Por Urda Alice Klueger (Enseada de Brito, SC)
Hoje conheci o Sr. Aimar Kãm-Rem,
e ainda estou emocionada por ter tido a oportunidade. Quem é ele? Um artista do
cinema internacional, um famoso cientista estrangeiro? Nada disso, Aimar
Kãm-Rem é genuinamente catarinense, mais genuinamente catarinense do que
qualquer um de vocês que estão lendo este texto e, apesar de falar corretamente
o português, na sua casa ainda se fala a antiga língua que era falada em Santa
Catarina antes de Cabral e do Dr. Blumenau, a língua Jê, ou Tapuia, da qual ouvimos
breve referência no tempo da escola.
Teria eu ido a um congresso de
antropologia, ou a uma palestra sobre a FUNAI? Não, eu estava sentada à minha
mesa no banco onde trabalho, e ele apareceu lá. Era um senhor bem vestido, de
porte digno, com pouco mais de 60 anos e, à primeira vista, achei que seu rosto
asiático se devia a alguma mestiçagem com japonês. Dirigiu-se a mim com a educação
de um japonês, e seu português era correto e fluente, e eu nunca pensaria que
aquele era um dos legítimos herdeiros do povo Xokleng, descendente direto dos
seus caciques. Ele queria saber como se fazia para abrir uma caderneta de
poupança. Expliquei-lhe e, ainda achando que estava lidando com um descendente
de japoneses, pedi-lhe seus documentos. E quando ele me deu a Carteira de
Identidade, eu amoleci por dentro, me arrepiei, fiquei besta: aquele homem era
a História e a Imaginação, o Passado e a Tragédia. Tenho certeza de que ele não
entenderia se eu lhe dissesse tudo isto, e não lhe disse, mas confirmei:
- O senhor é descendente do
cacique Kam-Rem?
Ele era neto.
Deixem-me explicar a minha
emoção.
Lá por 1988 eu passei quatro
meses estudando tudo o que encontrei sobre o povo Xokleng, os primitivos
habitantes da nossa terra de Santa Catarina, povo formado de bravos que se negaram
ao extermínio e à amizade corrupta do branco durante quatro séculos. Foi só na
segunda década do século XX que Eduardo de Lima e Silva Hoerhan, neto do Duque
de Caxias e seguidor da filosofia de Marechal Rondon (“Morrer, se for preciso;
matar nunca!”), conseguiu a amizade da tribo arredia, amizade conquistada às
custas de muita música de gramofone tocada sob as arcada da floresta de região
de Ibirama/SC. A música criou os primeiros laços: Eduardo cuidou do resto, e,
aldeando a tribo, impediu o seu extermínio, já que na ocasião, tínhamos um
genocídio institucionalizado em toda a região, genocídio que chegou aos
tribunais internacionais e foi condenado em todo mundo. Dei apenas linhas
gerais do que aprendi sobre os Xoklengs – aprendi muito mais, precisava de
dados para escrever o capítulo inicial do meu livro “Cruzeiros do Sul”, romance
que conta a formação do povo catarinense. E lembro muito bem de que, na época
da pacificação, o cacique dos Xoklengs chamava-se Kam-Rem.
Em cima do verdadeiro cacique Kam-Rem
criei o meu personagem Kam-Rem, cacique do povo Xokleng 300 anos antes, um
imaginário cacique calcado num cacique real. A grafia dos nomes difere da do
homem que conheci hoje, mas o som é o mesmo, e meu coração se acelerou de
curiosidade e magia. Ele era nascido em Ibirama, em 1932, e era filho de
Kundagn Yupliu e Rosa Káv-Vân Priprá, este último, também velho nome tribal que
eu conhecia. Não podia haver dúvidas de que ele era um neto ilustre, que
descendia dos antigos príncipes desta nossa terra, e puxei conversa sem
complicar demais (acho que ele não iria entender se eu lhe falasse que era
romancista e essas coisa assim). Perguntei-lhe se conhecera o polêmico Eduardo,
e o que pensava dele. Sim, conhecera e gostara de Eduardo, quis saber se eu o
conhecera também. Não, eu não tivera o prazer, apenas lera sobre Eduardo de
Lima e Silva Hoerhan em livros, e o olhar inteligente de Aimar Kãm-Rem me
confirmou que ele entendia que se pudessem aprender tais coisas em livros. Quis
saber se ele chegara a morar no mato, no tempo em que os Xoklengs continuaram
seminômades. Não, ele não morara. Nascera quase vinte anos depois que a tribo
tinha sido “amansada” (foi ele quem usou a expressão que acho aviltante), e
sempre morara no aldeamento ou na cidade. Na verdade, ele demonstrava ter tido
uma excelente educação à la européia,
inclusive razoável educação escolar, e seu porte era o porte digno de um homem
de mais de 60 anos que se sente ajustado à sociedade em que vive.
Eu acabara de abrir a sua
caderneta de poupança, e ele tinha que se ir. Pedi-lhe que me procurasse quanto
voltasse ao banco. E ele se foi, sem imaginar as emoções que desencadeara em
mim. Fiquei observando-o dirigir-se para a rua, com sua camisa xadrez e sua
calça jeans – parecia mais com um japonês
alto do que com um herdeiro de príncipes ameríndios. Aimar Kãm-Rem era
inteligente, mas com certeza, não sabia do seu valor como herdeiro da História.
Blumenau, SC, 01 de Abril de 1996.
Nenhum comentário:
Postar um comentário