sábado, 1 de outubro de 2011

MATER ET MAGISTRA

Por Von Steisloff

Com quase toda certeza, aquele seria um importante dia de minha vida. O Ser Humano tem muitas vezes, algumas restrições para descobrir e encontrar o verdadeiro “ego”. Aquilo tecnicamente descrito como o Self. No meu sistema de auto-avaliação sempre me tive no melhor dos conceitos. Afinal, na realidade, eu nem me conhecia. Sempre me afastei de qualquer possibilidade de aprofundar os conhecimentos que pudessem revelar a minha verdadeira cara. Nunca permiti que se revelasse a minha real personna: a máscara íntima; das profundezas de minha alma. Sempre tive que dissimular a constante ansiedade. Justificava para mim próprio que, esse procedimento era normal em qualquer representante do gênero humano. Como é bom, e mais cômodo, ficar-se no terreno das ilusões acerca de nós mesmos! Mas agora eu estava subindo como que, a montanha para mirar a enorme planície da minha existência universal nas contínuas alternâncias ao longo do tempo.

Por isso eu considerava que, o dia seria tal como um divisor de águas entre o que eu achava que era e o que eu realmente era. Ao caminhar carregando as minhas preocupações, lembrava-me das inúmeras vezes que já tinha enfrentado – e fugido – das possibilidades de revelar-me por inteiro. Os meus fugidios enfrentamentos da realidade baseavam-se na incredulidade do que sempre me falaram as cartomantes ou os sensitivos e até mesmo alguns médiuns nas sessões espíritas a que fui conduzido por minha mãe. “Esse rapaz tem um passado muito remoto de grandes tragédias!”. Mas a curiosidade sempre foi muito maior do que os meus temores do auto-conhecimento.
Entretanto, aquelas afirmações na infância ou juventude me conduziam para um estado de desconforto profundo, levando-me sempre a fugir do assunto. Queria ver sepultado o que eu tinha sofrido no passado; em outras vidas. Eu suava e ficava apavorado com as constatações destacadas no meu corpo físico de agora; nesta existência material “Veja as marcas da guilhotina no pescoço do menino!” – Diziam sempre para minha mãe.

Para a minha decidida ascensão na montanha e poder descortinar, de vez, a verdade sobre o meu passado, estava sendo amparado por um profissional que me garantiu uma sessão tranqüila de regressão de memória. “Fique tranqüilo – sempre dizia o médico – Estará tudo sob o meu controle”. Por isso tinha aceitado, mesmo ressabiado, dirigir-me até sua casa nesse dia marcado.

A única exigência, ou pedido, que, fiz ao médico era não permitir – durante o processo de regressão – que eu não escapasse do seu controle de sugestões. Tinha fortes receios que eu pudesse retornar à minha outra provável existência antes e logo depois da Revolução Francesa nos anos 1700.

Minha confiança naquele terapeuta de vidas passadas fortalecia na medida que ele me explicava, com detalhes científicos, as técnicas rotineiras utilizadas por ele para pesquisas e descobertas de males psicossomáticos da sua numerosa clientela. As longas consultas feitas durante vários dias antes do dia aprazado para a regressão, serviram para sedimentar minha confiante tranqüilidade diante da minha eterna angústia. É evidente que, eu tinha pavor de sentir-me, novamente, sob a ameaça da terrível lâmina da guilhotina nos longínquos 1700; ainda lá no século XVIII! Garantiu-me o doutor amigo que, eu seria conduzido apenas à minha existência imediata. Diante de qualquer manifestação de sofrimento de minha parte, ele tomaria as providências técnicas para meu “retorno” o mais rápido.

Tudo combinado, acertou-se o dia e lá fui caminhando em direção ao consultório entre preocupado e antegozando o fim dos meus males que, diziam, tinham raízes em outras vidas. "O que seria que tinha ocorrido?". Agora não tinha mais como fugir do meu autoconhecimento. "Vou saber, afinal - imaginei no meu silêncio angustiante - Quem sou eu; de onde venho!"

Sentei-me confortavelmente em uma macia poltrona forrada em couro esverdeado e o doutor iniciou a sessão de terapia de vidas passadas. Começou lembrando-me, com palavras em tons graves, mas suaves e pausadas, que, eu deveria “desligar-me” de tudo o que estivesse me preocupando.

O doutor gravou o que eu ia narrando durante a regressão e, depois, fora do transe a que fui conduzido, posso lembrar-me, com extrema felicidade, de todos os detalhes.

De repente, tal e qual um vagabundo bissexto eu ia caminhando pelas pobres ruelas do bairro humilde das periferias de Roma. As pessoas que passavam cumprimentavam-se com a alegria do italiano típico. Mas eu nem era notado. Minha pessoa deveria ser realmente de extrema insignificância. O bairro era o meu mundo querido e nada podia me ofender. Eu tinha a cabeça feita para enfrentar as tentativas das prováveis atitudes de menosprezo dos habitantes locais. Minhas lembranças agora de jovem trabalhador permaneciam ainda fixadas nos dias de tempos passados quando cheguei no bairro por vez primeira.

Na realidade nada mais podia me ofender. Eu disse que tinha a cabeça feita, mas para ser mais exato eu deveria dizer que eu tinha bem feitos o coração e alma. Essa milagrosa transformação eu tinha a agradecer à minha querida mãezinha aqui no bairro San Lorenzo, em Roma. Eu estava muito feliz! Daquela aspereza da vida do San Lorenzo eu soube tirar um punhado de felicidade. Ia caminhando em busca e ao encontro de minha mãe e, mesmo ao longe, já podia ouvir a algazarra das crianças ricas ou pobres no casarão transbordante de alegria. Continuei em passos ansiosos para chegar logo e associar-me às homenagens de todo ano à minha velha mãe! Hoje é um dia muito especial para ela! O velho casarão vai ser reinaugurado! O prefeito de Roma também já deve ter chegado. Todas as autoridades estarão também trajando os solenes trajes negros; fraques e as refinadas cartolas de seda lustrosa! Eu estou de terno simples e gravata borboleta, mas comprados com meu próprio dinheiro! Aprendi a ser gente, deixar de ser bobo graças à minha mãe!

É também a comemoração antecipada do nosso aniversário! Ela estará completando no próximo dia 31 de agosto seus trinta e sete anos! Eu completarei na mesma data – transbordante de orgulho – os meus vinte anos. Fico sempre perguntando no meu silêncio, se apenas aquela coincidência dos dias do nascimento foi suficiente para a feliz aproximação da linda senhora Maria tornar-se minha a mãe! Entretanto hoje – 6 de janeiro de 1907 – a festa é bem mais importante!

Quando chego mais perto do velho casarão meu coração pulsa forte e sinto os pelos dos braços e da nuca arrepiados: há dois meses eu não passava pelo local e tudo demonstrava agora mais arrumação. Meu trabalho em uma encadernadora não me dava tempo para esses passeios. Mas hoje eu tinha permissão para –“...Largar tudo e juntar-me às homenagens à signora Maria...”– Disse-me o alegre patrão que também vinha abraçar a aniversariante e prestigiar a reinauguração das novas instalações no antigo casarão de San Lorenzo. Minha emoção tinha suas raízes na história do meu rápido aprendizado e recuperação das minhas deficiências mentais desde o nascimento. No casarão fui adotado desde os dez anos com indisfarçável preferência, para manejar os brinquedos mágicos daquela que seria minha mãe por escolha dela. Na minha miséria infantil na Roma do século XIX, sem pai nem mãe, fui acolhido pela, ainda jovem Maria, para suas práticas de acionar o meu motor interno das minhas próprias transformações. Práticas simples e maravilhosas que, vivi ali no mundo do casarão de San Lorenzo. Por isso, por ser tão frágil, sem pai ou mãe; vilipendiado desde menino nas profundezas da debilidade mental, a signorina Maria com vinte e sete anos, adotou-me como seu filho dileto. Era a única mãe que conhecia.

Já bem defronte do casarão minha respiração quase pára de tanta surpresa e alegria. Do lado de dentro, escondida pelos enormes e pesados portões de madeira maciça, eu podia ouvir claramente a vibrante banda militar com as sincopadas tarantelas. Na parede, bem no alto do portão por onde eu devo entrar, fico parado olhando o que lá está escrito em letras góticas vermelhas enormes: “Casa dei Bambini – Direzione Dottora Maria Montessori”.

Entro discretamente pois, a solenidade já começou e não quero perturbar com a minha chegada. Noto que nem seria necessária a minha preocupação. Não sou notado por quase ninguém. Sou como um fantasma; invisível. Insignificante; como sempre fui, desprezado por todos. Nada me surpreende naquele mesmo ambiente de sempre com os sorrisos de conveniência; e nem mesmo o fétido ar impregnado de naftalina que rescende das grossas fatiotas eternamente resgatadas para os muitos invernos.

Caminho bem discreto pelas bordas da pequena aglomeração que se forma ao redor da homenageada e fundadora da “Casa dei Bambini”. Todos ouvem com grande respeito as palavras de elogios do prefeito de Roma dirigidas à doutora Maria Montessori. Mesmo sem entender exatamente do método de auto-educação criado pela dedicada mestra, ele insiste e tenta explicar os detalhes da utilização de instrumentos de classe como os extraordinários e motivadores “materiais dourados". É evidente e constrangedora a ignorância do prefeito ao tentar “dar uma aula” na presença de Maria Montessori. Enquanto isso a mestra, minha mãe, suporta heroicamente o falatório e sorri condescendente quando me vê entrar e ficar estático diante da sua visão sublime. Sem se importar com o rígido protocolo próprio do momento, ela me olha sem-cerimônia e posso entender a pequena frase que ela tinha me dito ainda quando eu tinha dez anos. Pelos movimentos propositadamente acentuados dos lábios, ela repete as palavras que cravaram-se em minha alma infantil, transformando a criança frágil e desvalida no homem seguro e independente: “...Tu sei Mille volte piú bello Che lei...”. Aquelas doces palavras, mil vezes pronunciadas de Maria Montessori livraram-me para sempre, com bondade, dos apelidos maldosos que me aplicavam os amiguinhos da mesma idade. Minha mãe sempre me estimulava afirmando que eu era mil vezes mais bonito que eles! De qualquer maneira eu não acreditava muito no seu julgamento sobre minha beleza física. Como sempre entendi; as suas palavras elogiosas estavam direcionadas para a minha tenacidade e persistência em manter sempre ativo o próprio motor interno de constantes descobertas. Só isso; nada de beleza!

Tinha chegado o momento da benção das novas instalações e o padre, representando o papa Pio XI, é o mais distinguido por sua sotaina extremamente bem talhada a moldar-lhe o corpo magérrimo. Com um tom muito solene e de cuidada pronúncia apostólica a disfarçar-lhe o timbre de forte nasalado, o místico padre inicia a sua fala em nome de Sua Santidade Achille Ratti. O padre de nariz adunco na sua palidez de sombrias capelas, olha fixo através das lentes do seu cristalino par de óculos. Para ele, só importa a pessoa da magnífica homenageada do dia! “O próprio papa! – exulto com a cena – Já conhece a minha mãe!”.

Enquanto isso, saio antes que notem a minha fatiota amarfanhada. Não desejo envergonhar a minha querida mãe! Antecipo-me à solenidade de reinauguração e curvo-me o necessário para passar por baixo da larga fita de seda nas cores da bandeira da Itália. Em poucos minutos a fita tricolor será cortada pela tesoura oficial do prefeito de Roma.

Como ainda sinto-me de casa, sigo sozinho para as salas novas com as suas extensas prateleiras atulhadas com os materiais de auto-aprendizado. Tudo criado pela prodigiosa mente de minha mãe, Maria Montessori! Meu coração parece vibrar a cada peça que vou revendo: os cubinhos, os cartões com letras e números em superfícies de lixa e as caixinhas menores escondidas nas caixas maiores! As contas! Ah as dezenas de contas multicoloridas onde descortinei o mundo da aritmética! Fico estático por momentos que não contabilizo diante da fascinação dos reluzentes materiais de ouro de Maria Montessori. Eu os manipulei – idênticos – durante os encantadores dias de minha meninice!

Quase não noto que chega, bem por trás, minha mãe gentilmente acompanhada pelo padre Eugenio Paccelli. Estremeço por estar assim tão próximo do mais próximo padre junto ao papa! O sacerdote espanta-se, com a discrição que lhe convém, quando Maria Montessori – uma cientista solteirona – apresenta o seu filho ali do lado. O Padre Paccelli assim tão de perto assemelha àquelas figuras do milenar teatro Kabuki japonês: finamente assexuado; cara extremamente pálida ao giz branco e fácies absolutamente marmórea. Isenta de quaisquer sinais emotivos terrenos. Perturbo-me, para desagrado de minha mãe, quando titubeio se beijo, ou não beijo, o sagrado anel do sinistro representante do papa à minha frente! Não consigo controlar o repulsivo sentimento de nojo que me aflora toda vez que me invade as narinas, o odor enjoativo que exala dos padres das variadas hierarquias: aquele misto das fórmulas secretas e indescritíveis de ceras, incenso e mirra, bolores dos escondidos catres e indevassáveis confessionários. Por fim, para minha satisfação, o lento padre sai, não sem antes fuzilar através dos seus característicos óculos redondinhos, as minhas vestimentas prosaicas para um dia tão especial,

Minha respiração parece acelerar perigosamente quando insisto rever os materiais simples e mágicos que me ergueram do terrível poço escuro de um acidente genético; aquele menino excepcional à beira do cretinismo irrecuperável.

Minha emoção vai às alturas e, por segurança, sou conduzido de volta do transe hipnótico pelo doutor que acompanhou-me e conduziu-me até uma outra vida anterior imediata. Agora sabemos das origens dos atropelos e dificuldades para o aprendizado. E as “marcas” no pescoço do menino, serão mesmo da guilhotina dos anos 1700s?

(Publicado originalmente na Revista Cerrado Cultural nº 02/2009)

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