quarta-feira, 4 de maio de 2011

MERCADO DEL PUERTO

Por Von Steisloff


Só vejo-te aos sábados. Quem sabe talvez seja essa a razão de que, cada vez que retorno a ver-te, fica em mim um desejo de sempre voltar. Nesse local o melhor que se sente é um reencontro sincero com um passado. Vejo-me ali, sem filtros ou lentes bondosas que eliminem minha insignificância de quem apenas é mais um que passa. Acomodo-me em um banco onde outros já se sentaram e nada sinto que possa modificar minha situação de passante. Sou mais um com a sublime ilusão de entender o presente e viver o doce momento que pertence ao passado. Quando retorno a ver-te, examino cada ponto, tentando captar um sinal que possa ser familiar. Tudo é fortemente passado e eu sou apenas o presente. Não consigo entender nada do local nem das pessoas que ali estão. São todas estranhas para mim. Sinto também que sou estranho para todos. Sorrio e procuro me embriagar com o vinho ácido que vou pedindo nos copos mal lavados. Tenho a impressão de que ali, todos procuram também um refúgio como eu. Por entre a multidão que se forma cada sábado, os tipos mais raros perambulam com seus copos, vão bebendo e olhando para quem também os olha.


Engano-me na bebida para que passem as horas e aproveito para estudar a estrutura de ferro centenária que sustenta o galpão imenso. Tudo parece tão distante no tempo, mas misteriosamente familiar. É um abrigo seguro de uma época invejada por mim. O mais que consigo é volver mentalmente na esperança de reviver imagens que nunca vi. Não consigo concentrar-me, pois sou chamado à realidade pela triste algazarra.


Vejo, pelos corredores sem luz, um desfile de expressões inteligíveis. Todos falam alto e, às vezes, por gestos, tentam se impor, pois a hora é feita para confessar aos amigos os sucessos e as amarguras da semana.

Minha visão turva-se e sinto-me feliz por estar ali junto aos miseráveis que me pedem para lhes comprar uma gilete que jamais usarei. O desfile continua com os aleijados de voz rouquenha. São três da tarde e o vinho corre solto e será pago pelo entusiasmo e sem qualquer reclamação. Os garçons mais vividos aproveitam para carregar na conta. Tudo noto, mas nem ligo. A euforia vai quase para o auge e os odores se misturam. Há uma convivência e tolerância promíscua entre o sujo e o limpo. Entre pobres e remediados. Uns comem sem reservas enquanto muitos pedem trocados para completar um lanche. É um frenesi de misturas onde uns são apenas pobres e outros alegremente infelizes. Encontro-me no centro de um fenômeno de galhofa nacional e do nanismo político que tanto mal faz a esse país. Aqui estão representados, o fausto do passado e a visão terrível do futuro. Ninguém percebe, ou não quer perceber a gravidade da rota escolhida. Toca pra frente. O melhor é pedir outro copo de vinho.


Volto minha vista para o teto pegado da fuligem dos anos. O imenso relógio de quatro faces parou nas onze horas de um dia qualquer. Por que todos também não levantam suas visitas entre um gole e outro, para refletir que o tempo parou? Será que só eu insisto nessa reflexão política? Parece que a vocação das massas é mesmo ser comandada por minorias audaciosas. Aqui e ali, ouço comentários sobre os acontecimentos esportivos ou coisas sem importância dessa espécie. Não fossem essas conversas, teria a impressão que o casarão seria de um silêncio religioso. Quase grito impaciente para que percebam no enegrecido teto as mensagens ali deixadas.


Se elevassem suas vistas, talvez suas almas fossem tocadas pela estética vigorosa da harmonia deliciosa e antiga. Olho enternecido para o cidadão que está ao meu lado. Nem percebe que o observo tal é o seu interesse pelo pedaço de churrasco à sua frente. Os grupos pelos balcões nem se dão conta da minha presença. Melhor assim. Fico sozinho com minhas reminiscências de um orgulho que caiu sem nunca ter lutado. Afinal, o que sou? Nem sou daqui.


Entristeço-me com esse covarde pensamento e chego mesmo a ficar um pouco envergonhado. Na realidade nunca me senti de parte alguma. Um pouco imaginativo, passo a considerar que eu poderia até mesmo julgar-me genuinamente integrante do país e de suas vergonhas. Sinto que se continuasse no vinho acabaria nas lágrimas. Eu não podia ficar estimulando uma posição de homem do mundo, com caráter internacional que eu realmente nunca assumiria. A mazela nacional pertence aos nacionais. É uma ferida que eles devem tratar. Isso sim é mais cômodo.


Venho ao local para sentir-me bem e acabo entristecendo-me. Minha sensibilidade e percepção traem este passante e fico ruminando problemas de outros. Recomponho-me e decido parar com as fantasias. Procuro justificar o espetáculo que vejo, mais com gozo de turista do que de um observador crítico e informado. Finalmente consigo encarar meu parceiro de balcão e arrisco um sorriso. Fenômeno! Ele reage e também sorri sem saber porquê. Deve ter me achado engraçado. Diante de tanta miséria alguém encontrar qualquer motivo para sorrir como eu fizera.


Na realidade estou mesmo feliz. Saio pelos corredores e procuro tocar de leve nas pessoas que entopem as passagens. Procuro sentir-me como um deles. Os acidentais contatos com suas roupas grossas e ásperas já os tenho acariciantes. Sintonizo melhor meu ouvido para inteirar-me das conversas. Julgo tudo tão normal. São alegres mesmo! O que eu via como miséria é parte de uma história que aos poucos vou entendendo. Minha curiosidade se aguça e passo a captar imagens e sons ignorados. Aquela algazarra era uma orquestra humana abafando os tambores do pessimismo. Eram palmas à vitória que têm como certa, embora distante. Estavam ali, como em todo fim-de-semana, numa espécie de culto a um quartel do civilismo. Na sua azáfama nem percebiam que o turista ingênuo invadia aquele templo pensando tratar-se de uma casa de folclore. Passo a compreender o estimulante que é o local e confesso-me integrado naquela festa semanal. A emoção é mais forte e abre em mim desejos de permanecer e nunca mais sair. Quedo-me perplexo diante daquela simbiose entre um pavilhão de ferro e um povo que o ama e precisa dele. Saio e, vagarosamente, volvo minha cabeça para rever sua silhueta vetusta. É por isso que prometo ver-te novamente, no próximo sábado, oh! meu “MERCADO DEL PUERTO”.

Montevidéu, 1982

(Publicado originalmente na Revista CERRADO CULTURAL nº 08/2008)

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