terça-feira, 8 de março de 2011

ILEX PARAGUARIENSIS, UMA ERVA MUITO AMARGA

Por Sergio Moacir Pereira Fontana

Gigante pela própria natureza, o Brasil é uma mistura saudável de costumes, raças e religiões, distribuídos não aleatoriamente por todo o seu território. A colonização por parte dos portugueses e sua gradativa integração com a população indígena, as tentativas de domínio por parte de outras nações estrangeiras, o tráfico de escravos e a entrada de imigrantes oriundos de várias partes do mundo, contribuíram para fazer do país, cuja língua oficial é o português, um lugar onde se fala, ou se ouve falar, o espanhol, o italiano, o francês, o alemão, o inglês, o russo, o japonês, o turco, o árabe, o hebreu, e idiomas e dialetos nativos, dentre os quais o mais conhecido é o tupi-guarani. Por conta disso, ao português coloquial, de distintos sotaques e entonações em cada região do país, incorporaram-se, ao longo do tempo, palavras de origem indígena, africana e de outros países europeus e asiáticos.
Quanto aos costumes da população, em geral, a história, o folclore e o próprio clima de cada região contribuem para acentuar ou diminuir as diferenças entre os vinte-e-seis estados e um distrito federal, que correspondem à divisão administrativa do país.
As diferenças que fascinam os próprios brasileiros, os quais se vestem de turistas e saem para conhecer regiões bem distintas da sua, transformam um passeio mais longo em novas emoções que vão render depois, interessantes narrativas aos amigos e familiares que ficaram em casa. Por outro lado, essas mesmas diferenças podem causar transtornos e mal-entendidos a um desavisado turista ou migrante. Foi o que aconteceu com o meu amigo José Antônio, gaúcho, de Sant’ana do Livramento, fronteira com o Uruguai.
Desde guri, José Antônio freqüentava o CTG (Centro de Tradições Gaúchas) “Fronteira Aberta”, em Livramento, hábito que herdou do pai, proprietário da fazenda “Pampa Oriental”. Não dispensava um bom churrasco de carne de rês e sempre andava com a mateira de couro cru, à tiracolo, onde acomodava a garrafa térmica com água quente, a cuia, a bomba e o pacote de erva. No curso de Veterinária da Fundação Átila Taborda, em Bagé, no estado do Rio Grande do Sul, uns anos mais tarde, ficou conhecido como o “Zé do Mate” porque não largava a cuia do mate nem na hora das provas escritas. Dizia que o chimarrão com erva boa e água na temperatura certa, acalmava os nervos.
Formou-se Médico Veterinário, fez um estágio na EMATER (Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural) de Bagé, onde prestou serviços a dezesseis municípios da região e, um ano depois, fez concurso para a mesma EMATER, só que as três vagas existentes eram para o estado do Pará, na região norte do Brasil. Não acreditou quando recebeu um telegrama da cidade de Belém do Pará, avisando-lhe que tinha sido aprovado em segundo lugar. Imaginou se valeria a pena deslocar-se do seu chão, da sua querência amada, para trabalhar em um lugar tão distante, mais ou menos três mil e quinhentos quilômetros, em linha reta, ou mais de cinco mil, dependendo do trajeto. Resolveu ir.
Zé do Mate fez os cálculos e imaginou que se ficasse por lá durante uns seis meses, sem voltar ao sul, precisaria levar uns cinqüenta quilos de erva. Era muito peso e volume para carregar de uma vez só. Contentou-se em juntar vinte pacotes de um quilo, cada. Era o que cabia na mala que comprou especialmente para carregar o produto.
A mudança de cidade, de região, de emprego e de hábitos não afetou o meu amigo Zé, como eu imaginei que aconteceria. Ele me escreveu um mês depois de assumir o cargo em Belém. Na carta dizia que tinha alugado e mobiliado uma casa simples, num bairro distante do centro, mas próximo do seu local de trabalho, cuja jornada era feita em turno único de seis horas diárias, de segunda à sexta-feira, das sete às treze horas. Quando não se estendia por mais tempo pesquisando no laboratório da Instituição, almoçava no bar e restaurante do Medronha, que coincidentemente era gaúcho, de São Borja. O bar ficava na esquina da sua casa e não foi difícil, para o meu amigo Zé, fazer amizade com a vizinhança toda. Nas horas de folga ia direto para o bar do Medronha, com os seus apetrechos de chimarrão. E dê-lhe mate! Convidava quem mais por ali estivesse a experimentar a tradicional [para os da sua terra] bebida. Quem aceitava o convite e chupava o mate conforme ele orientava, logo desistia, por causa do sabor amargo da tal “água verde”, que além de verde era quente demais. Mas o Zé do Mate não cansava de repetir, para todo o mundo ouvir, que o chimarrão era a cura de todos os males do corpo e da alma. Resolveu até deixar uns pacotes do produto para o amigo Medronha, com a intenção de incentivá-lo a readquirir o hábito de sorver o chimarrão, coisa que há muitos anos o amigo não fazia.
Uns dias depois, o Medronha, meio sem jeito, perguntou-lhe se teria como conseguir mais alguns pacotes de erva-mate. José Antônio, admirado com a solicitação, respondeu que o seu estoque estava no fim, mas como os trinta quilos de erva que encomendara da sua terra natal, Sant’ana do Livramento, já estavam na agência do correio do bairro, à sua espera, resolveu dar ao amigo os últimos quatro pacotes que dispunha.
No dia seguinte, quando retornava do trabalho e se encaminhava para almoçar no local de sempre, encontrou o bar e restaurante do Medronha, fechado. Estranhou o fato e tratou de perguntar à vizinhança o que poderia ter ocorrido. Ninguém sabia do Medronha. Fechou o restaurante na noite anterior, foi para casa e ninguém mais o viu.
Quatorze dias depois o Presidente da EMATER do Estado do Pará, baseado na reportagem de capa de um jornal da capital, assinou a exoneração, por justa causa, do Médico-Veterinário José Antônio Massaro Escobar. O título da matéria dizia: “Traficante preso, denuncia chefe, e polícia apreende 30 quilos de droga na casa do bandido”.
Desfeito o mal-entendido quinze semanas mais tarde, um abatido José Antônio - barbudo e oito quilos mais magro - saiu do presídio de segurança máxima de Belém. O pai, “seu” Hermes, o aguardava no portão. Foram direto para o Aeroporto Internacional de Belém, embarcaram no vôo do meio-dia para Brasília e, de lá, para Porto Alegre, no Rio Grande do Sul.
Fui visitar o Zé Antônio em Sant’ana do Livramento, no natal de 1986. Ele me contou esta história. Não fez, não tomou e não me ofereceu nenhum chimarrão durante os três dias em que estivemos na “Pampa Oriental”, a fazenda do pai dele, onde trabalha até hoje.

(Publicado originalmente na Revista Cerrado Cultural nº 05, em 2008)

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