Por Paccelli José Maracci Zahler
Neste mês de maio, vamos conhecer um pouco da vida e da obra da escritora, poetisa e ambientalista Sandra Fayad.
A entrevista foi concedida por correio eletrônico e, na oportunidade, registramos o nosso agradecimento.
RCC. A senhora nasceu, em 1948, em Catalão, GO. Como foi a sua
infância?
SF.Em primeiro lugar, quero apresentar-lhe minha gratidão pela
escolha para esta entrevista e pela oportunidade de divulgar minha trajetória e
meu trabalho na sua Revista Cerrado Capital.
Respondendo à sua pergunta, nós éramos pobres. Papai
trabalhava na roça, mamãe era professora rural. Para que pudéssemos estudar,
eles nos enviavam para as casas de parentes na cidade, a 50 km de distância,
com o rio São Marcos no meio, que era atravessado de canoa no início e de jipe
mais tarde. Ficávamos meses sem ver nossos pais e submetidos às regras dos
tios, que agiam com severidade e até com violência para nos “educar”.
RCC. O que despertou o seu desejo de escrever cartas e poemas
às escondidas a partir dos 12 anos de idade? Por que às escondidas?
SF.No dia em que eu completei 12 anos de idade, cheguei ao Rio
de Janeiro juntamente
com meu irmão de 9 anos,conduzidos pelo papai para sermos
cuidados pelas irmãs dele que lá moravam. Isto aconteceu porque havíamos sido
despejados da última casa de um irmão da mamãe. Já éramos quatro sobrinhos
ocupando a residência deles. Resolveram que ficariam com a minha irmã de 7 anos
e um primo.
Nós não conhecíamos nada a mais de 100 km de Catalão e nem
essas tias do Rio de Janeiro. Foram dois anos muito duros. Minha válvula de
escape e meu consolo eram escrever cartas para a mamãe e poesias às escondidas.
Minha tia fiscalizava tudo e, se visse algo nos meus cadernos que não fossem os
deveres de escola, rasgava a folha, cortava a sobremesa e ameaçava me devolver
para a roça. Lá eu era obrigada a ficar no quartinho de empregada, com acesso
apenas ao banheiro de serviço e à cozinha. O restante do apartamento ficava
trancado das 6 h da manhã até às 7 horas da noite.
Perto do Natal de 1962 minha tia pegou uma carta que eu
havia escrito para a mamãe, onde eu reclamava do tratamento que ela nos
dispensava. Imediatamente mandou recado para que o papai fosse nos buscar
porque eu era mal agradecida, falsa e traidora.
RCC. Aos 15 anos, a senhora pediu de presente aos seus pais um
baile de debutante. O que de fato aconteceu?
SF.Para que não ficássemos sem escola, meus pais se mudaram
para a casa velha que havia sido do meu avô, na cidade. Naquela casa faltava
quase tudo a começar pelo conforto. A única coisa que não faltava era comida
porque o papai era de uma responsabilidade admirável. Mesmo assim, a
alegria inundou a vida da família porque agora estávamos oito novamente juntos.
Foi meu primeiro oásis. Fiz novas amigas, reatei as amizades antigas,
estudávamos e ríamos muito e de tudo. A situação financeira e social das minhas
amigas era bem melhor que a minha. Foi meu primeiro oásis. Ao completarmos 15
anos, realizava-se o baile das debutantes da cidade no CRAC (Clube Recreativo e
Atlético Catalano). Todas as mocinhas que completavam 15 anos eram convidadas a
participar, mas eu não pude ir porque não havia dinheiro para comprar o tecido.
Se houvesse, a mamãe coseria o vestido na sua velha máquina Singer. Fiquei
muito triste e pensei que deveria me preocupar com o futuro.
RCC. Parte da sua adolescência foi passada no Rio de Janeiro.
Foi lá que a senhora se formou em magistério?
SF. Não. Concluí o curso de professora no Colégio Nossa Senhora Mãe de Deus,
juntamente com o Curso de Técnico em Contabilidade na Escola Técnica de
Comércio Wagner Estelita Campos (ambos de nível médio), em 1967, na cidade de
Catalão.
RCC. Aos 17 anos, a senhora foi nomeada professora de alunos da
zona rural de Catalão, GO. Como foi essa experiência com crianças?
SF.Eu havia iniciado o 2º ano do curso normal, e o Governo do
Estado de Goiás estava abrindo oportunidade para as estudantes a partir do 2º ano,
de dar aulas a título de pró-labore. Corri lá na Prefeitura e garanti minha
vaga. Foi uma época intensa, porque eu estudava pela manhã e à noite e dava
aulas à tarde em um bairro distante, conhecido como Boca da Onça. O contato com
as crianças, ensinar as primeiras palavras, pegar nas mãozinhas para desenhar
as letras foi tudo emocionante.O único inconveniente é que o pagamento mensal
chegava com dois ou três meses de atraso.
RCC. Foi lá que começou o seu interesse pelo Cerrado, pela
Natureza, tema constante em seus poemas?
SF. A natureza sempre fez parte da minha vida. Desde criança
que sou adepta de longas caminhadas pelo simples prazer de observar e me
integrar de corpo e alma ao ambiente externo. Nada e nenhum dos seres vivos que
estejam nas minhas rotas passam desapercebidos, desde o céu até as depressões.
Vivendo dessa forma, não sei se por algum distúrbio psíquico ou por excessiva
sensibilidade, eu converso com plantas e animais, naturalmente. Ouço quando
reclamam, pedem, agradecem, ficam alegres ou tristes. Então fica muito fácil
escrever sobre o Cerrado, onde hoje vivo, e sobre a Natureza em geral.
RCC. Sua mudança para Brasília, DF, deu-se em 1967. Isto se deu
pela aprovação no concurso para a Fundação Educacional do DF?
SF.Não. Quando eu terminei os cursos técnicos em
Catalão, não havia perspectivas de trabalho lá. Minha tia Sarah, que morava em Brasília, foi
passar o natal conosco. Aproveitei para pedir a ela que me desse uma carona,
porque eu queria ver se conseguia algum trabalho aqui. Ela, vendo a situação
ruim em que a família se encontrava, atendeu ao meu pedido. Assim que chegamos,
fui aceita em uma entrevista para o emprego de auxiliar de escritório em uma
construtora, na 504 Sul. Fiquei morando na casa da minha tia, na 107 Sul, por
seis meses. Nesse período submeti-me ao concurso público da Fundação
Educacional, fui aprovada em 8º lugar e tomei posse no dia 1º de agosto de
1968. Imediatamente, eu trouxe meu irmão (16) para trabalhar na mesma
Construtora de onde eu saí e alugamos um quarto em casa de família, na 416 Sul.
RCC. Foi durante a atuação como professora que a senhora
decidiu cursar a Faculdade de Economia?
SF.Não. No início de 1969 eu me casei e, por duas vezes,
obtive aprovação em vestibulares no CEUB para o curso de Jornalismo. Mas o
casamento e a vinda da filha constituíram-se empecilhos para a continuidade dos
estudos. Eu apenas dava aulas e cuidava dos afazeres domésticos.
Inquieta e insatisfeita com o pouco que havia conquistado
profissionalmente, e ávida por estudar, fiz alguns cursinhos técnicos de curta
duração, escrevi muitos poemas que rasguei (ficaram alguns) e submeti-me a mais
um concurso público: o de Auxiliar de Controle Externo do Tribunal de Contas da
União. Fui aprovada. No começo de 1975, troquei o magistério e o marido pelo
TCU e pela Faculdade de Economia na UDF.
RCC. Quando a senhora ingressou no Banco Central?
SF.Em 1978, com o curso de economia já concluído. Foi uma
troca difícil, porque eu era a 2ª classificada na lista de promoção a Técnico
de Controle Externo do TCU (atual Analista), que de fato ocorreu pouco depois.
RCC. Foi trabalhando lá que a senhora especializou-se em
Economia Monetária e Mercado Financeiro?
SF.No BACEN, eu comecei no Departamento de Pessoal. Lá me mantiveram por três
anos. Mas minha meta era trabalhar no Departamento de Mercado de Capitais,
para onde acabei indo por persistência, sem rancores. Lá encontrei outro oásis.
Foram dez anos maravilhosos, onde meu chefe - Iran Siqueira Lima - nos motivava
a estudar, nos oferecia desafios sempre, nos mantinha atualizados e unidos.
Éramos uma equipe harmônica e feliz.
RCC. Durante os anos trabalhados no Banco Central a atividade
literária ficou em segundo plano?
SF.Nesse período de dez anos, sim. Eu apenas ouvia muita
música, lia poesias, romances, best sellers, escrevia muito (pareceres e
relatórios técnicos).
RCC. Quando a senhora adquiriu a chácara do Lago Oeste, DF?
SF. Em 1991 eu comprei o terreno já cercado, mas só em 1997 é
que construí uma casinha e comecei a plantar. Era a volta mais efetiva para a
natureza e a poesia.
RCC. Foi uma maneira de recordar os tempos de Catalão, GO, e
ficar ligada à terra?
SF.De certa forma, sim. O papai estava sempre presente e a
convivência com ele era rica em aprendizado. Foi também uma compensação. O
trabalho burocrático estava me deixando muito tensa. Era a época dos grandes
descontroles inflacionários, dos planos econômicos mal sucedidos. Eu me envolvi
muito com números, cálculos, relatórios, sucessos e insucessos das medidas
governamentais. Necessita de um pouco de paz. Fui buscar na minha velha
conhecida, a Natureza.
RCC. Durante o trato com a terra, o contato com os animais
silvestres, a inspiração para escrever poemas retornou?
SF.Sim. E dessa vez de forma intensa. Escrevia até três poemas
em um só dia. Passei a contar em prosa os comportamentos alterados das pessoas
ao meu redor e a estudar melhor as ervas medicinais, os animais silvestres, os
cães, as estações do ano.
RCC. A senhora sempre foi autodidata no cultivo da terra,
particularmente de plantas medicinais e condimentos?
SF.Fiz dois
cursinhos básicos no SENAR-DF. O resto aprendi através da observação, da pesquisa
e de informações obtidas junto à tradição popular.
RCC. Por alguma razão, a chácara teve que ser vendida, após 14
anos de atividade. Este fato a deixou muito sentida?
SF.Não. Preparei a minha saída, assim como fiz das outras
vezes na minha trajetória.
Pesei os prós e os contras, tomei a decisão, encontrei uma
compradora que estava procurando o que eu tinha para vender, distribuí o que
não lhe interessava aos caseiros da vizinhança. Fiz isto inclusive com as
matrizes das plantas. Entreguei-as a um caseiro que também conversava com elas
e que já as cultivava. Os cães ficaram lá mesmo com a nova proprietária, que os
adotou antes de fechar o negócio. Voltei três vezes para visitar as plantas e
os cães. Eles estavam mais bem cuidados e mais felizes do que quando estavam
comigo.
SF. Foi por essa razão que a senhora decidiu implantar uma
horta comunitária em sua casa na Asa Norte?
SF.As plantas haviam passado por um longo processo de
adaptação ao clima do cerrado. Aquelas que originalmente eram de clima frio ou
úmido demoraram muito para se tornarem “nativas”. Eu pensava que se, por
qualquer razão, o rapaz não pudesse mantê-las lá, onde estavam todo aquele
trabalho iria se perder. Então procurei um lugarzinho na porta da minha casa
para cultivar pelo menos as mais raras.
RCC. A senhora levou para a horta comunitária algumas espécies
de plantas medicinais cultivadas na chácara?
SF. O papai, com 91 anos, achou que poderia preparar o terreno
na frente da casa para recebê-las, mas o local estava cheio de metais pesados,
restos de obra, muita pedra. Assim mesmo resolvemos limpar a área de 30
m² . Nesse momento o papai faleceu. Foi mais um desafio. Trabalhei muito para
recuperar a área durante mais de um ano. Fui lá ao Lago Oeste e trouxe as mudas
de cavalinha, alfazema, losna, orégano, sálvia, babosa, poejo, estévia, jambu,
e mais 50 espécies.
RCC. Como foi a receptividade dos vizinhos, geralmente
acostumados ao asfalto e ao cimento, a uma horta comunitária?
SF. Usei a criatividade. Delimitei o espaço, organizei tudo
para caber o máximo de espécies possível, pendurei poesias em garrafas pet,
enfeitei, criei um mural, uma caixinha de recados, o grupo ”amigos da horta”.
As pessoas e até a imprensa se encantaram com a horta. Muitas não conheciam as
plantas como o orégano, a estévia, o jambu. Até hoje eu dou aulas, recebo
aulas, troco mudas de plantas, forneço folhagem para chás e recebo gente todos
os dias e dos lugares mais surpreendentes. Há vários pedidos de sementes e
mudas no meu site para outros Estados. Não sei como atender.
RCC. Apesar de todo o seu esforço, a horta comunitária sofreu
uma ação de vandalismo em 2009. Por que razão?
SF. Sim. Dois vizinhos em momentos diferentes causaram
destruição na horta, irritados por
alguma razão que desconheço. Há duas vizinhas, uma de cada lado, que foram
agressivas e não me cumprimentam. Ainda bem que são apenas elas!
RCC. A senhora poderia nos falar sobre a Associação Amigos da
Horta?
SF.Trata-se de um grupo que criamos para troca de
mensagens por e-mail e por telefone. São mais de duzentas pessoas que visitaram
a horta e preencheram uma ficha cadastral voluntariamente.Sempre que há alguma
novidade sobre a horta ou outro assunto relacionado ao meio ambiente, eu envio
a notícia. Eles comentam, divulgam ou comparecem ao local para tomar uma
providência. Foi assim nas duas vezes em que a horta foi danificada.
RCC. Como a senhora mantém a horta quando tem que viajar?
Alguém fica responsável por ela?
SF.Sim. Há um
jardineiro que me ajuda e a minha família que supervisiona e rega. Antes da
viagem, eu faço uma vistoria mais apurada, aplico calda bordalesa, água de fumo
se necessário, podo, revejo o sistema de irrigação, limpo bem tudo e não me
demoro mais de 15 dias.
RCC. A senhora passou a dedicar-se mais à literatura após a
aposentadoria do Banco Central?
SF.Sim. Agora as minhas atividades estão totalmente voltadas
para a literatura e a natureza. Os dias são curtos e o tempo passa muito
rápido.
RCC. Simone de Beauvoir disse certa vez que “escrever é
desvendar o mundo”. O que a senhora pensa a respeito?
SF.É verdade. Dizia também que “não se pode escrever nada com
indiferença”. Eu penso que temos que ir fundo nas questões, sem agressividade.
Para mim, escrever é atirar-me em um rio, em noite de lua nova. Nunca sei o que
vou encontrar lá na frente. Acho que desvendar o mundo é uma via de mão dupla.
Sou mensageira na medida da limitação que o tempo nos impõe. Uso-o
intensamente para deixar uma mensagem que beneficie os seres vivos que estão ao
meu lado e os virão.
RCC. Qual a sua opinião sobre a atividade literária em
Brasília, DF?
SF.Só para efeito de comparação, tenho acompanhado os eventos
literários em Goiás. São intensos e dinâmicos. Brasília não foge da sua vocação
criativa e de grandes talentos nas várias vertentes da cultura. No entanto, há
um entrave sistêmico, onde tudo o que se quer realizar esbarra na vontade
institucional, que cada vez mais interfere para ignorar, desqualificar,
desautorizar. A despeito disso, temos tido eventos emocionantes como a Bienal
do B no Açougue Cultural T-Bone, os eventos poéticos bem organizados da Casa da
Cultura do Guará, da Casa do Cantador, da Tribo das Artes, do Projeto Eulirico,
do Hezio Teixeira e não poderia deixar de citar a sua iniciativa com a Revista
Cerrado Cultural. Isto mostra que o investimento da Secretaria de Cultura na literatura
no Distrito Federal é praticamente nulo.
RCC. Quais seus projetos literários para este ano de 2013?
SF.Vou aventurar-me
no primeiro romance. Desta vez busco inspiração nas anotações antigas e na
experiência da convivência com meus semelhantes físicos. Por ora, lanço no
próximo dia 03 de maio (sexta-feira) o livro “Histórias de Jorge, O Batuta” e
mais dois livros de poesia: “Poemas Síntipos” e “Cerrado Capital - A vida em
duas estações”, evento para o qual convido você e todos os seus leitores.
Espero-os na Livraria Cultura do Shopping Iguatemi, a partir das 20 h.
Paccelli, uma característica que se percebe rapidamente na formulação de suas perguntas é que você é um grande pesquisador. Nesse trabalho de pesquisa, é capaz de buscar todas as nuances da vida do entrevistado. No meu caso, fiquei surpresa com detalhes que até eu havia me esquecido. Parabéns! É um belo e criterioso trabalho. Obrigada por me escolher desta vez.
ResponderExcluirQuem agradece sou eu pela gentileza!
ResponderExcluirPaccelli.