terça-feira, 8 de março de 2011

NA PONTE-DE-COMANDO DO MEU NAVIO

Por Von Steisloff

Cara, hoje pela tarde passei por uma experiência inusitada. Como dizem os miúdos, radical mesmo! Só podia acontecer comigo. Numa segunda feira de Carnaval, com muitas netas por metro quadrado, eu fui praticamente forçado a ficar na varanda. Não posso dizer que odeio Carnaval. Já fui de sair até naqueles blocos de sujo. Usava máscaras, aproximava-me de pessoas de minhas relações e perguntava, ridiculamente com voz de falsete:
- Você me conhece?
Que coisa mais sórdida digo hoje aos setenta anos. Mas deixa isso para lá. Hoje é Carnaval e vale tudo.
Voltemos à varanda. Se vocês se lembram, minha varanda é um lugar privilegiado: para o nascente, no décimo quarto andar, direto para a Esplanada dos Ministérios. Pode? Pode sim. Só não me peçam para explicar como cheguei nessa altura. Garanto que é coisa limpa. Nenhuma CPI me sacaneará. Sintetizando, o Collor me demitiu, tomou minha poupança, dezoito meses após fui na Caixa, recebi tudo de volta, mais FGTS e comprei da Encol (putzqui!) um flat novinho! Tá explicado?

Voltemos à varanda. Como disse, segunda-feira de Carnaval, chuva pela tarde comecei a tomar umas cervejinhas e tome chuva. Depois de diversas latinhas e, de estômago vazio, comecei a sentir um certo “mareio”; a chuva respingava no meu rosto, trazida pelo forte vento. Para espanto de quem me observava, me socorri de um agasalho para não deixar a minha varanda. Agasalho para mim é coisa supérflua. Nunca uso. Dos que já comprei, quase todos mofaram nas gavetas e foram depois dados aos pobres. Minha mulher é testemunha, a (o certo é há) muito tempo recuso agasalho. Recuso também esse negócio do verbo haver. Há? Por que tem que ter o “agá”? Pô! Mas deixa para lá, voltemos à varanda.

Os respingos de chuva, associados ao forte vento da Esplanada e o “mareio” me transportaram a um tempo que, menino, freqüentava as viagens por mar. Meio sonolento - ou de porre mesmo - imaginei estar da ponte-de-comando de um navio. O vento continuava a bater forte, os respingos de chuva como saraivadas me levaram àquela imaginação de poder. Eu estava no comando de um navio! Gritava para que o timoneiro, sob meu comando, mantivesse o rumo. Sempre para Leste! Não desviar! Direto para a Esplanada. O vento continuava forte e mais fortes eram minhas ordens determinando: Sempre para estibordo! Vamos abordar capitão? Não seu palerma! Abordar quem? Eu lá quero saber de nenhuma abordagem? Quero botar pra lascar! Eu estava ‘Antarcticamente’ furioso. Ora! Abordar numa segunda-feira de Carnaval! Sempre desprezei cada um dos edifícios da Esplanada ou da praça contígua.

Niemeyer que me perdoe, mas ele projetou todos esse ninhos de parasitas bem no meu rumo. Na minha proa. Eu só tinha duas alternativas. Uma, que era insistentemente lembrada pelo temeroso timoneiro - abordar - e a outra, que era minha única chance de glória como capitão-de-varanda: atropelar. Na linguagem náutica significa bater de lado ou abalroar. Esta é que eu queria.

Voltemos às minhas cervejas. Não são bem minhas. São da Antárctica. Sendo um medíocre consumidor não posso ter na minha ponte-de-comando as Guinnes ou as holandesas Heineken.

Minha esposa quando em vez assustada, e de vez em quando, olhava para se certificar que eu estava bem protegido da chuva. Eu já estava metido em um boné de pano que tinha trazido lá de Balneário Camboriú. Uma coisica assim bem de alemão. Por cima de tudo, aconselhou-me a cuidadosa primeira-dama-de-varanda que calçasse também as meias. Que vergonha!

Mesmo sem muita visão na ponte-de-comando mirei a Catedral Metropolitana e ordenei:’Desviar!’ Não desejava arrebentar minha estrutura contra aquelas pontinhas insignificantes. Elas um dia vão cair por si - justifiquei para o grumete à guisa de timoneiro. Aliás, sempre respeitei coisas do folclore. Rumo mais para Leste. A torrente de água no meu décimo quarto andar impedia que eu divisasse o que vinha naquele mesmo rumo. ‘Cuidado!’ - gritei com voz rouca e bem máscula –‘ Desviar para não bater no Itamaraty!’ Nunca convém abalroar esse povo. Eles podem confundir com abordagem a subir em nossos costados. Na minha ponte não!

A proa oscilava na vertical, para o fundo e para o céu. Eu, nas minhas Antárcticas, conseguia abstrair o estacionamento asfaltado sob a varanda imaginando o mar bravio. Na minha poltrona (de plástico), apesar da espessa cortina de chuva, continuei mirando no horizonte outros alvos prováveis.

Ao desviar do Palácio do Itamaraty, apenas um grau a bússola na varanda indicou o SupremoTribunal! ‘Cuidado não vamos matar os velhos! Eles não agüentam nenhum impacto com nossa proa justiceira. Estão muito podres! O tempo cuida de mandar tudo para o fundo!’ O grumete - em um rasgo de ousadia - grita: “Comandante, afinal quem é que o senhor quer mandar para o vinagre?” Eu, cada vez mais ensandecido pelo teor pilsen, olho com desdém e piedade para o asno-aprendiz-de-timoneiro e não dou-lhe qualquer resposta. Ao contrário, desta vez berro no meu imaginário megafone naval: ‘Só um grauzinho para Leste!’

- Pô capitão - ousa novamente o grumete - Aí é o Congresso!
- Não, seu incompetente - corrijo - Esse conjunto é o Tribunal de Contas!
- Ah! Agora entendi - concordou minha besta-cooperante - Foi só um grauzinho comandante, não dá para chegar no Congresso.

Cuidando para não adernar, ordeno desviar do Tribunal de Contas. Esse dinossauro tecnológico tem de ser preservado para o futuro. Ali tem muito arquivo. Não pode ser levado ao fundo.

- Agora sim - olho para a bússola - Chegamos onde quero bater de frente!
- Aterrisa chefe - murmura a sapiência-ao-leme - Aí não pode, é a Praça dos Três Poderes.
- Sua ostra - não agüento e dito do alto da proa - Toda força das máquinas à frente!
- Chefia - coaxou o sapo-timoneiro - Qual palácio vamos bater primeiro?

Aí estava minha dúvida cruel. Qual palácio primeiro? Na realidade eu só tinha um navio e uma só proa para destroçar. Tomo de minha luneta telescópica e olho para o Palácio do Planalto. Muito concreto armado; minha varanda-proa viraria maionese. Teria muito efeito, mas quem eu buscava não estava lá. Lembrei que era uma segunda-feira de Carnaval.

Não podia mais perder tempo. Já estava escuro e tinha de realizar a proeza de minha heróica história naval. Já bastante obnubilado tanto pelo balanço do navio como pelo ambiente Antárctico, necessitava agora conferir minha posição para abalroar, pelo menos, um símbolo. O último que restava para mim estava na Praça dos Três Poderes.
Mesmo com a chuva, ainda se podia ver umas estrelas insistentes.

- Timoneiro! Timoneiro! - peço a informação crucial - Determinar nossa atual posição!
- Está aqui capitão - me passando o astrolábio - Não sei ainda usar! - completa com ar humilde e idiota.
- Então passe já o sextante, seu meio-grumete!

Depois de realizar, com dificuldade, algumas miradas para o céu, localizo o desejado par de estrelas: posição determinada, distâncias medidas, latitude e longitude nos estrinques mando a ordem:

- Toda força à frente! - com a voz já empastada de cerveja completo - Muito gás nessa p... de navio! Quero ver tudo virar geleia!

Minha proa vai feroz, cortando fundo as imundas águas da Praça dos Três Poderes.
Minha visão se turva e, quase cego de raiva ou por causa da alta concentração de álcool, me tomo de inveja da tripulação das torres gêmeas do Congresso.

Na velocidade do avanço para o choque terrível ainda consigo divisar, através de janelas iluminadas, algumas pessoas que pareciam confraternizar intimidades nessa noite de segunda-feira de Carnaval! Na realidade eram casais - entre deputados, senadores e servidoras dedicadas - que faziam hora-extra...

Uma salvadora rajada de água fria me trouxe à realidade e gritei para o meu ajudante:
- Toda força à ré!
- Que é isso, chefia! - ousa novamente o lesma-timoneiro - Bate ou não bate?
- Todas forças das hélices para ré, seu bosta!

Volto à minha razão: eu não podia chocar contra o nosso Congresso. Aliás, quem me acordou para o momento e a situação foi minha fiel guarda-mor, a citada primeira-dama da ponte-de-comando. Lembrou-me que eu não devia ser recordado como o Osama Bin Laden do Planalto. Deveria, isso sim, ser sempre recordado, com carinho, como o capitão Von Steisloff, o único que navegou nas turvas e perigosas águas da Praça dos Três Poderes.

Brasília,11/02/2002


(Publicado na Revista Cerrado Cultural nº 05, em 2008)

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