domingo, 1 de novembro de 2020

O MEU CUSCO FUMAÇA

 Por Severino Moreira (Bagé, RS)


O João Figueiredo era uma dessas pessoas marcantes, que ficaram sepultadas nas necessidades que o mundo tem de evoluir, e com isso termina apagando da face da terra algumas atividades, antes tão importantes, que, hoje, só servem pelo valor histórico, assim como as tantas figuras humanas, que ajudaram a escrever essa história, a ponta de casco e com um par de rédeas na mão.

Mascate conhecedor dos quatro cantos do Rio Grande de Deus, sempre acolherando a campanha e a cidade no rasto de uma carroça velha, “muy” bem cuidada e quinchada de santa fé, e uma parelha de tordilhos, que gostava como se fossem gente. Estampa de cavalos, benza Deus.

Eu era, na época, um guri já “taludito”, quando numa passada lá pelo rancho, me deixou de regalo um cusquinho fumaça, lhe falo uma pintura de cachorro, o pelo assim quase cor de barba-de-mato, tareco, unha perdida e cola aparada. Me lembro até hoje.

Botei o nome de Respeito, parecia até adivinhar que ia mesmo ser um cachorro de respeito, o melhor tatuzeiro, que as margens do Camaquã já viram, isso desde que era uma nascentezinha lá pelas imediações de Lavras do Sul, até o imponente rio que cruza por Santaninha e vai se alargando até a Lagoa dos Patos. Meu cachorro achava tatu até onde não tinha, e depois de dar no rasto, nem escondido embaixo de um pelego escapava.

“Digo, embaixo de um pelego por que vem da ovelha e ovelha o meu cachorro não pegava”.

 Bueno, p´ra lhes encurtar o causo, caçava até solito, pois todas as manhãs eu encontrava, no mínimo, dois tatus na porta da cozinha trazidos pelo cachorro, e digo mais, se deixasse, destripava e arrancava os pêlos da barriga com os dentes, um por um e me entregava o bicho limpinho até das “frussuras”. E digo, ainda, mais, só caçava “tatu macho deixando as tatuas” para “tirar cria”.

  Bueno, pra lhe encurtar mais um pouco o causo, a fama do meu cachorro cresceu tanto, que começou a aparecer gente de tudo quanto é canto do mundo, com cachorro de tudo que é pelo e raça, querendo derrubar a sua fama, que ao contrário só aumentava.

 - Não havia cachorro melhor que o meu... Nem igual. Com muito boa vontade, posso acreditar que haveria algum parecido.

 Mas como se sabe, a vida, às vezes, nos dá algum tironaço que nos larga tastaveando e eu nem gosto de me lembrar do que aconteceu com o meu cachorro, triste sina de um animal que dá a vida pela gente, e por um desaforo do destino e a vaidade do ser humano, faz com que venha a ter um arremate tão trágico.

 Pois, foi me aparecer certo dia por lá o tal Lautério, um mulato mais conhecido na região de Bagé e Pelotas, por “Diabo Preto” pois, diziam até que era índio de meia dúzia de mortes, e a cara não negava, pois trazia um risco de faca, desd’a ponta do olho direito até abaixo do queixo, além de ser desses viventes que sempre olham meio de “enviazo” pra gente. Junto do cuera troteava um cachorro osco, quase tão feio quanto o dono e só a boca do bicho media mais de palmo.

O índio tirando uma carneadeira da cintura, cravou no chão e me assuntou. “Se meu cachorro perdê sangra ele, mas se ganhá, eu sangro teu guaipeca de orelha a orelha pra não botá cria ruim”.

Pensei em refugar a parada, afinal estava em jogo a vida do meu cachorro, mas o cusquito deu um grunhido e abanou o toco de rabo, como se dissesse , “EU ME GARANTO”.

Parece até mentira, mas o meu cachorro só não falava. Até falava ao seu jeito, eu é que não entendia tudo o que tentava me dizer.

É como se fosse ontem, tenho nas retinas cada cena e cada fato guardado. Lembro que tinha sido uma noite de surpresa, meio garuosa e se espalhavam pela volta do rancho os rastos da cavalhada, tocos dos palheiro, e até algum taco de bota, perdido decerto n´alguma vaneira mais largada.

Foi quando, largou o cachorro osco e dando uma cuspida no chão, “rosnou”.

-“Quando secá teje de vorta”

E esteve mesmo, não deu nem cinqüenta passos, deu um latido num pé de gravatá, e de lá saiu com um mulitinho atravessado na boca. Parecia um “camundongo”, não sei se de tão pequeno que era, ou pelo tamanho da boca do cachorro, mas afinal que remédio. Há quem diga que petiço é cavalo e garnizé é galo, de sorte que “mulito” deve ser tatu.

Bueno, eu fiquei, remoendo meus pensamentos, sabia que meu cachorro era bom, sabia que era o melhor, mas também sabia que não fazia milagres de sorte que era forte candidato a bicho morto.

Tentei apelar p´ros sentimentos do cuera, o que já de antemão sabia não ter e que me olhando com cara de deboche rosnou, TRATO É TRATO.

- Eu nem tinha feito trato algum, apenas não discordara do que o vivente dissera.

Larguei meu cachorro que andou quatro ou cinco passos, mijou num pé de carqueja, e depois farejou N´um canteiro de mal- me- quer, trazendo dali atravessada na boca uma garrafa de canha, decerto esquecida por algum índio que se passara nos tragos, na noite anterior durante, a dançarola.

Largou a garrafa nos meus pés e ficou abanando o toco de rabo, com a cara mais satisfeita, que cuiudo solto no meio de um “lote” de potrancas.

O desafiante deu uma risada que mais pareceu um rugido e sem uma careta pegou a carneadeira e sangrou o meu cachorro.

Confesso que apesar de ser um guri, tive ganas de fazer o mesmo com o desgraçado, mas como “TRATO É TRATO”, engoli a minha raiva, botei o cusquinho no ombro e passando a mão numas ferramentas, fui enterrar lá embaixo das laranjeiras.

Pelo menos isso, eu tinha de fazer pelo meu cachorro.

Fui cavando... cavando, e já ia com meio corpo pra dentro da cova, quando um de meus pés se afundou na terra fofa, e fui quase pisar numa ninhada de treze “tatuazinhas”, recém abrindo os olhos, que na “Santa Paz de Deus”, mamavam n´uma “tatua” velha que dera cria ali a beira do rancho, por certo sabendo que sendo fêmeas, do cachorro estavam livres.

A gente não entende os bichos, mas eles se entendem. E até nos entendem, quando não lhes fazemos mal.

Voltando pro rancho com a pá no ombro... com “argueiros” nos olhos, vi que, ainda estava ali a bendita garrafa de canha trazida pelo cusco, e olhando com mais atenção... ERA UMA TATUZINHO.

 

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