Natureza não tem estilo; mas tem-no o
quadro em que o pintor a retrata ou a página em que o escritor a descreve”.
Na literatura do tempo de
Simões Lopes Neto, a paisagem era uma peça sobreposta ao conto ou ao romance,
não fazendo com eles um todo. Retirada da história, esta funcionava
perfeitamente.Fazia-se a paisagem pela paisagem.
Na obra de Simões Lopes
Neto, a paisagem é assimilada, não impressiona em detalhes mas no conjunto. O
contista gaúcho sabia fundir as notas descritivas do ambiente no próprio corpo
da narração, em períodos onde vai se desenrolando a ação do conto.
Blau Nunes não se detém a
derramar frases sobre um rio ou uma estância. Contadas por um campeiro como são
as histórias de Simões Lopes Neto, seria nelas impertinente o exagero de
paisagem. Sobretudo no caso do personagem que fala para a gente do seu meio.
Diz Aurélio Buarque de
Hollanda (1961) que “ a frugalidade paisagística é, pois, uma das manifestações
mais finas da arte de Simões Lopes Neto”. Por exemplo, o seguinte trecho do
conto Trezentas Onças:
“- Olhe, ali, na restinga, à sombra daquela mesma
reboleira de mato, que está nos vendo, na beira do passo, desencilhei.”
ELEMENTOS DO ESTILO
a)
O
PITORESCO
As comparações contidas na
obra de Simões Lopes Neto são bastante originais:
“uma
carta grande, fechada com mais obreias do que tragas de vinho tem um copo de
missa, de padre gordo.” (Melancia
– Coco Verde)
“olhava pra gente, como o
sol olha pra água: atravessando!” (Duelo de Farrapos)
Esse pitoresco, porém não está só nas
comparações mas no uso de certos modismos populares:
“enquanto a galinha lambe
a orelha!” (O Mate do João Cardoso)
“A estrangeirada foi quem
ensinou a gente de cá mergulhar e ficar de cabeça enxuta...” (Contrabandista)
b)
A
CONCORDÂNCIA
Silepse
Algumas
vezes o autor emprega a silepse de número:
“E
que torunas! Cada bicho pesado, criado na pura grama vermelha, ligeiros
como gatos...” (Juca Guerra)
“Muita
gente anda no mundo sem saber pra quê: vivem , porque vêem os
outros viverem.” (Artigos de Fé do Gaúcho)
c)
A
REGÊNCIA
A regência empregada pelo contista,
não raro, é inteiramente pessoal, apoiada na analogia, sendo que alguns verbos
aparecem com regimes que não figuram nos dicionários:
“E tais cuidados deu-lhe que a planta
pegou, botando raízes firmes e espigando ramos e folhas.” (Manantial)
Nos dicionários, o verbo espigar aparece
apenas como intransitivo, como também o verbo entreparar no exemplo
seguinte:
“...
e até o coveiro se entreparou atristado...” (Penar de Velhos)
d)
A
ELIPSE
Nos Contos Gauchescos,
as elipses são constantes, podendo ser puramente literárias, ou colhidas na
língua viva do povo.
Na apresentação do herói
Blau:
“...benquisto tapejara
Blau Nunes, desempenado do arcabouço de oitenta e tantos anos, todos os dentes,
vista aguda e ouvido fino...”
Em Correr Eguada:
“... então o gaúcho desenredava as boleadeiras e
assinalava e mal isto , já o bagual se aprumava...”
A omissão do fazia
depois de mal aviva o sentido de rapidez na transição entre as ações do
gaúcho e a do bagual.
e)
O
PLEONASMO
Os pleonasmos são abundantes nas
páginas de Simões Lopes Neto, alguns de sabor popular, outros resultantes de
influência literária.
No conto Boi Velho,
encontra-se:
“...tal e qual como uma pessoa penarosa...”
Em Penar de Velhos:
“ ...as mulheres desataram num pranto
de choro...”
f)
POLISSÍNDETO
Essa figura de linguagem, bem usada,
dá vida e cadência ao discurso:
“...ele era um perdidaço pela cachaça
e pelo truco e pela taba...” (Negro Bonifácio)
“E ajoelhou...e caiu...e morreu...” (Boi
Velho)
“...tudo aquilo treme e bufa e
borbulha...” (Manantial)
g)
A
REPETIÇÃO
Elemento que não só dá
ênfase, como também cadência:
“Pois o velho
olhou...olhou...e ficou calado. E calado saiu.” (Chasque do Imperador)
“...era eu que
encilhava-lhe o cavalo, que dormia atravessado na porta dele, que
carregava os papéis dele e as armas dele.” (Chasque do
Imperador)
“E rindo e chorando
estava, sem saber porquê...sem saber porquê, rindo e chorando, quando alguém
gritou...” (Contrabandista)
h)
AS
RETICÊNCIAS
Simões Lopes
Neto abusa das reticências, e elas vêm muitas vezes acompanhadas de exclamação.
Para Aurélio
Buarque de Hollanda (1961), “tais sinais, sendo, como são, psicológicos, não se
impondo como necessidade de respiração, podem muitas vezes ser dispensadas, com
vantagem para o estilo.”
Há, porém,
momentos em que o resultado alcançado com o grande uso das reticências é
positivo, com por exemplo:
“- Há que
tempos eu não chorava!...Pois me vieram lágrimas..., devagarinho, como
gateando, subiam... tremiam sobre as pestanas, luziam um tempinho... e ainda
quentes, no arranco do galope lá caíam elas na polvadeira da estrada, como um
pingo d’água perdido, que nem mosca nem formiga daria com ele!...” (Trezentas
Onças)
i)
AS
QUALIDADES ESTILÍSTICAS MAIS PESSOAIS
Para exemplificar as
marcas nitidamente pessoais e os traços mais vivos do escritor, vale citar a
descrição da paisagem das Trezentas Onças:
“Nos atoleiros, secos, nem
um quero-quero: uma que outra perdiz, sorrateira, piava de manso por entre os
pastos maduros; e longe, entre o resto da luz que fugia de um lado e a noite
que vinha, peneirada, do outro, alvejava a brancura de um joão-grande, voando,
sereno, quase sem mover as asas como uma despedida triste, em que a gente não
sacode os braços...
Foi caindo uma aragem fresca; e um silêncio grande, em
tudo.”
Na opinião de Aurélio
Buarque de Hollanda (1961), essa “é uma das mais belas descrições de paisagem
da língua portuguesa”; e Simões Lopes Neto consegue escapar do banal e do
rebuscado na descrição de um crepúsculo, coisa bastante batida na literatura.
Nessa descrição, nota-se
uma precisão sensível na colocação das palavras, ao mesmo tempo em que o ritmo
um tanto arrastado se harmoniza com a lentidão do entardecer.
j)
O
LIRISMO
Simões Lopes
Neto é, sem dúvida, um poeta. Sua sensibilidade é apurada, sendo capaz de ter
empatia não apenas com o ser humano, mas também com os animais, os vegetais e
até mesmo com os seres inanimados:
“O boi velho sentindo-se
ferido, doendo o talho, quem sabe se entendeu que aquilo seria um castigo,
algum pregaço de picana, mal dado, por não estar ainda arrumado...- pois vancê
creia!-: soprando o sangue em borbotões, já meio roncando na respiração, meio
cambaleando, o boi velho deu uns passos mais, encostou o corpo ao comprido do
carretão e meteu a cabeça, certinho, no lugar da canga, entre os dois
canzis...e ficou arrumado, esperando que o peão fechasse a brocha e lhe
passasse a regeira na orelha branca...
E ajoelhou...e caiu...e
morreu.” (Boi Velho)
E no Manantial:
“O arranchamento alegre e
farto foi desaparecendo...o feitio da mão da gente foi-se gastando, tudo foi
minguando; as carquejas e as embiras invadiram; o gravatá lastrou: só o umbu
foi guapeando, mas abichornado como viúvo que se deu bem em casado...; foi
ficando tapera...a tapera que é sempre um lugar tristonho onde parece que a
gente vê gente que nunca viu...”
BIBLIOGRAFIA CONSULTADA
GARCIA, O.M. Comunicação em prosa moderna, 11ª
edição, Rio de Janeiro, Fundação
Getúlio
Vargas, 1983.
HOLLANDA, A.B. de. Introdução crítica. In: SIMÕES
LOPES NETO, J. Contos
gauchescos e
lendas do Sul, 2ª
edição, Porto Alegre, Globo, 1961, pp. 71-104.
MEYER, A.Prefácio e notas. In: SIMÕES LOPES NETO,
J. Contos gauchescos e lendas
do Sul, 2ª edição, Porto Alegre, Globo, 1961, pp. 11-23.
SIMÕES LOPES NETO, J. Contos gauchescos e lendas do
Sul, 2ª edição, Porto Alegre,
Globo, 1961.
APÊNDICE
GLOSSÁRIO
AJOUJAR –
prender com ajoujo (corda ou corrente que unem bois ou cães de caça)
ALVOROTO –
alvoroço
ASPAS –
chifres
BROCHA –
correia que sob o pescoço do boi se prende aos canzis
CABRESTEAR
- obedecer facilmente à tração do laço
CANZIL –
marca na orelha do gado
CARACA – ruga
que surge na base dos chifres dos vacuns
CHAIRAR –
afiar
CUSCO –
cachorro vira-lata
GOLPEADO –
impulsivo
JACUBA –
mingau ralo feito com leite, farinha de mandioca e açúcar ou mel
MATUNGO –
cavalo velho ou muito manso
MINUANO –
vento muito frio e seco que sopra do sudoeste em meses de inverno e
eventualmente no outono e primavera
MIUÇALHA –
criançada
MUCHACHO –
pedaço de pau em que se descansa o cabeçalho da carreta
MUNHATA –
batata-doce
PERAU –
diferença repentina para maior, no fundo do mar ou rio ou outros cursos d’água
PICANA – vara
que tem na ponta um ferrão para picar os bois na carretagem
PREGAÇO –
ferimento com instrumento perfurante
REGALO –
presente (do espanhol)
REGEIRA –
corda de couro torcido, que presa à cabeça dos bois com uma volta passada pela
orelha, do lado externo, serve para dirigi-los
RINCÃO –
trecho de campo
SANGA –
pequeno arroio
SARANDI –
arbusto comum no Rio Grande do Sul
SARANDIZAL –
extensão de terreno ocupada por sarandis
SOLITO –
sozinho ( do espanhol)
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