quinta-feira, 2 de maio de 2013

O ESTILO DE JOÃO SIMÕES LOPES NETO NOS “CONTOS GAUCHESCOS”

Por Eneida Moraes Miranda Zahler

INTRODUÇÃO

            João Simões de Lopes Neto está classificado como escritor regionalista do Rio Grande do Sul. Para narrar os Contos Gauchescos, com um acento popular autêntico e espontâneo, o autor criou o personagem Blau Nunes, vaqueano caboclo, que cruzou toda a Província no tempo em que as estâncias não tinham divisas bem definidas.
            Augusto Meyer, prefaciando a edição de 1961 dos Contos Gauchescos e Lendas do Sul, afirma que talvez “ninguém no Brasil tenha conseguido uma identificação tão profunda com o espírito dos seus conterrâneos, a tal ponto que o próprio Simões Lopes Neto, o pelotense culto e de família tradicional, inteiramente se apaga na sombra de Blau, o vaqueano”.
Essa postura não é comum entre os escritores regionalistas que geralmente portam-se ante o homem do povo como espectadores finos que se divertem com o linguajar caipira.
Simões Lopes Neto consegue uma continuidade entre o linguajar e a estilização, jogando com os recursos do estilo indireto e, raras vezes, o leitor se dá conta do momento em que a prosa rude de Blau Nunes deixa transparecer a voz do autor. Um exemplo desses raros momentos pode ser encontrado na descrição do crepúsculo em Trezentas Onças, onde parece que o personagem cedeu a palavra ao autor:

“A estrada estendia-se deserta; à esquerda os campos desdobravam-se a perder de vista, serenos, verdes, clareados pela luz macia do sol morrente, manchados de pontas de gado que iam se arrolhando nos paradouros da noite...”

Embora se enquadrem na literatura regionalista, os Contos Gauchescos acham-se marcados de verdade humana, ultrapassando o círculo do interesse local. Em toda a obra o aspecto psicológico se impõe e a paisagem, as singularidades do ambiente e a forma dialetal se unem para dar um colorido especial à expressão das dores e alegrias humanas.


O ESTILO

Entende-se por estilo, nas palavras de Othon M. Garcia (1983), “tudo aquilo que individualiza uma obra, como resultado de um esforço mental, de uma elaboração do espírito, traduzindo idéias e imagens. A rigor, a Natureza não tem estilo; mas tem-no o quadro em que o pintor a retrata ou a página em que o escritor a descreve”.
Na literatura do tempo de Simões Lopes Neto, a paisagem era uma peça sobreposta ao conto ou ao romance, não fazendo com eles um todo. Retirada da história, esta funcionava perfeitamente.Fazia-se a paisagem pela paisagem.
Na obra de Simões Lopes Neto, a paisagem é assimilada, não impressiona em detalhes mas no conjunto. O contista gaúcho sabia fundir as notas descritivas do ambiente no próprio corpo da narração, em períodos onde vai se desenrolando a ação do conto.
Blau Nunes não se detém a derramar frases sobre um rio ou uma estância. Contadas por um campeiro como são as histórias de Simões Lopes Neto, seria nelas impertinente o exagero de paisagem. Sobretudo no caso do personagem que fala para a gente do seu meio.
Diz Aurélio Buarque de Hollanda (1961) que “ a frugalidade paisagística é, pois, uma das manifestações mais finas da arte de Simões Lopes Neto”. Por exemplo, o seguinte trecho do conto Trezentas Onças:
“- Olhe, ali, na restinga, à sombra daquela mesma reboleira de mato, que está nos vendo, na beira do passo, desencilhei.”


ELEMENTOS DO ESTILO


a)      O PITORESCO

As comparações contidas na obra de Simões Lopes Neto são bastante originais:
“uma carta grande, fechada com mais obreias do que tragas de vinho tem um copo de missa, de padre gordo.”  (MelanciaCoco Verde)
“olhava pra gente, como o sol olha pra água: atravessando!” (Duelo de Farrapos)
Esse pitoresco, porém não está só nas comparações mas no uso de certos modismos populares:
“enquanto a galinha lambe a orelha!”  (O Mate do João Cardoso)
“A estrangeirada foi quem ensinou a gente de cá mergulhar e ficar de cabeça enxuta...” (Contrabandista)


b)      A CONCORDÂNCIA

Silepse


            Algumas vezes o autor emprega a silepse de número:
            “E que torunas! Cada bicho pesado, criado na pura grama vermelha, ligeiros como gatos...” (Juca Guerra)
            “Muita gente anda no mundo sem saber pra quê: vivem , porque vêem os outros viverem.” (Artigos de Fé do Gaúcho)

c)      A REGÊNCIA

A regência empregada pelo contista, não raro, é inteiramente pessoal, apoiada na analogia, sendo que alguns verbos aparecem com regimes que não figuram nos dicionários:

“E tais cuidados deu-lhe que a planta pegou, botando raízes firmes e espigando ramos e folhas.” (Manantial)
Nos dicionários, o verbo espigar aparece apenas como intransitivo, como também o verbo entreparar no exemplo seguinte:
            “... e até o coveiro se entreparou atristado...” (Penar de Velhos)

d)     A ELIPSE

Nos Contos Gauchescos, as elipses são constantes, podendo ser puramente literárias, ou colhidas na língua viva do povo.
Na apresentação do herói Blau:
“...benquisto tapejara Blau Nunes, desempenado do arcabouço de oitenta e tantos anos, todos os dentes, vista aguda e ouvido fino...”
Em Correr Eguada:
“... então o gaúcho desenredava as boleadeiras e assinalava e mal isto , já o bagual se aprumava...”
A omissão do fazia depois de mal aviva o sentido de rapidez na transição entre as ações do gaúcho e a do bagual.

e)      O PLEONASMO


Os pleonasmos são abundantes nas páginas de Simões Lopes Neto, alguns de sabor popular, outros resultantes de influência literária.
No conto Boi Velho, encontra-se:
“...tal e qual como uma pessoa penarosa...”

Em Penar de Velhos:
“ ...as mulheres desataram num pranto de choro...”

f)       POLISSÍNDETO

Essa figura de linguagem, bem usada, dá vida e cadência ao discurso:

“...ele era um perdidaço pela cachaça e pelo truco e pela taba...” (Negro Bonifácio)

“E ajoelhou...e caiu...e morreu...” (Boi Velho)

“...tudo aquilo treme e bufa e borbulha...” (Manantial)


g)      A REPETIÇÃO


Elemento que não só dá ênfase, como também cadência:
“Pois o velho olhou...olhou...e ficou calado. E calado saiu.” (Chasque do Imperador)
“...era eu que encilhava-lhe o cavalo, que dormia atravessado na porta dele, que carregava os papéis dele e as armas dele.” (Chasque do Imperador)
“E rindo e chorando estava, sem saber porquê...sem saber porquê, rindo e chorando, quando alguém gritou...” (Contrabandista)

h)      AS RETICÊNCIAS


Simões Lopes Neto abusa das reticências, e elas vêm muitas vezes acompanhadas de exclamação.
Para Aurélio Buarque de Hollanda (1961), “tais sinais, sendo, como são, psicológicos, não se impondo como necessidade de respiração, podem muitas vezes ser dispensadas, com vantagem para o estilo.”
Há, porém, momentos em que o resultado alcançado com o grande uso das reticências é positivo, com por exemplo:
“- Há que tempos eu não chorava!...Pois me vieram lágrimas..., devagarinho, como gateando, subiam... tremiam sobre as pestanas, luziam um tempinho... e ainda quentes, no arranco do galope lá caíam elas na polvadeira da estrada, como um pingo d’água perdido, que nem mosca nem formiga daria com ele!...” (Trezentas Onças)

i)        AS QUALIDADES ESTILÍSTICAS MAIS PESSOAIS


Para exemplificar as marcas nitidamente pessoais e os traços mais vivos do escritor, vale citar a descrição da paisagem das Trezentas Onças:
“Nos atoleiros, secos, nem um quero-quero: uma que outra perdiz, sorrateira, piava de manso por entre os pastos maduros; e longe, entre o resto da luz que fugia de um lado e a noite que vinha, peneirada, do outro, alvejava a brancura de um joão-grande, voando, sereno, quase sem mover as asas como uma despedida triste, em que a gente não sacode os braços...
Foi caindo uma aragem fresca; e um silêncio grande, em tudo.”
Na opinião de Aurélio Buarque de Hollanda (1961), essa “é uma das mais belas descrições de paisagem da língua portuguesa”; e Simões Lopes Neto consegue escapar do banal e do rebuscado na descrição de um crepúsculo, coisa bastante batida na literatura.
Nessa descrição, nota-se uma precisão sensível na colocação das palavras, ao mesmo tempo em que o ritmo um tanto arrastado se harmoniza com a lentidão do entardecer.



j)        O LIRISMO

Simões Lopes Neto é, sem dúvida, um poeta. Sua sensibilidade é apurada, sendo capaz de ter empatia não apenas com o ser humano, mas também com os animais, os vegetais e até mesmo com os seres inanimados:
“O boi velho sentindo-se ferido, doendo o talho, quem sabe se entendeu que aquilo seria um castigo, algum pregaço de picana, mal dado, por não estar ainda arrumado...- pois vancê creia!-: soprando o sangue em borbotões, já meio roncando na respiração, meio cambaleando, o boi velho deu uns passos mais, encostou o corpo ao comprido do carretão e meteu a cabeça, certinho, no lugar da canga, entre os dois canzis...e ficou arrumado, esperando que o peão fechasse a brocha e lhe passasse a regeira na orelha branca...
E ajoelhou...e caiu...e morreu.” (Boi Velho)
E no Manantial:
“O arranchamento alegre e farto foi desaparecendo...o feitio da mão da gente foi-se gastando, tudo foi minguando; as carquejas e as embiras invadiram; o gravatá lastrou: só o umbu foi guapeando, mas abichornado como viúvo que se deu bem em casado...; foi ficando tapera...a tapera que é sempre um lugar tristonho onde parece que a gente vê gente que nunca viu...”



BIBLIOGRAFIA CONSULTADA


GARCIA, O.M. Comunicação em prosa moderna, 11ª edição, Rio de Janeiro, Fundação 
     Getúlio Vargas, 1983.

HOLLANDA, A.B. de. Introdução crítica. In: SIMÕES LOPES NETO, J. Contos
     gauchescos e lendas do Sul, 2ª edição, Porto Alegre, Globo, 1961, pp. 71-104.

MEYER, A.Prefácio e notas. In: SIMÕES LOPES NETO, J. Contos gauchescos e lendas
    do Sul, 2ª edição, Porto Alegre, Globo, 1961, pp. 11-23.

SIMÕES LOPES NETO, J. Contos gauchescos e lendas do Sul, 2ª edição, Porto Alegre,
   Globo, 1961.


APÊNDICE


GLOSSÁRIO

AJOUJAR – prender com ajoujo (corda ou corrente que unem bois ou cães de caça)
ALVOROTO – alvoroço
ASPAS – chifres
BROCHA – correia que sob o pescoço do boi se prende aos canzis
CABRESTEAR -  obedecer facilmente à tração do laço
CANZIL – marca na orelha do gado
CARACA – ruga que surge na base dos chifres dos vacuns
CHAIRAR – afiar
CUSCO – cachorro vira-lata
GOLPEADO – impulsivo
JACUBA – mingau ralo feito com leite, farinha de mandioca e açúcar ou mel
MATUNGO – cavalo velho ou muito manso
MINUANO – vento muito frio e seco que sopra do sudoeste em meses de inverno e eventualmente no outono e primavera
MIUÇALHA – criançada
MUCHACHO – pedaço de pau em que se descansa o cabeçalho da carreta
MUNHATA – batata-doce
PERAU – diferença repentina para maior, no fundo do mar ou rio ou outros cursos d’água
PICANA – vara que tem na ponta um ferrão para picar os bois na carretagem
PREGAÇO – ferimento com instrumento perfurante
REGALO – presente (do espanhol)
REGEIRA – corda de couro torcido, que presa à cabeça dos bois com uma volta passada pela orelha, do lado externo, serve para dirigi-los
RINCÃO – trecho de campo
SANGA – pequeno arroio
SARANDI – arbusto comum no Rio Grande do Sul
SARANDIZAL – extensão de terreno ocupada por sarandis

SOLITO – sozinho ( do espanhol)

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