O João Figueiredo era uma dessas pessoas marcantes, que
ficaram sepultadas nas necessidades que o mundo tem de evoluir, e com isso
termina apagando da face da terra algumas atividades, antes tão importantes,
que, hoje, só servem pelo valor histórico, assim como as tantas figuras humanas,
que ajudaram a escrever essa história, a ponta de casco e com um par de rédeas
na mão.
Mascate conhecedor dos quatro cantos do Rio Grande de
Deus, sempre acolherando a campanha e a cidade no rasto de uma carroça velha,
“muy” bem cuidada e quinchada de santa fé, e uma parelha de tordilhos, que
gostava como se fossem gente. Estampa de cavalos, benza Deus.
Eu era, na época, um guri já “taludito”, quando numa
passada lá pelo rancho, me deixou de regalo um cusquinho fumaça, lhe falo uma pintura
de cachorro, o pelo assim quase cor de barba-de-mato, tareco, unha perdida e
cola aparada. Me lembro até hoje.
Botei o nome de Respeito, parecia até adivinhar que ia
mesmo ser um cachorro de respeito, o melhor tatuzeiro, que as margens do
Camaquã já viram, isso desde que era uma nascentezinha lá pelas imediações de
Lavras do Sul, até o imponente rio que cruza por Santaninha e vai se alargando
até a Lagoa dos Patos. Meu cachorro achava tatu até onde não tinha, e depois de
dar no rasto, nem escondido embaixo de um pelego escapava.
“Digo, embaixo de um pelego por que vem da ovelha e
ovelha o meu cachorro não pegava”.
Bueno, p´ra lhes
encurtar o causo, caçava até solito, pois todas as manhãs eu encontrava, no
mínimo, dois tatus na porta da cozinha trazidos pelo cachorro, e digo mais, se
deixasse, destripava e arrancava os pêlos da barriga com os dentes, um por um e
me entregava o bicho limpinho até das “frussuras”. E digo, ainda, mais, só
caçava “tatu macho deixando as tatuas” para “tirar cria”.
Bueno, pra lhe
encurtar mais um pouco o causo, a fama do meu cachorro cresceu tanto, que
começou a aparecer gente de tudo quanto é canto do mundo, com cachorro de tudo
que é pelo e raça, querendo derrubar a sua fama, que ao contrário só aumentava.
- Não havia cachorro
melhor que o meu... Nem igual. Com muito boa vontade, posso acreditar que
haveria algum parecido.
Mas como se sabe,
a vida, às vezes, nos dá algum tironaço que nos larga tastaveando e eu nem
gosto de me lembrar do que aconteceu com o meu cachorro, triste sina de um animal
que dá a vida pela gente, e por um desaforo do destino e a vaidade do ser
humano, faz com que venha a ter um arremate tão trágico.
Pois, foi me
aparecer certo dia por lá o tal Lautério, um mulato mais conhecido na região de
Bagé e Pelotas, por “Diabo Preto” pois, diziam até que era índio de meia dúzia
de mortes, e a cara não negava, pois trazia um risco de faca, desd’a ponta do
olho direito até abaixo do queixo, além de ser desses viventes que sempre olham
meio de “enviazo” pra gente. Junto do cuera troteava um cachorro osco, quase
tão feio quanto o dono e só a boca do bicho media mais de palmo.
O índio tirando uma carneadeira da cintura, cravou no
chão e me assuntou. “Se meu cachorro perdê sangra ele, mas se ganhá, eu sangro
teu guaipeca de orelha a orelha pra não botá cria ruim”.
Pensei em refugar a parada, afinal estava em jogo a vida
do meu cachorro, mas o cusquito deu um grunhido e abanou o toco de rabo, como
se dissesse , “EU ME GARANTO”.
Parece até mentira, mas o meu cachorro só não falava.
Até falava ao seu jeito, eu é que não entendia tudo o que tentava me dizer.
É como se fosse ontem, tenho nas retinas cada cena e
cada fato guardado. Lembro que tinha sido uma noite de surpresa, meio garuosa e
se espalhavam pela volta do rancho os rastos da cavalhada, tocos dos palheiro,
e até algum taco de bota, perdido decerto n´alguma vaneira mais largada.
Foi quando, largou o cachorro osco e dando uma cuspida
no chão, “rosnou”.
-“Quando secá teje de vorta”
E esteve mesmo, não deu nem cinqüenta passos, deu um
latido num pé de gravatá, e de lá saiu com um mulitinho atravessado na boca.
Parecia um “camundongo”, não sei se de tão pequeno que era, ou pelo tamanho da
boca do cachorro, mas afinal que remédio. Há quem diga que petiço é cavalo e garnizé
é galo, de sorte que “mulito” deve ser tatu.
Bueno, eu fiquei, remoendo meus pensamentos, sabia que
meu cachorro era bom, sabia que era o melhor, mas também sabia que não fazia
milagres de sorte que era forte candidato a bicho morto.
Tentei apelar p´ros sentimentos do cuera, o que já de
antemão sabia não ter e que me olhando com cara de deboche rosnou, TRATO É
TRATO.
- Eu nem tinha feito trato algum, apenas não discordara
do que o vivente dissera.
Larguei meu cachorro que andou quatro ou cinco passos,
mijou num pé de carqueja, e depois farejou N´um canteiro de mal- me- quer,
trazendo dali atravessada na boca uma garrafa de canha, decerto esquecida por
algum índio que se passara nos tragos, na noite anterior durante, a dançarola.
Largou a garrafa nos meus pés e ficou abanando o toco de
rabo, com a cara mais satisfeita, que cuiudo solto no meio de um “lote” de potrancas.
O desafiante deu uma risada que mais pareceu um rugido e
sem uma careta pegou a carneadeira e sangrou o meu cachorro.
Confesso que apesar de ser um guri, tive ganas de fazer
o mesmo com o desgraçado, mas como “TRATO É TRATO”, engoli a minha raiva, botei
o cusquinho no ombro e passando a mão numas ferramentas, fui enterrar lá
embaixo das laranjeiras.
Pelo menos isso, eu tinha de fazer pelo meu cachorro.
Fui cavando... cavando, e já ia com meio corpo pra
dentro da cova, quando um de meus pés se afundou na terra fofa, e fui quase
pisar numa ninhada de treze “tatuazinhas”, recém abrindo os olhos, que na
“Santa Paz de Deus”, mamavam n´uma “tatua” velha que dera cria ali a beira do
rancho, por certo sabendo que sendo fêmeas, do cachorro estavam livres.
A gente não entende os bichos, mas eles se entendem. E
até nos entendem, quando não lhes fazemos mal.
Voltando pro rancho com a pá no ombro... com “argueiros”
nos olhos, vi que, ainda estava ali a bendita garrafa de canha trazida pelo
cusco, e olhando com mais atenção... ERA UMA TATUZINHO.
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