Por Pedro
Du Bois (Balneário Camboriú, SC)
As cecílias fecharam seus cadernos onde
registravam, não em forma de diário, mas diariamente, seus poemas. Às cecílias
é dado o direito e o poder de registrar poemas, trançando entre todos - se um
dia pudessem ser reunidos - o que chamamos de poesia. Mas, na seqüência do que
foi escrito, as cecílias haviam fechado seus cadernos, como gesto de abandono
ou de desistência.
Se as cecílias não mais escrevessem seus
poemas e não os deixassem registrados em seus cadernos, a poesia sumiria das
nossas vistas e nossas vidas não teriam mais a magia decorrente. Estaríamos
presos em eternas correntes cecilianas e arrastaríamos nossas mágoas e nossas
incertas horas de não adormecer ou de nos alimentar, que as letras são a
primeira e a última refeição de cada dia. Não podem as cecílias por isso ou por
aquilo, de repente e nas razões indiretas do que todas pensam em uníssono, ter
tal desistência, adormecimento ou esquecimento. As raivas não se coadunam com
as cecílias e delas tomam distância, para não serem transformadas em bonitas
figuras decorativas, em amores conquistados entre manchas sobre as toalhas de
mesa, ou naquelas pequenas marcas sobre as roupas. As cecílias têm - ou tinham
- consciência do que representam - nos seus textos, muitos entremeados com
figuras ou desenhos de flores ou animais de estimação, recortados e colados em
seus cadernos -, para as demais pessoas que se chamam álvaros, américos,
marthas, clarisses e possuem segundos nomes, como pedros antônios, pedros
josés, tânias reginas ou marias antônias, anas marias e paulos cesários; as
cecílias transitam sós em seus nomes e aceitam apenas únicos sobrenomes,
escolhidos para que sejam confortáveis aos poemas e deles não se destaquem nem
os atrapalhem quando forem lidos ou lembrados.
Os cadernos das cecílias estão fechados.
Uns foram guardados em gavetas, sob coisas ou livros, outros ficaram sobre as
mesas, escrivaninhas ou nas mesinhas de cabeceiras (desses, temos esperanças de
reencontros ou revoltas) entre contas e breviários, despertadores e luzes
menores. A maioria foi colocado em lugares secretos, fechados à nossa
imaginação e conhecimento. Nesses repousa o mais grave: o nunca mais serem
manuseados, nem sequer lembrados e terem seus poemas consumidos pelos tempos em
que as cecílias, completando as cenas, também forem se esquecendo deles e elas,
trocando de nome e esquecendo que eram cecílias, se transformem em pessoas como
nós, com os nossos nomes e as nossas artimanhas, desconsiderando os poemas
guardados no esquecimento com que as letras vão esmaecendo até que nos cadernos
sobrem apenas alguns rabiscos em cada folha e não se possa recuperar o que foi
escrito, nem ao menos saber que naquele caderno repousou uma vez uma cecília. A
criança a quem for dado o caderno terá noites de insônia, o sono agitado de
quem recebe a visita de cecílias; em cada amanhecer terá a tentação do grafite
e, como ainda não sabe das palavras, preencherá folhas e folhas daqueles
cadernos com figuras, traços e rabiscos e, mesmo que o que faça também possa
ser poemas, não serão os poemas originais deixados pelas primeiras cecílias.
Mesmo que essas crianças perdurem em suas vontades, não alcançarão a glória dos
escritos cecilianos. Serão apenas traços e rabiscos, depois letras mal
enjambradas, palavras mal escritas, versos tortos de desanimados seres que vieram
depois do quando as cecílias pontuavam seus poemas no final das tardes e com
cuidado guardavam seus cadernos para que as noites lhes fossem leves e seus
sonos fossem calmos e não sonhassem além do que haviam escrito naquele dia e no
outro e assim sucessivamente, até que o caderno fosse completado e, na verdade,
para que ficassem completos, as cecílias escreviam nas contracapas, nas
terceiras capas, antes e após as últimas linhas, nas capas e nas últimas capas.
Nem um espaço poderia sobrar, mesmo que para isso tivessem que diminuir as
letras, juntar palavras, mudar sentidos e, finalmente, antes de passar para o
próximo caderno, lançar como despedida uma última frase poética sobre o tanto
que lá estava escrito, ou sobre o rapaz conhecido naquele dia, ou sobre a
tristeza de ele estar completo e nele não poder ser lançado mais um verso
categórico ou oscilante sobre a vida, a obra, o dia e a noite cecilianamente
encerrada em nuvens e estrelas alternadas.
O fechar dos cadernos das cecílias correu
mundo; mesmo as pessoas mais broncas, mais ríspidas, mentirosas ou
fascinantemente comprometidas com a escuridão e a maldade, sentiram os
movimentos ritmados com que os cadernos foram fechados. O abandono da idéia que
a todas permeava na certeza com que seus versos não eram entregues em cada
tormento, a maneira singela e clara com que seus poemas nos consolavam.
Estávamos órfãos, cada pedro, cada paulo, cada regina ou tânia, cada marina ou
mariana, cada um que carregava dois, três ou mais nomes, porque as cecílias de
simples nomes haviam decidido sem falar umas com as outras, sem ao menos serem
conhecidas entre si, que os cadernos não eram mais necessários e que a poesia
(antes de se transformar em outras letras que não aquelas) havia terminado. Os
cadernos, mesmo os incompletos e até mesmo aqueles que as cecílias mais jovens
estavam começando, foram fechados, assim como passa o vento diante das nossas
janelas e só o sentimos se abrirmos os vidros e pusermos os braços para fora, e
se encerraram sem barulhos, sons ou o mero farfalhar das folhas. São discretas
as cecílias com suas obras, com os invólucros e com os gestos. São discretas
como seus olhos captando os movimentos vindos de dentro e de fora de cada uma
delas: são discretas quando escondem suas lágrimas.
Estamos aqui, desceciliados, na orfandade
dos versos e dos poemas completados ontem, antes e por todo o sempre. Não
haverá palavra que nos defenda ou que nos arremeta ao amanhã; os amanhãs serão
iguais ao ontem e cada um de nós será sua própria palavra: fúnebre, alegre ou
triste, desencontrada ou arranhada em paredes. Nossos grafites estarão
quebrados, nossas lanças estarão partidas, nossos sonhos estarão acordados.
Ainda nos sobrarão as lâminas das facas e com elas, em último e desesperado
gesto, faremos nos troncos das árvores mais próximas entalhes de corações
atravessados por setas e dentro deles escreveremos com a força resultante,
sempre e em cada um, o mesmo nome, repetido e no plural, pois plurais são as
cecílias que escreveram em nossas vidas os poemas mais belos.
Amigo Paccelli, gratíssimo.
ResponderExcluirAbraços e seguimos confins.
Pedro